terça-feira, 30 de março de 2010

TOMBER DANS SON PROPRE PIÈGE



Ela agora só pode amar
com a paixão contida
da borboleta espetada na placa de isopor

(De vez enquando a asa estala
e sai voando pela sala
e quer quebrar o abajour)


- Marcelo Sandmann: “As Coisas da Casa” -



Poderia ser uma aranha presa em uma teia. Uma aranha mutante, errática e incapaz, que teceu sua própria teia para depois prender-se nela. Num jogo de tentativa e erro, ela tinha feito as escolhas erradas. Entre dois caminhos seguiu o que tinha mais coração, porém isso não foi garantia de felicidade. Aprisionada na armadilha criada por ela própria, só restava-lhe sufocar o próprio grito e engolir a seco aquele gosto amargo da boca. Sabia de suas escolhas e sabia que estava condenada a viver espreitando a vida de longe, com a voz abafada, nas sombras da realidade. Às vezes desejava gritar debruçada sobre as janelas e ver seu grito ecoar mar adentro até ser ouvido do outro lado do oceano, rompendo a invisibilidade na qual havia se colocado por amor. Mas sua garganta estava tão seca que dela não sairia nenhum som.

Após mais uma noite de espera vã por um sinal que fosse daquele que era sua maior razão de estar ali e estar viva, parou em frente à janela, como fazia inúmeras vezes ao dia, skinneriana, buscando o vulto que a surpreenderia em frente ao prédio, com rosas vermelhas ou brancas nos braços, atravessando a rua, com o sóbrio chapéu panamá e a alinhada capa de gabardine preta habituais, pulando as poças d'água daqueles dias chuvosos de novembro com seus sapatos de pelica impecavelmente lustrados. Então, antes de entrar no prédio, ele olharia para cima e a veria na janela, usando o robe drapeado de seda turquesa cheirando a lavanda e trocariam o olhar de ternura e cumplicidade que somente os amantes possuem.

Parada em frente à janela ainda consevava o ar altivo e um leve resquício de dignidade. Olhando a rua absolutamente vazia foi invadida pelo vazio de tudo e viu sua imagem refletida no vidro embaçado. Passou a mão esquerda no vidro para limpá-lo, enquanto segurava com a direita a gola do roupão puído, desbotado e manchado de café.

Havia passado dos trinta, bolsas sob os olhos cansados, vincos fundos na face que não reconhecia mais como sua, a pele cada vez mais pálida, cada vez mais marcada, cada vez mais manchada. Aproximou o rosto do vidro, para ver sua imagem com mais nitidez e com ambas as mãos retirou da face os cabelos ralos e ressecados, desgrenhados da noite insone e solitária, entre cigarros e álcool, amarrando-os num coque. Com uma delicadeza de gueixa despindo as várias camadas de quimonos de pura seda, foi tirando o velho roupão, deixando desvelar seu corpo de uma alvura desconcertante de porcela. Não coseguiu reconhecer aquela mulher magra, amarga, embrutecida e cinzenta.

