sexta-feira, 1 de outubro de 2010

AS SURRAS QUE A VIDA DÁ

O bom de apanhar da vida é que a gente descobre que nada é para sempre, nem o que é ruim.

Eu deveria estar embrutecido. Deveria ter conseguido criar uma carapaça resistente às adversidades. Como uma calosidade protege, em vão, os pés das dores da caminhada. A cada soco, a cada tropeço, a cada escorregão, eu vejo mais serenamente o que aprendi, embora não seja bom em aprender lições, repetindo velhos erros e antigos padrões de comportamento, esperando ser gratamente surpreendido no mais previsível. Tenho uma série de erros recorrentes e não me canso de acreditar que as coisas podem ser diferentes. E que podem ser melhores. Em determinados momentos consigo olhar com quase carinho para os espinhos cravados na pele e para as marcas indeléveis deixadas no corpo, sabendo que são parte do caminho que escolhi e a memória viva do que sou.

Não tenho muitas dificuldades em rever meus conceitos (alguns deles, pelo menos) e me reinventar. Mas sou obsessivo e somente desisto de um algo (errado ou certo) quando deixo de amar o objeto desejado. Amo a dor com a mesma voracidade que amo o amor. Porque cá dentro, no mais íntimo de mim, espero que o amor consuma a dor, como fogo, exaustiva e completamente, como consome o próprio amor, no velho ciclo começo-meio-fim.

Autoconsciência é uma maldição. Passo por situações recorrentes e tenho consciência plena (será?) do que me cerca. Vejo criticamente – talvez demais – as minhas próprias atitudes, como vejo as dos demais, principalmente quando me afetam. Não atribuo, via de regra, juízos de valor às atitudes dos outros. Pelo contrário, eu não costumo julgar e condenar as atitudes das pessoas, sejam elas quais forem. Discordo, entristeço, resigno, mas não tolho. Afinal, ninguém dá o que não tem e esperar das pessoas determinadas atitudes que talvez nem eu mesmo teria é, no mínimo, desonesto e injusto. Isso não significa, porém, que não seja afetado pelas atitudes dos outros.

Honesto, entendo, é sentir, calar quando necessário e falar na hora apropriada. E dilacerado calo, esperando o momento certo de verbalizar o que sinto e penso de forma a causar o menor sofrimento. O mais amaldiçoado de ser consciente é ter uma necessidade orgânica de verbalizar o retorno do recalcado. Este é o legado de morte, a marca dos condenados. Sinto. Calo. Elaboro. Verbalizo. Esvazio. Esvaneço. Recomeço.

A cada esvaziamento de mim me reconstruo, mais consciente da realidade e menos esperançoso nos rebotes que a vida dá. É melancólico? Maybe. Mas não criar ilusões é o legado de anos de terapia (para alguma coisa as intermináveis horas de elocubrações efêmeras e febris tinham que servir!).

Tenho um sem-fim de emoções desgarradas, flutuantes no meu imaginário lúdico-erótico-afetivo. E cuido delas com o carinho que se tem pelo filho bastardo. Meus desgarrados formam um mosaico de mim que faz mais sentido se visto a uma certa distância objetiva. Como uma obra impressionista, quanto mais perto, menos nítidos são os contornos. De longe, ajustando o foco, é possível vê-las na sua quase totalidade significativa.

Não, meus escombros, pelos quais nutro tanto carinho, não são motivo de orgulho. Tenho apenas respeito e deferência. Que colecionador se orgulharia de uma coleção de restos de batalhas inglórias contra gigantes imaginários? Tenho sim um certo orgulho, porque no fundo sou um egomaníaco vaidoso e obsessivo, do que consigo elaborar de positivo a cada tombo.

Minhas (des)ilusões, paradoxalmente, me fortalecem. E viabilizam o inviável. Viabilidade mais clara nas impossibilidades que nas possibilidades. Regozijo em perceber que estava sentindo claramente quando coloco mais uma pedra na montanha de escombros. Uma montanha criada para reverenciar o passado que constitui o presente. Mas um monumento para ser também esquecido. Porque devemos lembrar que a vida é feita de esquecimentos. Autoconsciência é uma maldição. Talvez a melhor de todas.

sábado, 29 de maio de 2010

REVER-TE


Specially for my cherished "B", fondly...



Abraço profundo.

Profundo acalanto.

Saudades de um mundo

de olhares profundos

a refletir distâncias e proximidades

e revelar o que há de mais subterrâneo,

mais escondido,

mais intrínseco,

mais visceral.



Se expiras é vento,

se inspiras, sou Eu.

Sabes quem sou Eu?

Sei quem és Tu?

Sei apenas que existe um Tu

que habita em mim,

e que não sei se já foi um dia Eu.

ou é um Eu transformado

agora em Tu.



Me vejo por dentro.

E lançando esse olhar interior

Vejo somente a Tua face.

Por que estás assim, tão dentro de mim?



E não queres sair...

E não quero que saias.

Nunca.

Fica! Para sempre aqui,

que é teu lugar...

Saudades de um mundo Meu e Teu.

Saudades de nós.


- Escrito em 22/05/2010 - 

VIOLÊNCIA E REDENÇÃO



Gosto de filmes (principalmente latinos) que tentam “fazer as pazes com o passado”, ou pelo contrário, rememorar um passado de violência para que as gerações futuras não se acomodem no conforto do esquecimento. É a exposição de um sentimento terceiro mundista de entender sua história, pontuada por ditaduras e atrocidades.

O filme A Teta Assustada (“La Teta Asustada”, Peru, 2009) ganhou inicialmente o título em português “O Leite da Amargura”. Escrito e dirigido com sensibilidade por Claudia Llosa, o filme é um exemplo da exposição das feridas não totalmente cicatrizadas de um país. Este é o segundo filme da diretora e caiu nas graças da crítica por uma série de motivos, principalmente pela estética e temática. É um filme exótico, aos olhos do colonizador, porque ainda alheios aos grandes pólos culturais do mundo moderno. Torço um pouco o nariz para isso. Não gosto desse tratamento dispensado a nós como se fôssemos os “bons selvagens” da vez. Mas tem lá seus méritos essa notoriedade. Aquela velha história: o importante é ser notado e conseguir dar o recado. A obra ficou mais famosa depois de concorrer ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2010, além de arrebatar vários prêmios, entre eles o Urso de Ouro do Festival de Berlin em 2009 e alguns Kikitos em Gramado, entre eles o de melhor atriz para Magaly Solier.

O filme é importante por vários motivos, principalmente pela visibilidade da América Latina no que se refere à arte cinematográfica. E não falo isso por bairrismo, embora eu seja inexoravelmente bairrista. Conhecemos muito pouco sobre o cinema peruano. O que sabemos é que é um país vizinho pobre, com imensas desigualdades e assolado pela violência e pela corrupção. E a obra permite várias leituras nesse sentido. Vejo que Llosa, sobrinha do escritor Mário Vargas Llosa – o que serve somente como uma pequena nota de rodapé -, mostra uma realidade bastante forte de seu país. Traz desigualdades sociais e violência, temas comuns a nós, principalmente no novo cinema brasileiro que explora, à exaustão, a Estética da Violência.

O argumento do filme de Llosa baseia-se, de maneira alegórica, na premissa que as mães violentadas pelos guerrilheiros terroristas da milícia paramilitar peruana Sendero Luminoso, durante os anos 80, transmitiriam para as filhas, através do leite materno, o medo, vergonha e sofrimento sentidos pela violação. Essa “doença” foi batizada de “Teta Assustada”. Segundo a diretora, existem diversos relatos, principalmente dos povos indígenas contrários à causa do Sendero Luminoso, em que as mulheres violentadas transmitiriam essa enfermidade aos seus filhos. Especulações à parte, a história parte dessa violação dos direitos humanos mais básicos para tratar de temas universais como incomunicabilidade, medo, isolamento e principalmente a luta por reverter uma situação de opressão e seguir a vida em frente.

