quinta-feira, 15 de abril de 2010

A FORÇA DOS MAIS FRACOS


Pelo título parece mais um clichê. E talvez seja mesmo. Sou super clichê, piegas e cafona. Porém, terminei de assistir ao filme “Preciosa – Uma História de Esperança” (“Precious- Based on The Novel Push By Sapphire”) absolutamente mexido (Remexido!) e não consegui deixar de escrever sobre ele. É impossível não pensar na nossa própria existência, nas nossas limitações e nos nossos limites depois de ver um filme tão duro e tão forte como esse. A história poderia acontecer em qualquer lugar, logo ali ao lado das nossas casas, em qualquer bairro pobre ou favela de qualquer grande ou média cidade do país. Em qualquer lugar onde as diferenças sociais sejam abissais e onde tudo o que não esteja dentro do padrão represente algo ameaçador. É inevitável pensar no quanto nós próprios nos tornamos embrutecidos e insensíveis aos sofrimentos dos outros. E o quanto podemos nos tornar insensíveis em relação a tudo, até mesmo a nós próprios. Impossível não refletir sobre o quanto somos marginalizados e ao mesmo tempo marginalizamos tudo o que é diferente. Formamos nichos cada vez menores e cada vez em maior número. E somente nesses nichos é possível existirmos. Cada um dentro de sua grande (ou pequena) bolha.

O filme conta a história de uma adolescente comum: negra, pobre, obesa, analfabeta, discriminada, abusada e violentada de todas as formas, dentro e fora de casa. Vemos isso todos os dias, é lugar comum. Pipocam situações como esta todos os dias em manchetes sensacionalistas. O que há, então, de diferente nessa história? Talvez os resquícios de humanidade dispersos na violência do mundo, apresentada não de forma piegas, mas sim na forma embrutecida e limitada da própria pensonagem. Uma personalidade que grita e que tenta resgatar sua dignidade quando tudo lhe foi brutalmente tolhido, até mesmo a própria vida e a própria liberdade.

Claireece é uma personagem comum. Sofre como uma Macabéa. Sonha como qualquer menina do morro, como qualquer menina da vila, como qualquer menina de qualquer subúrbio. Sonhar é o único meio de fugir da violência absurda que é submetida. Quando entramos em contato com ela, não nos causa estranheza o tipo de vida que leva. O chocante, além de ver a que ponto podem chegar as pessoas e o tamanho da vileza e violência que podem cometer umas às outras, é ver o quanto isso pode afetar a vida da vítima. E não falo com compadecimento, como se ela fosse uma coitada (não que ela não seja). Mas vi uma força descomunal em uma menina de 16 anos que consegue erguer-se e sozinha  - absolutamente sozinha! - tentar reunir os poucos cacos de uma vida destruída para conseguir seguir adiante.

O filme é feito de atuações honestas, densas, simples. Não tem grandes planos, nem grandes takes. Mas tem cenas fortes, uma direção digna de Lee Daniels e um roteiro com um pesado senso de realidade. Isso é que faz dele um filme imperdível. Tem algumas cruezas que eu gosto de ver nas telas. A morbidez e estupidez humanas escrachadas num subúrbio paupérrimo, a falta de perspectivas nua na tela, uma atmosfera cinzenta e triste, como são todos os personagens da trama. É um filme que dá um nó na garganta do começo ao fim e vários socos no estômago ao longo do desenrolar da trama.

Embora o infeliz subtítulo do filme (tão infeliz quanto o título que dei a este post) aponte para esperança, ele não traz esperanças. Traz uma história de força e superação, é claro. Existe uma Preciosa etérea, outsider, que mais que alienada, veste uma carapaça e usa as armas que tem para proteger-se da violência e da dureza do seu mundo para superar as dificuldades. O bonito é ver que em um ambiente absolutamente hostil, Precious não tinha nenhuma esperança, mas mesmo assim, seguiu, mesmo assim levantou e sangrando continuou. Porque somente em frente podia seguir. Porque a única opção que tinha era de continuar vivendo.