O rosto estava tão próximo da janela que conseguia sentir seu próprio hálito. Tentou  buscar-se no fundo dos olhos embotados de tristeza e lágrimas. Pouco restou do verde cristalino do passado naqueles olhos amendoados. Deu início a uma viagem pelas memórias do seu corpo, um desbravamento doloroso feito de ilusões desfeitas, lembranças tristes de felicidades fugazes, maus orgasmos e desgostos perenes. Tocou levemente os vincos da testa, em linhas horizontais de têmpora a têmpora, e em linhas verticais fundas entre as sobrancelhas, acariciou com candura e delicadeza suas pálpebras escuras, as olheiras fundas, as maçãs do rosto marcadas pelo tempo implacável. Deteve-se longamente na boca sulcada, sem qualquer resquício de sorriso, uma boca fina, levemente caída nos cantos, de onde não sairia nada além de fel e um hálido azedo de cigarros, conhaque de alcatrão e cafés com fartas doses de whisky da noite anterior. Daquela boca sairia, no máximo, o som sussurrado de um bolero antigo qualquer, cantarolado enquanto tentava distrair o tempo caminhando pela casa vazia com seu cigarro longo entre os dedos finos, deixando um rastro de fumaça que dançava na densa penumbra, num raro momento em que se ouvia qualquer som no apartamento sombrio. A boca que tantas vezes suplicou carinhos e foi capaz de tantas juras de amor eterno era a mesma de onde sairam lanças que feriram fundo e selaram seu destino. Desceu as mãos pelo pescoço e pelo colo, como se buscasse alguma familiaridade ou alguma lembrança que a confortasse. Observou detidamente seu seus seios flácidos, pálidos e sem vida iluminados pela luz fraca do dia nublado que entrava pela enorme janela do quarto. Aquele colo sedento por carícias e roçar de bocas, que tantas vezes arrepiou-se e estremeceu de êxtase, era agora uma casa vazia, um envólucro seco e morto cobrindo seu coração, o único órgão que consegue reconhecer como vivo, porque pulsa dolorido entre tantas vísceras. Desceu até o ventre árido. Relembrou de todas as vezes que exterminou, por egoísmo, qualquer possibilidade de vida existente em seu ventre. Até o ponto de tornar-se incapaz de gerar qualquer vida, seja dentro ou fora.

Sozinha, envelhecida, amargurada, sem conseguir imaginar qualquer futuro, nua de corpo e alma em frente à grande janela do segundo andar do sobrado antigo de frente para o cais do porto, localizado na zona mais decadente da cidade, difusa na penumbra levemente cortada pela luz vinda da rua, ela via o tempo ruir, o dia de domingo escorrer lento e viscoso entre suas incertezas crescentes, inerte e condenada em sua própria armadilha.

quinta-feira, 11 de março de 2010

DEIXANDO DE SER GAUCHE PELO MENOS UMA VEZ NA VIDA

Ele sabia bem o que o poeta quis dizer. Em seu ouvido a mesma voz do mesmo anjo torto sussurrava bem baixinho: “Vai! vai ser gauche na vida”. E ele foi. Era uma noite clara como poucas vezes havia visto. Silenciosa e um tanto fria. Ele caminhou pelas ruas absolutamente desertas, quase tão desertas quanto seu próprio coração. A lua de São Jorge iluminava, branca e avassaladora, seus escuros caminhos interiores. A medida que adentrava a escuridão e essa escuridão ia sendo clareada pela luz da lua, como se o breu fosse cortado pelas armas de Jorge, via com mais precisão o tempo que se aproximava. A cada passo que dava percebia melhor o tempo que perdeu alimentando-se de migalhas de carinho e atenção, sua incongruência, suas negativas, suas impossibilidades, suas tentativas de felicidade ilusória e seus momentos fugazes de alegria, suas noites insones, imerso em dores, jazz, cigarros e vinho barato.

Conseguia contemplar racionalmente a efemeridade da vida, mas seu coração sempre negava toda racionalidade. Sabia claramente que possuía um coração que o boicotava e que "um coração selvagem, cego e apaixonado" era eufemismo para uma tendência auto-destrutiva. Eufemismos e fugas de ralidade com sofismas sofisticados eram sua especialidade. Dom Quixote lutando contra gigantes imaginários.

Sabia-se errático, havia desejado de tudo ao longo da vida, usando e abusando do verbo provar, queria a sede e a fome eternas de amar e desejar. Via-se agora perdido no meio da vida. Via seus sonhos naufragarem, via que não havia nem sequer tentado realizar determinadas coisas e que as coisas que tentou com mais convicção haviam sido grotescos fracassos. Havia sido impulsivo, intemperante. Mas estava despertando do sono letárgico, guiado pela lua e pela lança de Jorge, talvez, ou pela infinita compaixão de Buda, ou pelo perdão de Jesusinho. Ou simplesmente por um psicanalítico e avassalador insight.