A narrativa é fragmentada, a trama é permeada de simbolismos (relacionados às relações de aprisionamento e libertação dos personagens principalmente) e possui alguns momentos que me agradaram bastante. A fotografia é bem trabalhada. Os enquadramentos rigorosos e precisos. Através da fotografia a personagem principal se constrói e cresce na narrativa, de tal forma que é a própria fotografia o que dá fôlego à personagem. A diretora apostou numa tendência estética - embora exótica - já bem comum, composta por longas cenas estáticas onde a personagem contempla sua própria desventura voltada para o vazio, câmeras distanciadas em planos bastante abertos, com grandes takes fixos de áreas rurais e dos subúrbios de Lima, onde aparentemente nada acontece, numa narrativa lenta com cortes inusitados que formam um mosaico com pequenos pedaços de ações.

O filme tem um tom bastante lírico e romântico de ver o mundo, calcado em alegorias e metáforas. Os diálogos (na maioria monólogos ou diálogos com o expectador) da personagem principal são construídos através de cânticos tristíssimos, numa forma que me parece muito um modo indígena, origem da protagonista, de contar histórias. Aliás, ela quase não fala, resumindo-se apenas em cantar seu canto forte e melancólico.

Fausta (Magaly Solier) é uma vítima da história de um povo. Herdeira da violência contra uma nação. Como seu tio comenta com um médico, logo no início da trama, ela é uma dessas crianças “sem alma”, condenadas pela “maldição da teta assustada”. Por isso é como é. Nesse sentido, as crianças nascidas dessas mães violentadas absorviam o medo das mães e passavam a ter uma vida repleta de privações. Ela não sofreu violência sexual, estricto sensu, mas é assolada pela violência imaginária (associada à figura masculina) trazida como uma tradição e um legado. Vive isolada do mundo, amedrontada pela violência sofrida pela mãe ainda quando a moça estava em seu ventre, ou até mesmo antes disso. Ela não se comunica com ninguém, exceto com a própria mãe. E a própria família a exclui por ser diferente dos demais. Ninguém quer ter a representação da violência que tentam esquecer sentada à mesa em todas as refeições. Também não conhece o mundo exterior, a não ser acompanhada da mãe. A comunicação entre ambas se dá através dos cânticos entoados em sua língua materna, o indígena quéchua, falado pelos habitantes à margem de Lima e pelos familiares de Fausta.

O filme é permeado de figuras femininas bastante fortes. Ao passo que o masculino é, embora não maniqueizado, associado ao violento e perverso, o feminino desponta como algo redentor. Tanto que não existem figuras masculinas de peso na trama. A força feminina é retratada partindo da própria protagonista, perpassando pela mãe, até a própria terra. A mãe, figura que aparece no início da trama, é forte e presente durante todo o filme, mesmo depois de morta. Uma mulher marcada pelo passado que tentou (em vão) ao longo da vida se esgueirar das marcas da violência e seguir adiante. Fausta é uma mulher que tenta recobrar seu lugar no mundo e libertar-se do passado que ela própria não viveu. Os traumas são fortes de tal forma que para se proteger do mundo introduziu uma batata na vagina para evitar ser violentada como sua mãe foi. A relação da protagonista com o tubérculo tem uma simbologia forte. Além de ser surreal a situação da protagonista, a relação do povo peruano com esse alimento é intrínseca. Batatas são uma grande fonte de alimentação dos peruanos. Nesse sentido, é da própria terra, mãe de todos em última instância, que Fausta busca um escudo para proteger-se do opressor. Ela busca no feminino a proteção contra o masculino ameaçador. Outro personagem feminino forte, colocado no outro lado do cabo de tensão social retratado, é a limenha abastada com quem Fausta vai trabalhar como empregada doméstica para poder pagar o funeral da mãe. Ela representa o nicho socialmente oposto ao de Fausta, mas igualmente oprimido. Afinal, todas são filhas da mesma terra, feitas do mesmo barro.

O sofrimento e a dor de Fausta são o de um povo inteiro, causados pela instabilidade social e política de uma nação, é o grande mote e pano de fundo da trama. Mas o filme é mais que isto. É um filme que gira entorno de revezes e de inúmeras (im)possibilidades de amor: o amor da mãe pela filha e a tentativa de protegê-la, mesmo que a castrando, e principalmente da busca da própria protagonista, o que ela somente compreenderá quando descobrir seus subterrâneos e conseguir definir-se. O revez de Fausta é libertar-se. Motivada pela morte da mãe a enfrentar o mundo exterior e principalmente o opressor imagético (masculino) criado em torno dela ao longo da vida, ela lança-se na busca por novos significados para o mundo e para si mesma. E expurga ao longo da trama, através do confronto com o mundo exterior, seus medos, sua miséria e seus dilemas. Fausta representa a libertação - ou pelo menos uma árdua tentativa de liberdade - de um povo de seu passado de sofrimento.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

SODADE


"Si bô 'screvê' me
'M ta 'screvê be
Si bô 'squecê me
'M ta 'squecê be
Até dia
Qui bô voltà”
                       - Cesaria Evora - "Sodade" -


É clichê, eu sei, mas é lá vai...Saudade só existe na língua portuguesa. E somente nós, herdeiros do legado lusitano, trazemos viva no peito essa melancolia lírica. Como canta Chico, “todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dosagem de lirismo”. É fato.

Como se explica a saudade? Como se traduz? Acho que ninguém consegue. Sinceramente, eu não sei. Somente sinto. E percebo que estou, a cada dia mais, condenado a sentí-la com mais intensidade. Tenho saudades incontáveis e incomensuráveis. Já é público que sou desmedido e que meio chorão. Só me resta assumir. Não posso fugir da minha natureza última.

Não importa onde eu esteja nem para onde vá, sempre sinto saudades de algo que deixei. E tendo a ficar com os olhos marejados na hora da despedida, entre acenos, revistas e maçãs na plataforma. Hoje, quando em minha nova morada, sinto saudades das pessoas que amo, deixadas para trás em idos tempos e longínquos pagos. Quando regresso do estrangeiro, “forasteiro do que vejo e ouço”, ao melhor estilo Pessoa de sentir o mundo, sinto saudades da nova vida que começo a construir. Sinto saudades dos rostos, dos cheiros dos lugares, do calor de algumas pessoas, dos sorrisos e até mesmo das ausências consentidas.

Um belo dia resolvi mudar. Arrumei a mala e abandonei um mundo bem quentinho e confortável para explorar outras paragens. Era preciso navegar. Já escrevi aqui sobre isso. E quem diria, quando retorno ao “velho mundo” que deixei, mesmo que por pouco tempo, sinto saudades do que deixo aqui no “novo mundo”.

Sentir saudade não é de todo ruim, vejo agora. E não falo isso devido à minha veia portuguesa e minha inclinação ao dramalhão. Digo porque às vezes, na distância, reconhecemos o outro e o confirmamos. Estranhamente, sinto-me mais próximo das pessoas que amo quando estou longe delas. E regresso com mais gana de revê-las. Me reconforta arrumar a mala e reencontrá-las. Da mesma forma, é reconfortante voltar para casa, “trazendo na mala bastante saudade”, assim meio Elba Ramalho (também sou um cafona assumido), e saber que vou encontrar alguém que me espera na na hora do desembarque. Saber que serei recebido com carinho pelo retorno, no porto seguro que tento construir diariamente, e mesmo que precariamente, saciarei momentaneamente a saudade que trago indelével no peito.

Hoje arrumo a mala num misto de alegria e tristeza. Aliás, quase tudo na vida é um misto desses sentimentos (sim, aqui está claro meu tombo pelo drama lusitano). Isto porque a primeira regra que aprendemos no mundo dos adultos é que não se pode ter tudo e que escolher um caminho implica, necessariamente, em abrir mão de todos os possíveis demais. De quebra, com o peso da responsabilidade pelas nossas escolhas erradas e com a incerteza de termos feito a melhor escolha. Nunca sabemos se estamos no caminho certo ou não, afinal não estamos na outra estrada para saber o que ela reserva. Isso que torna a vida tão fascinante e ao mesmo tempo angustiante.