A sensação que o filme deixa no fim é de total falta de expectativas de futuro. Uma sensação de vazio incontrolável. E a beleza dessa história está nisso: em resgatar-se, em reconstruir a própria humanidade quando não há esperança alguma.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

(IN)FINITO


“Espero as flores se abrirem como se a gente soubesse que o amor nunca vai ter fim”
(Monique Kessous - “Com Essa Cor”)


O sol se punha lentamente na linha turqueza do horizonte. Deitados lado a lado sobre a areia branquinha da praia deserta, em algum lugar qualquer do mundo, olhando para o céu muito claro e sentindo a brisa leve que soprava do mar, imersos em uma serenidade profunda, sabiam que o tempo de ambos acabaria, que todas as experiências - boas ou ruins – passariam um dia, que eles próprios passariam e deixariam de existir um para o outro, fosse objetiva ou subjetivamente, assim como terminaria aquele fim de semana escondidos numa cabana simples, sem luz elétrica, sem água quente, de paredes de barro, janelas quebradas que repousavam sobre um mar cristalino e brando, coberta de palha com frestas que refletiam os raios de sol sobre a cama improvisada no chão que os abrigava durante a noite.

A precariedade do lugar que escolheram para se despirem do mundo exterior era superada pelo fascínio e alegria de estarem juntos, porque conseguiram abandonar suas vidas, mesmo que temporariamente, deixando permanecer somente o que era mais essencial, simples e verdadeiro. Isolados de tudo, exploraram cada milésimo e cada milímetro dequeles fugazes momentos de felicidade construída com dificuldades e compartilhada com generosidade sob a luz fugidia do fim da tarde.

Com uma aguda e insistente dor no peito - predominante em ambos - porque sabiam do fim inexorável, desejavam que aquele momento durasse para toda a vida. Eram demasiado humanos e bem no fundo desejavam, como todo humano, a eternidade. E essa era a fonte do sofrimento que carregavam. Antecipavam temores tentando antever um futuro incerto. De um lado rondava o fantasma do desejo de infinitude, da sede pelo que não tinham; de outro pairava o fantasma da própria finitude, do inevitável e indesejável fim. Em última instância, eram todos sofrimentos com a mesma origem: medo. Um medo primitivo, um pouco covarde e egoísta, mas extremamente humano.

Percebiam que o mundo onde viviam era de ilusões, de formas enganosas e de sentimentos catárticos. Conseguiam, pelo conhecimento que tinham acumulado ao longo da vida, encontrar formas de se livrarem das sombras e de viverem, mesmo precariamente, a não-ilusão, fosse em conexão com o universo, sentados em postura de meditação, alinhando seus chakras e expandindo suas consciências, fosse em longas e furtivas noites entre cigarros e conhaque de alcatrão.Tinham um longo e dificílimo caminho a percorrer. Porque sabiam que o amor que sentiam era demasiado terreno e material, por mais etéreo e sublime que fosse. E por mais que tentassem elevar seus pensamentos, submergiam em desejos ávidos.

Possuirem uma compreensão mais ampliada da realidade e saberem que tudo era finito os tornava diferentes dos demais. Mais duros, mais secos, sem grandes ilusões de eternidades e infinitudes, porém, mais reais e mais livres. Não tinham as grandes ilusões românticas de viverem juntos para sempre, de terem um amor que superasse tudo, até mesmo a morte. Desejavam-se com fúria visceral, mas desejavam-se aqui e agora, como se fosse eterno no momento presente.

Eram finitos e determinados, mas tinham ilimitadas possibilidades futuras. E com isso podiam voar, usando a imaginação, para onde seus corações quisessem. E sabiam que a finitude, assim como a infinitude, é também uma grande ilusão. Compreendiam que viviam em grandes ou pequenos ciclos de felicidades e tristezas. Isso dava a eles uma dimensão maior de suas realidades interiores.

Eram cúmplices na mágica paralisação do tempo que promoviam quando seus olhares se cruzavam, suas mãos espalmadas se tocavam e seus corpos se uniam sobre a areia da praia, quando podiam ouvir seus corações batendo descompassados, misturados ao som do vento e das ondas, atravessados pelos sussurros de ansiedade e juras de pertencimento mútuo. Tinham a mágica capacidade de congelar as horas, quando seus lábios se tocavam e seus pensamentos viajavam por lugares inimagináveis. Mesmo se a realidade implacável mostrasse no relógio o tempo esvaído, podiam, abraçados, voar para longe, dentro um do outro e de si mesmos.

Os minutos transcorreram, transformando-se em horas, que viraram dias, semanas e meses. E eles queriam que os meses virassem anos, muitos anos. Vividos minuto após minuto, como se o instante seguinte pudesse não chegar. Até o dia em que realmente não chegasse.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

DAY IN, DAY OUT

                                                                           
                                                                    For my sweet "B."