Desejava profundamente, ao melhor estilo Fernando Pessoa, “sair para fora de todas as casas, de todas lógicas e de todas as sacadas, e ir ser selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos, entre tombos, e perigos e ausências de amanhãs”. Era uma vontade de fugir de tudo e ver o que é mais essencial e profundo. Necessitava entrar em contato com o que era mais essencial em si e na vida, sem as quinquilharias do cotidiano, sem as interferências do dia-a-dia, sem precisar “dourar pílulas”, sem máscaras, sem fantasias, porque sabia que da noite para o dia não ia crescer. Havia chegado num ponto que de tanto pensar em si mesmo e na realidade que o cercava já não sabia mais o que era sonho, ilusão e o que era realidade. Já não sabia se o que pensava era realmente o que pensava e o que via era realmente o que via ou se havia criado uma realidade paralela (às vezes mais colorida, em outras muito mais cinzenta), onde sonho e realidade eram tecidos da mesma matéria-prima, onde ambos eram, por fim, a mesma coisa. Em todo caso, buscava sem cessar o que havia de mais essencial e verdadeiro, pois já havia cansado de varar noites em busca de algo incerto e obscuro, mesmo que guardasse quase com devoção as marcas conquistadas nas lutas contra o rei e nas discussões com Deus.

Depois de caminhar por horas percebeu que estava longe de casa e que não havia mais como voltar. Conseguia ver bem ao fundo, do alto de um morro, a cidade que contemplava como um amontoado de pontos luminosos longínquos. Como um Sidarta, sentou-se na parte mais alta do morro, isolado de todos e de quase tudo. Via os milhares de pontos luminosos no céu abobadado e lembrara que havia lido - não sabia onde - que aquelas estrelas que via não existiam mais, que eram apenas um resquício da luz que restara, viajando milhares de anos luz perdida no espaço, eram apenas a fagulha que restara do que não mais existia, perdida na imensidão até chegar, como um eco longínquo, como uma reminiscência. O céu salpicado, formando uma abóbada luminosa, quase unia-se às luzes da cidade. Da mesma forma via que nada lá embaixo era da mesma forma que foi, se é que foi um dia da forma como pensava. E ele também não era. E como queria poder voltar no tempo e conseguir manter tudo como sempre foi! Mais um pensamento egoísta e infantil absolutamente impossível de realizar, ponderou.

Deitou-se sobre a grama um tanto úmida de orvalho, sentindo todo seu corpo em contato com a terra. Iluminado pela noite, fechou os olhos, respirou profundamente incontáveis vezes e finalmente sentiu-se pela primeira vez na vida sendo parte de algo maior que ele próprio, absolutamente atemporal e efêmero. Sentiu seu corpo estremecer num calafrio brando e deixou-se levar pelo esvaziamento e pela ausência de sentimentos. Como um ex-voto aos deuses, abandonou-se, ao passo que era esquecido pelo resto da humanidade e a esquecia. E finalmente desapareceu no infinito como uma fagulha de luz entre as estrelas mortas.

sexta-feira, 5 de março de 2010

WESTERN TRAGICÔMICO

Coração apertado na plataforma. Atraso fenomenal multiplicado por mil, pela ansiedade e pela saudade. Ele sabia que ela seria uma das poucas pessoas, se não a única, que viria para o longínquo lugar onde ele vivia somente para vê-lo, sem titubear, enfrentando uma viagem cansativa, que mais parecia uma daquelas comitivas de carroças puxadas por juntas de bois, e a chegada em um paradouro deprimente. Quase dava para ver a bola de feno rolando pela rua poeirenta e o som do vento nas copas das árvores. Ele valorizava muito o esforço e o desprendimento dela em vir.

Noite alta já, aproxima-se no meio da escuridão um ponto luminoso, talvez do lampião da carroça que puxava a comitiva. Finalmente ela conseguiu desembarcar. Abraçaram-se longamente. Rumaram para casa em altas e divertidas conversas, como se o tempo não tivesse passado e a distância não existisse. E realmente não existia distância nem tempo no amor deles.