Por falar em angústias cotidianas, lasco mais um clichê e fico por aqui. Lembro sempre da música Serra do Luar, de Leila Pinheiro, nas horas em que me bate a velha angústia existencial metafísica alemã schopenhaueriana: “Tudo é uma questão de manter a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranquilo”.

Mais uma vez a mala está arrumada, encostada ao lado na porta. E o coração mais apertado.

terça-feira, 18 de maio de 2010

LE VENT VOUS PORTERA

“Estamos acostumados que esclareçam todos os mistérios, que nos expliquem todos os pequenos segredos escondidos. Me recuso a aceitar. O mistério faz parte da vida.”
(Trecho do filme "Canções de Amor")

Sinto saudades dos tempos de adolescente, quando os sofrimentos duravam uma semanal ou um dia, ou o tempo de ouvir uma música triste, fosse qual fosse, que dizia tudo o que eu sentia naquele momento. Algo que me traduzisse e desse sentido ao mundo que estava começando a conhecer. Então eu sofria como um cão, chorava abafado no travesseiro até exaurir a dor, secava as lágrimas e ia, errático, viver da melhor maneira que conseguia, tateando no escuro em busca de luz.

Crescer é perder essa capacidade de sonhar corajosamente. Os sofrimentos da adultez duram mais tempo, são sentidos mais intensamente, calam muito mais fundo na alma, deixam marcas para sempre, mas são sentidos com mais verdade. Mesmo que sejam causados pelas mesmas ilusões adolescentes, pelos mesmos sonhos desfeitos e pelas mesmas negações. Provavelmente porque quando somos adolescentes não tememos o perigo. Porque não tivemos experiências que nos fazem, na vida adulta, puxar o freio de mão. Ser adolescente é não temer as conseqüências. A adultez nos deixa caretas e medrosos porque já passamos por essas coisas e repeti-las, ad infinitum, como no mito grego do ser original cindido e renegado a viver eternamente buscando a parte que falta, nos causa medo. Porque queremos ser como os seres originários, em última instância, queremos ser fortes e destronar Zeus, porque queremos ascender ao Olimpo sem máculas, sem mágoas, sem sofrimentos, puros e perfeitos.

“Ama-me menos, mas ama-me por muito tempo”. Esta frase encerra o filme Canções de Amor (“Les Chansons D’Amour”, 2007). E bateu como um soco no meu frágil estômago vazio. O filme desperta essa sensação adolescente e valente de acreditar no amor, na vida, no inesperado devir que é viver. O filme é escrito e dirigido pelo aclamado cineasta francês Christophe Honoré (o mesmo de Ma Mère, Dans Paris e o mais recente Non, Ma Fille, Tu N’iras Pas Danser) e conta com atuações honestas e convincentes de Louis Garrel (Os Sonhadores), Ludivine Sagnier (Paris, Eu Te amo) e Clotilde Hesme (A Bela Junie).

Trata-se de um musical delicioso, onde a atmosfera romântica de Paris é também melancólica e triste. As canções compostas por Alex Beaupain encaixam-se perfeitamente na trama e criam um vínculo com o espectador, como se a cada acorde entrássemos na alma dos personagens, sentindo suas angústias e sua solidão. As canções funcionam como uma espécie de desvelamento dos sentimentos ocultos dos personagens. Da mesma forma Honoré trabalha a fotografia do filme com maestria e sensibilidade, por exemplo, quando retrata a morte em preto e branco com belíssimas imagens congeladas, ou quando transforma a Paris das Luzes em cenário de juras de amor ou absoluta e fria solidão e desespero.

A obra é dividida em três atos: A Partida, A Ausência e O Recomeço. E trata com singeleza e profundidade temas como morte, ausência e as diversas manifestações da sexualidade humana. Mostra com delicadeza absurda as diversas nuances do amor, as várias formas de sofrer uma perda, as diversas manifestações do ciúme, as nossas inseguranças cotidianas, nossas expectativas, as cobranças em relação ao mundo, ao outro e a nós mesmos, a eterna busca por sentido e a incessante necessidade de recomeçar tudo do zero (ou juntar os cacos que restam e seguir em frente).

O filme é primoroso. O amor e sua falta é, primordialmente, o que move os personagens na trama. Com fortes influências da nouvelle vague (o diretor rende várias homenagens a Jean-Luc Godard e François Truffault) é um deleite para o espectador. É absolutamente impossível terminar de ver o filme não acreditando no recomeço.

Assisti ao filme em uma noite chuvosa e fria. Dolorosamente ausente. Necessariamente solitária. Mas livre e despreocupada com os desígnios do universo para mim. Bem nouvelle vague. Aquelas noites que de tão escuras e sombrias chegam a ser reconfortantes. Depois de ver o filme caminhei pelas ruas desertas desta cidade estranha ao meu mundo, com um guarda-chuva colorido emprestado em riste em uma mão e meu cigarro, fiel companheiro dessas horas, na outra, pensando na vida, absorto ainda nos efeitos do filme. Ouvia as batidas descompassadas do meu coração e os pingos grossos da chuva sobre o guarda-chuva. Desviava das poças d´água, dos galhos e das folhas molhadas no chão. E pensava no quanto é bom amar livremente, sem amarras, sem prisões. E sentia que esse é o amor de verdade e esse é o amor que tenho para oferecer. Sei que sou utópico e que escrevo ainda sob o efeito letárgico do filme que acabei de assistir. Mas sou assim mesmo, utopicamente cafona. E queria dividir esse sentimento, utopicamente. Queria oferecer o que sinto, partilhar, mesmo que por telefone, o que estava passando pelo meu coração naquele momento. Mas encontrei somente a secretária eletrônica pela frente.


sexta-feira, 7 de maio de 2010

MEDITAÇÃO

Acendeu mais um cigarro e preparou mais uma xícara de café forte na velha cafeteira herdada da família. Sentou-se desconfortavelmente na poltrona de veludo verde habitual e calmamente esperou a dor, velha conhecida, abrandar. Sabia que talvez precisasse de muito tempo até que aquela pontada no peito se exaurisse completamente estando ele prostrado como estava. Mas havia cansado de lutar. Com a resignação dos derrotados – ou a paciência dos sábios? - esperou o tempo passar angustiantemente arrastado, como se cada segundo tivesse grilhões tilintando pela casa. De toda sorte, queria somente que a dor findasse, que de excruciante ficasse cada vez mais branda até que, sem que ele percebesse, se tornasse apenas uma vaga lembrança de um passado remoto, tal qual uma cicatriz no joelho, que quando vista na adultez lembra vagamente a dor do tombo da primeira bicicleta da infância.

No velho apartamento cheirando a mofo o passado era tudo o que existia no presente. Acariciava o braço da poltrona com carinho, como se tocasse o corpo do ser amado, perdido na confusão de tanta noite e tanto dia. Como se essa sensação tátil abrisse um portal para uma realidade paralela, uma realidade onde as coisas tinham mais cores e o mundo fazia algum sentido.

Fechou os olhos, sentindo o toque do veludo e o cheiro do café misturado ao do mofo e ao do cigarro, e afundou no abismo escuro de si mesmo. Nesse corte com a realidade, caminhava por ruas desertas, de casas antigas, em manhãs ensolaradas tipicamente outonais. Os plátanos desfolhados ofereciam um fofo e denso tapete em tons dourados sobre a calçada de seixos. As fachadas das casas antigas, com balcões de peitoris enferrujados e pesadas portas descascadas de madeira em duas folhas despertavam-lhe uma ternura há muito perdida, lembrança dos idos tempos em que tinha por quem sorrir e motivos para querer viver. Imaginava as vidas dos moradores daqueles casebres, o que faziam, o que falavam, o que pensavam, como se vestiam, o que comiam, seus gostos, seus cheiros, suas cores e as rotinas cotidianas das casas. Pensava se existia amor ou se existia sofrimento naqueles lares. Imaginava, principalmente, como seria sua própria vida se fosse outra, se fosse numa daquelas vidas. Parou em frente a uma das casas e de pronto foi remetido à infância, ao cheiro da comida da mãe, aos gostos que as tardes eternas daquele tempo tinham. Gosto de fruta comida no pé, de pão quentinho, de aconchego e de carinho. A movimentação no interior da casa, que via através das finas cortinas de renda alvíssimas, despertavam nele uma saudade pontiaguda e lanciante do tempo que perdeu, do tempo em que a vida era mais simples e o significado de tudo mais profundo. Deu as costas à casa e continuou caminhando.

Um vento frio soprava lentamente. Puxou a gola do pesado casaco de lã, colocou as mãos nos bolsos e caminhou sobre o tapete de folhas. No fim da rua havia uma pequena praça deserta. Aproximou-se da fonte em estilo neoclássico localizada no centro, revestida de azulejos portugueses, onde um solitário querubim de bronze jorrava água, com pombos repousados sobre seus ombros, enquanto pardais cantavam seu canto tristíssimo. Espanou com as mãos as folhas de um banco em frente à fonte e recostou-se. Ouvia-se apenas o som dos pardais, cortado pelo da água jorrando e pelo vento nas copas ralas das poucas árvores. Um sol levemente morno tocava-lhe o rosto. Um toque aconchegante como o do ser que foi fiel depositário de suas mais profundas juras de amor. Sabia plenamente que jamais amou alguém tão plenamente. Sabia ser um sentimento único e definitivo. Mas o pensamento sobre esse encontro de almas pontuava exatamente isto: IMPOSSIBILIDADE. Impossibilidade de viver plenamente - na prática - o amor que sentia tão fortemente. Isto porque havia realizado uma tentativa de amor que, como quase tudo em sua vida, não chegou a ser. Impossibilidade de entregar, como um carteiro, esse amor nas mãos do destinatário. Impossibilidade de reproduzir em outro momento da vida esse sentimento, com outra pessoa - ou sozinho que fosse - , porque sabia que esse sentimento era o que tinha de mais nobre e seria absolutamente triste simplesmente sufocá-lo no peito. Embora o sentimento ainda existisse em seu coração, era como uma roupa que não serviria mais e que jamais poderia ser dada a outra pessoa, porque não serviria em ninguém, e jamais poderia ser usada por ele próprio porque não o aqueceria nas noites de inverno.

Esse sentimento era tão intenso que acabava-se em si mesmo e na negação da cotidianidade, de seu exercício diário, foi sucumbido pela dor e o que trouxe nas mãos foi guardado no fundo da alma, junto com todos os escombros do passado que tentava de todas as formas descartar e esquecer. Bom seria se conseguisse sair inteiro. Inteiro como entrou. Mas as marcas deixadas eram indeléveis e como em tudo na vida, não era possível voltar atrás.

Sentindo um desconforto físico causado pelo frio e pelo banco da praça levantou-se e continuou caminhando pelas ruas daquele lugar que não identificava. Entrou em uma cafeteria de esquina, sentou-se em uma mesa no canto do pequeno lugar, entre o balcão e uma janela que mais parecia uma vitrine, pediu um café e com ambas as mãos em concha segurou o caneco para aquecê-las. Subitamente sentiu um conforto imenso e uma vontade quase desesperada de chorar. Por tudo, por todos, pela vida inteira.

Retornou lentamente. Abriu os olhos, acostumando a retina à luz do ambiente. Inicialmente percebeu que de diferente somente o café que havia esfriado, o cigarro que havia apagado e o dia que havia escorrido no horizonte e dado lugar a uma noite escura e sem estrelas. Havia retornado à mesma vida que tinha, onde as pilhas de livros não lidos, filmes não vistos, contas não pagas, orgasmos negados e amores não vividos aumentavam a cada dia, uma vida protocolar e mecânica de oito às dezoito cercado de pessoas cinzentas, de atividades medianas em rotinas medíocres. Porém, olhando mais detidamente, percebera da experiência que acabara de ter que, apesar dos anos vividos e dos sofrimentos acumulados, ainda não havia aprendido a lidar com as frustrações, negações, ausências e privações de toda ordem. Embora não quisesse muito, queria mais. Inconformado. Amargurado. Imobilizado. Seco. Árido como um deserto. Talvez, lá no fundo da alma, quisesse voltar no tempo, como se no passado houvesse algum refúgio seguro. Como um retorno ao útero. Grande ilusão. A fonte primordial do sofrimento era a negação de que a vida era um jogo no qual ele havia sido derrotado. Suspirou profundamente. Bebeu num único gole o café amargo e frio e acendeu outro cigarro. Xeque-mate.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

A FORÇA DOS MAIS FRACOS


Pelo título parece mais um clichê. E talvez seja mesmo. Sou super clichê, piegas e cafona. Porém, terminei de assistir ao filme “Preciosa – Uma História de Esperança” (“Precious- Based on The Novel Push By Sapphire”) absolutamente mexido (Remexido!) e não consegui deixar de escrever sobre ele. É impossível não pensar na nossa própria existência, nas nossas limitações e nos nossos limites depois de ver um filme tão duro e tão forte como esse. A história poderia acontecer em qualquer lugar, logo ali ao lado das nossas casas, em qualquer bairro pobre ou favela de qualquer grande ou média cidade do país. Em qualquer lugar onde as diferenças sociais sejam abissais e onde tudo o que não esteja dentro do padrão represente algo ameaçador. É inevitável pensar no quanto nós próprios nos tornamos embrutecidos e insensíveis aos sofrimentos dos outros. E o quanto podemos nos tornar insensíveis em relação a tudo, até mesmo a nós próprios. Impossível não refletir sobre o quanto somos marginalizados e ao mesmo tempo marginalizamos tudo o que é diferente. Formamos nichos cada vez menores e cada vez em maior número. E somente nesses nichos é possível existirmos. Cada um dentro de sua grande (ou pequena) bolha.

O filme conta a história de uma adolescente comum: negra, pobre, obesa, analfabeta, discriminada, abusada e violentada de todas as formas, dentro e fora de casa. Vemos isso todos os dias, é lugar comum. Pipocam situações como esta todos os dias em manchetes sensacionalistas. O que há, então, de diferente nessa história? Talvez os resquícios de humanidade dispersos na violência do mundo, apresentada não de forma piegas, mas sim na forma embrutecida e limitada da própria pensonagem. Uma personalidade que grita e que tenta resgatar sua dignidade quando tudo lhe foi brutalmente tolhido, até mesmo a própria vida e a própria liberdade.

Claireece é uma personagem comum. Sofre como uma Macabéa. Sonha como qualquer menina do morro, como qualquer menina da vila, como qualquer menina de qualquer subúrbio. Sonhar é o único meio de fugir da violência absurda que é submetida. Quando entramos em contato com ela, não nos causa estranheza o tipo de vida que leva. O chocante, além de ver a que ponto podem chegar as pessoas e o tamanho da vileza e violência que podem cometer umas às outras, é ver o quanto isso pode afetar a vida da vítima. E não falo com compadecimento, como se ela fosse uma coitada (não que ela não seja). Mas vi uma força descomunal em uma menina de 16 anos que consegue erguer-se e sozinha  - absolutamente sozinha! - tentar reunir os poucos cacos de uma vida destruída para conseguir seguir adiante.