Ansiosos e afoitos um pelo outro buscaram pela noite da cidade velha algo que os divertisse como em idos tempos. Sabiam que não era fácil viver em terra de chimangos e maragatos (e realmente não foi), da mesma forma que era praticamente impossível encontrar um restaurante aberto por volta da meia-noite, onde pudessem sentar, comer calmamente e conversarem sem pressa. A província tem hábitos bem característicos.

Passaram por situações peculiares, irritantes e tristes, que poderiam ter sido muito piores se não estivessem juntos. Sentiam-se dois forasteiros procurando um Saloon, estalando botas de couro e tilindando esporas rua afora, com suas calças justas e chapéus de abas largas, num vilarejo esquecido no oeste dos Estados Unidos do século XVIII. Cenário digno de John Wayne.

Enquanto caminhavam pelas ruas passavam pelas pessoas em grupos nas esquinas, encostadas nos carros estacionados com a porta do porta-malas erguido e música alta ou subindo e descendo de carro avenida principal. Essa cena automaticamente reportou a um carrossel girando, girando, girando, e àquela melodia insuportável de caixinha de música que os parques de diversões tocam enquanto as pessoas estão sentadas nos cavalinhos que sobem e descem, sobem e descem. Poderiam elencar com tranquilidade as dez coisas que somente aquele lugar tinha. Mas não, o objetivo deles era outro, de preferência que contemplasse esquecer definitivamente onde estavam. Ademais, haviam decidido não reclamar da vida e não verem o lado ruim das coisas. Sendo assim, como duas Polianas peregrinaram pela noite insólita, o que somente terminou quando, vencidos pelo cansaço e pela certeza de não conseguirem encontrar nada para comer além de cachorro-quente de esquina, decidiram rumar, com seus estômagos preservados da bomba de efeito retardado da esquina, a um bar que ele havia descoberto há pouco. Um oásis no meio do caos. Música boa, ambiente bonito, pessoas interessantes. Nem parecia a cidade que haviam visto poucas quadras atrás. Tiraram seus chapéus e suas esporas e os deixaram na soleira da porta.

Bacantes que eram, beberam, dançaram, cantaram em coro, mataram a vontade um do outro, contaram histórias e principalmente celebraram o mais puro e singelo amor, aquele amor desinteressado que sentiam reciprocamente. Uma noite memorável. Mas a noite na província acaba cedo. Ou eles que costumavam se estenderem demais em suas noitadas. Retornaram para casa, trôpegos e felizes. E repousaram exauridos e satisfeitos.

O dia seguinte amanheceu bonito, embora quente. Passearam pela cidade deserta e rumaram para casa munidos de um pote de sorvete enorme, trazido em riste. Foi um dia de preguiça, o que ambos adoravam: soneca, filme, muito sorvete. Já a noite foi eufemisticamente peculiar. No início foram a um bar frequentado por ele com certa frequência, sentaram-se em uma mesa na beira da calçada, de frente para a praça central. O clima estava agradável e ao fundo ouviram Nina Simone cantar lindamente I Loves You, Porgy. Foram momentos deliciosos que infelizmente duraram pouco. Quando o bar estava prestes a fechar, peregrinaram, mais uma vez, a outros lugares. E a noite terminou num boteco de mau gosto, com cerveja ruim e pagode.

No fim da noite, já em casa, exaustos e jogados na cama de pijama, chapéus, botas e esporas pendurados, entre smirnoff ice e doces de confeitaria, riram de suas próprias desgraças, divagaram sobre a existência, constituiram tratados de psicanálise, filosofia, sociologia e relações humanas, fizeram terapia em grupo, aconselharam-se mutuamente, confessaram-se, deram palpites e pitacos que iam de moda à vida sexual (própria e alheia) e praticaram seu esporte favorito: falar mal dos homens.

Quando o sol raiou, ainda com fôlego para horas de boas gargalhadas, resolveram dormir, com o coração em festa e aquele gosto bom de estarem juntos, embora soubessem que o sonho tinha prazo de validade e esse prazo estava prestes a acabar e a realidade invadiria furiosa suas vidas e seria inevitável esconder as lágrimas na despedida.