O filme é feito de atuações honestas, densas, simples. Não tem grandes planos, nem grandes takes. Mas tem cenas fortes, uma direção digna de Lee Daniels e um roteiro com um pesado senso de realidade. Isso é que faz dele um filme imperdível. Tem algumas cruezas que eu gosto de ver nas telas. A morbidez e estupidez humanas escrachadas num subúrbio paupérrimo, a falta de perspectivas nua na tela, uma atmosfera cinzenta e triste, como são todos os personagens da trama. É um filme que dá um nó na garganta do começo ao fim e vários socos no estômago ao longo do desenrolar da trama.

Embora o infeliz subtítulo do filme (tão infeliz quanto o título que dei a este post) aponte para esperança, ele não traz esperanças. Traz uma história de força e superação, é claro. Existe uma Preciosa etérea, outsider, que mais que alienada, veste uma carapaça e usa as armas que tem para proteger-se da violência e da dureza do seu mundo para superar as dificuldades. O bonito é ver que em um ambiente absolutamente hostil, Precious não tinha nenhuma esperança, mas mesmo assim, seguiu, mesmo assim levantou e sangrando continuou. Porque somente em frente podia seguir. Porque a única opção que tinha era de continuar vivendo.

A sensação que o filme deixa no fim é de total falta de expectativas de futuro. Uma sensação de vazio incontrolável. E a beleza dessa história está nisso: em resgatar-se, em reconstruir a própria humanidade quando não há esperança alguma.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

(IN)FINITO


“Espero as flores se abrirem como se a gente soubesse que o amor nunca vai ter fim”
(Monique Kessous - “Com Essa Cor”)


O sol se punha lentamente na linha turqueza do horizonte. Deitados lado a lado sobre a areia branquinha da praia deserta, em algum lugar qualquer do mundo, olhando para o céu muito claro e sentindo a brisa leve que soprava do mar, imersos em uma serenidade profunda, sabiam que o tempo de ambos acabaria, que todas as experiências - boas ou ruins – passariam um dia, que eles próprios passariam e deixariam de existir um para o outro, fosse objetiva ou subjetivamente, assim como terminaria aquele fim de semana escondidos numa cabana simples, sem luz elétrica, sem água quente, de paredes de barro, janelas quebradas que repousavam sobre um mar cristalino e brando, coberta de palha com frestas que refletiam os raios de sol sobre a cama improvisada no chão que os abrigava durante a noite.

A precariedade do lugar que escolheram para se despirem do mundo exterior era superada pelo fascínio e alegria de estarem juntos, porque conseguiram abandonar suas vidas, mesmo que temporariamente, deixando permanecer somente o que era mais essencial, simples e verdadeiro. Isolados de tudo, exploraram cada milésimo e cada milímetro dequeles fugazes momentos de felicidade construída com dificuldades e compartilhada com generosidade sob a luz fugidia do fim da tarde.

Com uma aguda e insistente dor no peito - predominante em ambos - porque sabiam do fim inexorável, desejavam que aquele momento durasse para toda a vida. Eram demasiado humanos e bem no fundo desejavam, como todo humano, a eternidade. E essa era a fonte do sofrimento que carregavam. Antecipavam temores tentando antever um futuro incerto. De um lado rondava o fantasma do desejo de infinitude, da sede pelo que não tinham; de outro pairava o fantasma da própria finitude, do inevitável e indesejável fim. Em última instância, eram todos sofrimentos com a mesma origem: medo. Um medo primitivo, um pouco covarde e egoísta, mas extremamente humano.

Percebiam que o mundo onde viviam era de ilusões, de formas enganosas e de sentimentos catárticos. Conseguiam, pelo conhecimento que tinham acumulado ao longo da vida, encontrar formas de se livrarem das sombras e de viverem, mesmo precariamente, a não-ilusão, fosse em conexão com o universo, sentados em postura de meditação, alinhando seus chakras e expandindo suas consciências, fosse em longas e furtivas noites entre cigarros e conhaque de alcatrão.Tinham um longo e dificílimo caminho a percorrer. Porque sabiam que o amor que sentiam era demasiado terreno e material, por mais etéreo e sublime que fosse. E por mais que tentassem elevar seus pensamentos, submergiam em desejos ávidos.

Possuirem uma compreensão mais ampliada da realidade e saberem que tudo era finito os tornava diferentes dos demais. Mais duros, mais secos, sem grandes ilusões de eternidades e infinitudes, porém, mais reais e mais livres. Não tinham as grandes ilusões românticas de viverem juntos para sempre, de terem um amor que superasse tudo, até mesmo a morte. Desejavam-se com fúria visceral, mas desejavam-se aqui e agora, como se fosse eterno no momento presente.

Eram finitos e determinados, mas tinham ilimitadas possibilidades futuras. E com isso podiam voar, usando a imaginação, para onde seus corações quisessem. E sabiam que a finitude, assim como a infinitude, é também uma grande ilusão. Compreendiam que viviam em grandes ou pequenos ciclos de felicidades e tristezas. Isso dava a eles uma dimensão maior de suas realidades interiores.

Eram cúmplices na mágica paralisação do tempo que promoviam quando seus olhares se cruzavam, suas mãos espalmadas se tocavam e seus corpos se uniam sobre a areia da praia, quando podiam ouvir seus corações batendo descompassados, misturados ao som do vento e das ondas, atravessados pelos sussurros de ansiedade e juras de pertencimento mútuo. Tinham a mágica capacidade de congelar as horas, quando seus lábios se tocavam e seus pensamentos viajavam por lugares inimagináveis. Mesmo se a realidade implacável mostrasse no relógio o tempo esvaído, podiam, abraçados, voar para longe, dentro um do outro e de si mesmos.

Os minutos transcorreram, transformando-se em horas, que viraram dias, semanas e meses. E eles queriam que os meses virassem anos, muitos anos. Vividos minuto após minuto, como se o instante seguinte pudesse não chegar. Até o dia em que realmente não chegasse.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

DAY IN, DAY OUT

                                                                           
                                                                    For my sweet "B."


“That same old voodoo follows me about
That same old pounding in my heart, whenever I think of you
And baby I think of you
Day in and day out

Day out - day in
I needn’t tell you how my days begin
When I awake I get up with a tingle
One possibility in view
That possibility of maybe seeing you”
        - Billie Holiday -
 
Mas também o amanhecer podia ser outro. Imóvel, ainda deitado na cama, com olhos fixos em um ponto imaginário, ele era um amontoado de emoções liquidificadas esparsas sob os lençóis, entre gostos e cheiros da noite anterior. Não tinha passado ou futuro naquele momento. Era apenas devir e desejo. O desejo de ser possuído e consumido pelo ser que reconhecera amado e amante. Queria reter o amor infinita e indefinidamente, queria entrar no outro e queria ser invadido por ele, rasgando-lhe as carnes do peito, deixando marcas indeléveis. Queria ser consumido pelo amor como fogo, transmutando seu corpo e sua alma em outros elementos quaisquer. Cinzas que fossem. Transmutar era mais que um conceito, era uma necessidade e uma certeza entre eles. Sabiam-se incapazes de permanecerem os mesmos. Ao passo que eram capazes de amar intensamente, sabiam que esse amor poderia não durar a vida toda como sonhavam, porque existia o espectro da realidade batendo à porta, por mais que o trancassem para o lado de fora, ele estava sempre presente. Foram inexoravelmente condenados à serem conscientes de si mesmos e reconheciam-se limitados, principalmente no que se referia à entregas e à vida cotidiana. Haviam tido até então um amor que não era parte do contínuo da vida diária de cada um, embora fossem presentes um para o outro ao longo das vinte e tantas intermináveis horas do dia em que não estavam juntos. Era um amor de cativeiro, encerrado entre quatro paredes na maior parte do exíguo tempo compartilhado que tinham. Mas não um amor marginal, apenas um amor desprovido de cotidianidade. Experimentavam, vez ou outra, pequenos fragmentos do dia a dia, doses ínfimas de uma vida a dois que sentiam, bem no fundo de seus corações, ser o mais próximo da plenitude e da paz que haviam conseguido ao longo de suas existências erráticas. Saboreavam cada momento como um fruto maduro, regozijavam-se com esses pequenos átimos de felicidade. Seus momentos eram fugazes e intensos, plenos e precários, mágicos e duramente reais. Eram sonhos pautados pelas incertezas e mistérios da completude.
 
Embora soubesse que era impossível sair dessa fantástica aventura amorosa e de autoconhecimento sendo o mesmo e que as marcas deixadas em seu coração eram indeléveis e imprescindíveis para que se tornasse um humano melhor, não queria aquele vazio, aquela dor, aquela navalha cravada no peito todas as manhãs, quando abria os olhos e permanecia inerte por um longo tempo com olhar perdido entre as ranhuras das paredes. Queria mais, queria luz, queria sair das sombras de si mesmo. Havia recebido a condenação mais atroz concedida a um amante: amar com uma intensidade extrema, até o limite de suas forças, ao ponto de causar dores profundas e deixar marcas eternas.
 
O amor que sentia libertava e paradoxalmente aprisionava. Libertava o ser amado, desobrigando-o de qualquer compromisso ou retribuição, mas aprisionava a ele próprio no amor que sentia. Era cativo de si mesmo, soterrado por um sentimento vindo das profundezas de seus abismos escuros e que certamente acabaria por consumi-lo.
 
Reconhecer o amor pelo outro como libertador não o tornava bom, belo ou justo. Pelo contrário. Ele era hobbesianamente mau. Queria ver aquele ser que dormia indefeso ao seu lado invadido por uma felicidade proporcionada por ele, sem gratidão, reconhecimento ou retribuição. Nutria-se do amor refletido nos olhos do outro. E isso era, em última instância, totalmente narcisista. Não conseguia saber, dissecando tão profundamente as visceras do amor, se amava outro ser, se amava o amor pelo outro, se amava o seu próprio amor dispensado ao outro, se amava sua capacidade de amar ou se era uma mera projeção de seu frêmito de amar após anos de tentativas inúteis e fracassos.
 
Sentia, porém, com absoluta clareza, que amar aquele ser assustado com a fúria de um sentimento novo para ambos era a única redenção possível, a única alternativa para evitar a miséria humana que tão bem conheciam. Quando ouvia daquela boca amada que era amado e quando via nos olhos molhados e profundamente tristes do outro que o amor que sentia era correspondido, seu peito bramia extasiado, seu coração amargurado aquecia-se e sentia sua alma expandir-se em todas as direções.
 
Entretanto, imediatamente após essa explosão de paixão em fúria eram invadidos por uma força contrária avassaladora. Acordados do transe amoroso ouviam as batidas prementes da realidade na porta. E vestiam suas carapaças, porque o sol já havia se posto e era hora de partir, porque era a única forma de suportarem suas existências separados e porque era a maneira que encontraram para proteger, precariamente, o amor que construiram.

BUT TIME TAKES TIME...


(Para ler ao som de Chet Baker - “My Funny Valentine”)

A brasa do cigarro cintilava na escuridão, rasgando a penumbra num risco alaranjado. Debruçado sobre o balcão do segundo andar do casarão antigo de esquina contemplava a noite silenciosa e branda, acompanhado de vinho tinto, cigarros e um Baker triste na velha vitrola Webster Chicago 78 rpm no fundo da sala. Sentia uma paz tamanha que todas as guerras do mundo poderiam ser declaradas, bombas nucleares e terremotos poderiam assolar seu bairro, o planeta poderia ser invadido por povos alienígenas querendo escravizar os humanos, que nada lhe tiraria aquela sensação de plenitude. Era uma quase comunhão com o cosmos, com Deus, consigo. Sentia que finalmente havia feito as pazes com seu coração. Porque finalmente havia descoberto que todas aquelas histórias que lia nos livros poderiam ser, resguardadas as proporções, reais. Não, não queria conquistar uma donzela vitoriana envolta em rendas e véus, tampouco ser um cavaleiro em armadura reluzente enfrentando batalhões de bárbaros. Queria os dias límpidos e iluminados de outono, despertares com beijos de hortelã e sorrisos sonolentos, queria todas as manhãs do mundo e entardeceres com o sol se pondo atrás da coxilha, queria as coisas simples e plenas que somente o cotidiano compartilhado com quem se ama pode proporcionar.

Objetivamente pouca coisa havia mudado em sua vida. A não ser, talvez, uma esperança renovada na vida e nas pessoas. Continuava vivendo no mesmo sobrado herdado do pai - o único bem da família de poucas posses - de fachada caiada já descascada, portas e janelas de madeira de lei corroídas e ladrilhos hidráulicos desgastados no piso frio. Continuava acordando cedo para ver o sol entrar pelas amplas janelas, batendo tapetes puídos e almofadas velhas, espalhando travesseiros e cobertas pelo quintal para tomarem sol, alvejando lençóis de algodão, varrendo os cantos e as frestas do assoalho de imbuia, num ritual para espantar os espíritos da noite que espreitavam pelos cantos empoirados. Espantava o mau humor, característico de sua personalidade soturna e reservada, com pranayamas e assanas logo nos primeiros raios da manhã, sentado em postura de lótus no pequeno e florido jardim que cultivava com esmero nos longos e solitários finais de semana no velho casarão. Acendia velas para São Jorge, incensos para Shiva e fazia oferendas de mandala para Padmasambhava. Tinha o mala de mantras sempre em três voltas no pulso direito e a guia de Iemanjá no pescoço.

Executava todas as lides cotidianas do mesmo modo como fazia há anos, com a mesma obstinação, detalhamento e zelo. E mantinha as mesmas dificuldades cotidianas habituais, como falta de vontade de viver, falta de recursos financeiros para se manter com conforto e a amargura contida de não ter realizado seus desejos mais íntimos. Dificuldades combatidas com bravura, mesmo que vez ou outra os cansaços o fizessem repensar os desígnios de Deus.

Apesar de todas essas mazelas, via nessas pequenas epifanias cotidianas - em especial uma -, que sem mais surgiam em sua vida, que ainda existem motivos para seguir adiante. De toda sorte, agradeceu ao universo, reverenciou Shiva com um mudrá, prostrou-se três vezes diante de Buda e saudou Ogum com suas armas por sentir-se um dos escolhidos. Mesmo que não soubesse exatamente escolhido para que, tinha um leve pressentimento que algo de bom e belo havia por trás daqueles olhos marejados, negros e profundos que visitavam-no inicialmente vez ou outra, sempre no fim da tarde, e que iam embora logo que a noite chegava, mas que agora começavam a ser presentes, fisicamente ou não, com cada vez mais força e traziam à tona um homem esquecido, soterrado pelas cotidianidades. Sentia a possibilidade de um carinho que o fizesse querer sorrir quando acordasse, sentir um arrepio percorrer a espinha e ver um brilho duradouro no olhar.

Debruçado sobre o balcão, entre uma tragada e outra, enquanto espelia a fumaça densa dos pulmões, pensava nas armadilhas da vida e no quão imbricados podem ser caminhos que escolhera. Estupefato pelo devir, tentava dar o devido tempo ao tempo e a devida importância às experiências que vivia. Aprendera, embora tardiamente e a duras penas, a esperar o tempo certo de cada coisa. Mantinha aceso o desejo fremente pelo figo maduro e suculento, mas apreendera a esperar o fruto amadurecer no pé, vendo-o diariamente crescer e aprontar-se. Aprendera a esperar o exato tempo de preparar a terra, semear, ver os botões germinados e contemplar as flores desabrochadas. Finalmente estava com o coração sereno, embora em brasa. Finalmente estava preparado para ser a morada de um novo amor.

terça-feira, 30 de março de 2010

TOMBER DANS SON PROPRE PIÈGE



Ela agora só pode amar
com a paixão contida
da borboleta espetada na placa de isopor

(De vez enquando a asa estala
e sai voando pela sala
e quer quebrar o abajour)


- Marcelo Sandmann: “As Coisas da Casa” -



Poderia ser uma aranha presa em uma teia. Uma aranha mutante, errática e incapaz, que teceu sua própria teia para depois prender-se nela. Num jogo de tentativa e erro, ela tinha feito as escolhas erradas. Entre dois caminhos seguiu o que tinha mais coração, porém isso não foi garantia de felicidade. Aprisionada na armadilha criada por ela própria, só restava-lhe sufocar o próprio grito e engolir a seco aquele gosto amargo da boca. Sabia de suas escolhas e sabia que estava condenada a viver espreitando a vida de longe, com a voz abafada, nas sombras da realidade. Às vezes desejava gritar debruçada sobre as janelas e ver seu grito ecoar mar adentro até ser ouvido do outro lado do oceano, rompendo a invisibilidade na qual havia se colocado por amor. Mas sua garganta estava tão seca que dela não sairia nenhum som.

Após mais uma noite de espera vã por um sinal que fosse daquele que era sua maior razão de estar ali e estar viva, parou em frente à janela, como fazia inúmeras vezes ao dia, skinneriana, buscando o vulto que a surpreenderia em frente ao prédio, com rosas vermelhas ou brancas nos braços, atravessando a rua, com o sóbrio chapéu panamá e a alinhada capa de gabardine preta habituais, pulando as poças d'água daqueles dias chuvosos de novembro com seus sapatos de pelica impecavelmente lustrados. Então, antes de entrar no prédio, ele olharia para cima e a veria na janela, usando o robe drapeado de seda turquesa cheirando a lavanda e trocariam o olhar de ternura e cumplicidade que somente os amantes possuem.

Parada em frente à janela ainda consevava o ar altivo e um leve resquício de dignidade. Olhando a rua absolutamente vazia foi invadida pelo vazio de tudo e viu sua imagem refletida no vidro embaçado. Passou a mão esquerda no vidro para limpá-lo, enquanto segurava com a direita a gola do roupão puído, desbotado e manchado de café.

Havia passado dos trinta, bolsas sob os olhos cansados, vincos fundos na face que não reconhecia mais como sua, a pele cada vez mais pálida, cada vez mais marcada, cada vez mais manchada. Aproximou o rosto do vidro, para ver sua imagem com mais nitidez e com ambas as mãos retirou da face os cabelos ralos e ressecados, desgrenhados da noite insone e solitária, entre cigarros e álcool, amarrando-os num coque. Com uma delicadeza de gueixa despindo as várias camadas de quimonos de pura seda, foi tirando o velho roupão, deixando desvelar seu corpo de uma alvura desconcertante de porcela. Não coseguiu reconhecer aquela mulher magra, amarga, embrutecida e cinzenta.

O rosto estava tão próximo da janela que conseguia sentir seu próprio hálito. Tentou  buscar-se no fundo dos olhos embotados de tristeza e lágrimas. Pouco restou do verde cristalino do passado naqueles olhos amendoados. Deu início a uma viagem pelas memórias do seu corpo, um desbravamento doloroso feito de ilusões desfeitas, lembranças tristes de felicidades fugazes, maus orgasmos e desgostos perenes. Tocou levemente os vincos da testa, em linhas horizontais de têmpora a têmpora, e em linhas verticais fundas entre as sobrancelhas, acariciou com candura e delicadeza suas pálpebras escuras, as olheiras fundas, as maçãs do rosto marcadas pelo tempo implacável. Deteve-se longamente na boca sulcada, sem qualquer resquício de sorriso, uma boca fina, levemente caída nos cantos, de onde não sairia nada além de fel e um hálido azedo de cigarros, conhaque de alcatrão e cafés com fartas doses de whisky da noite anterior. Daquela boca sairia, no máximo, o som sussurrado de um bolero antigo qualquer, cantarolado enquanto tentava distrair o tempo caminhando pela casa vazia com seu cigarro longo entre os dedos finos, deixando um rastro de fumaça que dançava na densa penumbra, num raro momento em que se ouvia qualquer som no apartamento sombrio. A boca que tantas vezes suplicou carinhos e foi capaz de tantas juras de amor eterno era a mesma de onde sairam lanças que feriram fundo e selaram seu destino. Desceu as mãos pelo pescoço e pelo colo, como se buscasse alguma familiaridade ou alguma lembrança que a confortasse. Observou detidamente seu seus seios flácidos, pálidos e sem vida iluminados pela luz fraca do dia nublado que entrava pela enorme janela do quarto. Aquele colo sedento por carícias e roçar de bocas, que tantas vezes arrepiou-se e estremeceu de êxtase, era agora uma casa vazia, um envólucro seco e morto cobrindo seu coração, o único órgão que consegue reconhecer como vivo, porque pulsa dolorido entre tantas vísceras. Desceu até o ventre árido. Relembrou de todas as vezes que exterminou, por egoísmo, qualquer possibilidade de vida existente em seu ventre. Até o ponto de tornar-se incapaz de gerar qualquer vida, seja dentro ou fora.

Sozinha, envelhecida, amargurada, sem conseguir imaginar qualquer futuro, nua de corpo e alma em frente à grande janela do segundo andar do sobrado antigo de frente para o cais do porto, localizado na zona mais decadente da cidade, difusa na penumbra levemente cortada pela luz vinda da rua, ela via o tempo ruir, o dia de domingo escorrer lento e viscoso entre suas incertezas crescentes, inerte e condenada em sua própria armadilha.

quinta-feira, 11 de março de 2010

DEIXANDO DE SER GAUCHE PELO MENOS UMA VEZ NA VIDA

Ele sabia bem o que o poeta quis dizer. Em seu ouvido a mesma voz do mesmo anjo torto sussurrava bem baixinho: “Vai! vai ser gauche na vida”. E ele foi. Era uma noite clara como poucas vezes havia visto. Silenciosa e um tanto fria. Ele caminhou pelas ruas absolutamente desertas, quase tão desertas quanto seu próprio coração. A lua de São Jorge iluminava, branca e avassaladora, seus escuros caminhos interiores. A medida que adentrava a escuridão e essa escuridão ia sendo clareada pela luz da lua, como se o breu fosse cortado pelas armas de Jorge, via com mais precisão o tempo que se aproximava. A cada passo que dava percebia melhor o tempo que perdeu alimentando-se de migalhas de carinho e atenção, sua incongruência, suas negativas, suas impossibilidades, suas tentativas de felicidade ilusória e seus momentos fugazes de alegria, suas noites insones, imerso em dores, jazz, cigarros e vinho barato.

Conseguia contemplar racionalmente a efemeridade da vida, mas seu coração sempre negava toda racionalidade. Sabia claramente que possuía um coração que o boicotava e que "um coração selvagem, cego e apaixonado" era eufemismo para uma tendência auto-destrutiva. Eufemismos e fugas de ralidade com sofismas sofisticados eram sua especialidade. Dom Quixote lutando contra gigantes imaginários.

Sabia-se errático, havia desejado de tudo ao longo da vida, usando e abusando do verbo provar, queria a sede e a fome eternas de amar e desejar. Via-se agora perdido no meio da vida. Via seus sonhos naufragarem, via que não havia nem sequer tentado realizar determinadas coisas e que as coisas que tentou com mais convicção haviam sido grotescos fracassos. Havia sido impulsivo, intemperante. Mas estava despertando do sono letárgico, guiado pela lua e pela lança de Jorge, talvez, ou pela infinita compaixão de Buda, ou pelo perdão de Jesusinho. Ou simplesmente por um psicanalítico e avassalador insight.

Desejava profundamente, ao melhor estilo Fernando Pessoa, “sair para fora de todas as casas, de todas lógicas e de todas as sacadas, e ir ser selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos, entre tombos, e perigos e ausências de amanhãs”. Era uma vontade de fugir de tudo e ver o que é mais essencial e profundo. Necessitava entrar em contato com o que era mais essencial em si e na vida, sem as quinquilharias do cotidiano, sem as interferências do dia-a-dia, sem precisar “dourar pílulas”, sem máscaras, sem fantasias, porque sabia que da noite para o dia não ia crescer. Havia chegado num ponto que de tanto pensar em si mesmo e na realidade que o cercava já não sabia mais o que era sonho, ilusão e o que era realidade. Já não sabia se o que pensava era realmente o que pensava e o que via era realmente o que via ou se havia criado uma realidade paralela (às vezes mais colorida, em outras muito mais cinzenta), onde sonho e realidade eram tecidos da mesma matéria-prima, onde ambos eram, por fim, a mesma coisa. Em todo caso, buscava sem cessar o que havia de mais essencial e verdadeiro, pois já havia cansado de varar noites em busca de algo incerto e obscuro, mesmo que guardasse quase com devoção as marcas conquistadas nas lutas contra o rei e nas discussões com Deus.

Depois de caminhar por horas percebeu que estava longe de casa e que não havia mais como voltar. Conseguia ver bem ao fundo, do alto de um morro, a cidade que contemplava como um amontoado de pontos luminosos longínquos. Como um Sidarta, sentou-se na parte mais alta do morro, isolado de todos e de quase tudo. Via os milhares de pontos luminosos no céu abobadado e lembrara que havia lido - não sabia onde - que aquelas estrelas que via não existiam mais, que eram apenas um resquício da luz que restara, viajando milhares de anos luz perdida no espaço, eram apenas a fagulha que restara do que não mais existia, perdida na imensidão até chegar, como um eco longínquo, como uma reminiscência. O céu salpicado, formando uma abóbada luminosa, quase unia-se às luzes da cidade. Da mesma forma via que nada lá embaixo era da mesma forma que foi, se é que foi um dia da forma como pensava. E ele também não era. E como queria poder voltar no tempo e conseguir manter tudo como sempre foi! Mais um pensamento egoísta e infantil absolutamente impossível de realizar, ponderou.

Deitou-se sobre a grama um tanto úmida de orvalho, sentindo todo seu corpo em contato com a terra. Iluminado pela noite, fechou os olhos, respirou profundamente incontáveis vezes e finalmente sentiu-se pela primeira vez na vida sendo parte de algo maior que ele próprio, absolutamente atemporal e efêmero. Sentiu seu corpo estremecer num calafrio brando e deixou-se levar pelo esvaziamento e pela ausência de sentimentos. Como um ex-voto aos deuses, abandonou-se, ao passo que era esquecido pelo resto da humanidade e a esquecia. E finalmente desapareceu no infinito como uma fagulha de luz entre as estrelas mortas.

sexta-feira, 5 de março de 2010

WESTERN TRAGICÔMICO

Coração apertado na plataforma. Atraso fenomenal multiplicado por mil, pela ansiedade e pela saudade. Ele sabia que ela seria uma das poucas pessoas, se não a única, que viria para o longínquo lugar onde ele vivia somente para vê-lo, sem titubear, enfrentando uma viagem cansativa, que mais parecia uma daquelas comitivas de carroças puxadas por juntas de bois, e a chegada em um paradouro deprimente. Quase dava para ver a bola de feno rolando pela rua poeirenta e o som do vento nas copas das árvores. Ele valorizava muito o esforço e o desprendimento dela em vir.

Noite alta já, aproxima-se no meio da escuridão um ponto luminoso, talvez do lampião da carroça que puxava a comitiva. Finalmente ela conseguiu desembarcar. Abraçaram-se longamente. Rumaram para casa em altas e divertidas conversas, como se o tempo não tivesse passado e a distância não existisse. E realmente não existia distância nem tempo no amor deles.

Ansiosos e afoitos um pelo outro buscaram pela noite da cidade velha algo que os divertisse como em idos tempos. Sabiam que não era fácil viver em terra de chimangos e maragatos (e realmente não foi), da mesma forma que era praticamente impossível encontrar um restaurante aberto por volta da meia-noite, onde pudessem sentar, comer calmamente e conversarem sem pressa. A província tem hábitos bem característicos.

Passaram por situações peculiares, irritantes e tristes, que poderiam ter sido muito piores se não estivessem juntos. Sentiam-se dois forasteiros procurando um Saloon, estalando botas de couro e tilindando esporas rua afora, com suas calças justas e chapéus de abas largas, num vilarejo esquecido no oeste dos Estados Unidos do século XVIII. Cenário digno de John Wayne.

Enquanto caminhavam pelas ruas passavam pelas pessoas em grupos nas esquinas, encostadas nos carros estacionados com a porta do porta-malas erguido e música alta ou subindo e descendo de carro avenida principal. Essa cena automaticamente reportou a um carrossel girando, girando, girando, e àquela melodia insuportável de caixinha de música que os parques de diversões tocam enquanto as pessoas estão sentadas nos cavalinhos que sobem e descem, sobem e descem. Poderiam elencar com tranquilidade as dez coisas que somente aquele lugar tinha. Mas não, o objetivo deles era outro, de preferência que contemplasse esquecer definitivamente onde estavam. Ademais, haviam decidido não reclamar da vida e não verem o lado ruim das coisas. Sendo assim, como duas Polianas peregrinaram pela noite insólita, o que somente terminou quando, vencidos pelo cansaço e pela certeza de não conseguirem encontrar nada para comer além de cachorro-quente de esquina, decidiram rumar, com seus estômagos preservados da bomba de efeito retardado da esquina, a um bar que ele havia descoberto há pouco. Um oásis no meio do caos. Música boa, ambiente bonito, pessoas interessantes. Nem parecia a cidade que haviam visto poucas quadras atrás. Tiraram seus chapéus e suas esporas e os deixaram na soleira da porta.

Bacantes que eram, beberam, dançaram, cantaram em coro, mataram a vontade um do outro, contaram histórias e principalmente celebraram o mais puro e singelo amor, aquele amor desinteressado que sentiam reciprocamente. Uma noite memorável. Mas a noite na província acaba cedo. Ou eles que costumavam se estenderem demais em suas noitadas. Retornaram para casa, trôpegos e felizes. E repousaram exauridos e satisfeitos.

O dia seguinte amanheceu bonito, embora quente. Passearam pela cidade deserta e rumaram para casa munidos de um pote de sorvete enorme, trazido em riste. Foi um dia de preguiça, o que ambos adoravam: soneca, filme, muito sorvete. Já a noite foi eufemisticamente peculiar. No início foram a um bar frequentado por ele com certa frequência, sentaram-se em uma mesa na beira da calçada, de frente para a praça central. O clima estava agradável e ao fundo ouviram Nina Simone cantar lindamente I Loves You, Porgy. Foram momentos deliciosos que infelizmente duraram pouco. Quando o bar estava prestes a fechar, peregrinaram, mais uma vez, a outros lugares. E a noite terminou num boteco de mau gosto, com cerveja ruim e pagode.

No fim da noite, já em casa, exaustos e jogados na cama de pijama, chapéus, botas e esporas pendurados, entre smirnoff ice e doces de confeitaria, riram de suas próprias desgraças, divagaram sobre a existência, constituiram tratados de psicanálise, filosofia, sociologia e relações humanas, fizeram terapia em grupo, aconselharam-se mutuamente, confessaram-se, deram palpites e pitacos que iam de moda à vida sexual (própria e alheia) e praticaram seu esporte favorito: falar mal dos homens.

Quando o sol raiou, ainda com fôlego para horas de boas gargalhadas, resolveram dormir, com o coração em festa e aquele gosto bom de estarem juntos, embora soubessem que o sonho tinha prazo de validade e esse prazo estava prestes a acabar e a realidade invadiria furiosa suas vidas e seria inevitável esconder as lágrimas na despedida.