“That same old voodoo follows me about
That same old pounding in my heart, whenever I think of you
And baby I think of you
Day in and day out

Day out - day in
I needn’t tell you how my days begin
When I awake I get up with a tingle
One possibility in view
That possibility of maybe seeing you”
        - Billie Holiday -
 
Mas também o amanhecer podia ser outro. Imóvel, ainda deitado na cama, com olhos fixos em um ponto imaginário, ele era um amontoado de emoções liquidificadas esparsas sob os lençóis, entre gostos e cheiros da noite anterior. Não tinha passado ou futuro naquele momento. Era apenas devir e desejo. O desejo de ser possuído e consumido pelo ser que reconhecera amado e amante. Queria reter o amor infinita e indefinidamente, queria entrar no outro e queria ser invadido por ele, rasgando-lhe as carnes do peito, deixando marcas indeléveis. Queria ser consumido pelo amor como fogo, transmutando seu corpo e sua alma em outros elementos quaisquer. Cinzas que fossem. Transmutar era mais que um conceito, era uma necessidade e uma certeza entre eles. Sabiam-se incapazes de permanecerem os mesmos. Ao passo que eram capazes de amar intensamente, sabiam que esse amor poderia não durar a vida toda como sonhavam, porque existia o espectro da realidade batendo à porta, por mais que o trancassem para o lado de fora, ele estava sempre presente. Foram inexoravelmente condenados à serem conscientes de si mesmos e reconheciam-se limitados, principalmente no que se referia à entregas e à vida cotidiana. Haviam tido até então um amor que não era parte do contínuo da vida diária de cada um, embora fossem presentes um para o outro ao longo das vinte e tantas intermináveis horas do dia em que não estavam juntos. Era um amor de cativeiro, encerrado entre quatro paredes na maior parte do exíguo tempo compartilhado que tinham. Mas não um amor marginal, apenas um amor desprovido de cotidianidade. Experimentavam, vez ou outra, pequenos fragmentos do dia a dia, doses ínfimas de uma vida a dois que sentiam, bem no fundo de seus corações, ser o mais próximo da plenitude e da paz que haviam conseguido ao longo de suas existências erráticas. Saboreavam cada momento como um fruto maduro, regozijavam-se com esses pequenos átimos de felicidade. Seus momentos eram fugazes e intensos, plenos e precários, mágicos e duramente reais. Eram sonhos pautados pelas incertezas e mistérios da completude.
 
Embora soubesse que era impossível sair dessa fantástica aventura amorosa e de autoconhecimento sendo o mesmo e que as marcas deixadas em seu coração eram indeléveis e imprescindíveis para que se tornasse um humano melhor, não queria aquele vazio, aquela dor, aquela navalha cravada no peito todas as manhãs, quando abria os olhos e permanecia inerte por um longo tempo com olhar perdido entre as ranhuras das paredes. Queria mais, queria luz, queria sair das sombras de si mesmo. Havia recebido a condenação mais atroz concedida a um amante: amar com uma intensidade extrema, até o limite de suas forças, ao ponto de causar dores profundas e deixar marcas eternas.
 
O amor que sentia libertava e paradoxalmente aprisionava. Libertava o ser amado, desobrigando-o de qualquer compromisso ou retribuição, mas aprisionava a ele próprio no amor que sentia. Era cativo de si mesmo, soterrado por um sentimento vindo das profundezas de seus abismos escuros e que certamente acabaria por consumi-lo.
 
Reconhecer o amor pelo outro como libertador não o tornava bom, belo ou justo. Pelo contrário. Ele era hobbesianamente mau. Queria ver aquele ser que dormia indefeso ao seu lado invadido por uma felicidade proporcionada por ele, sem gratidão, reconhecimento ou retribuição. Nutria-se do amor refletido nos olhos do outro. E isso era, em última instância, totalmente narcisista. Não conseguia saber, dissecando tão profundamente as visceras do amor, se amava outro ser, se amava o amor pelo outro, se amava o seu próprio amor dispensado ao outro, se amava sua capacidade de amar ou se era uma mera projeção de seu frêmito de amar após anos de tentativas inúteis e fracassos.
 
Sentia, porém, com absoluta clareza, que amar aquele ser assustado com a fúria de um sentimento novo para ambos era a única redenção possível, a única alternativa para evitar a miséria humana que tão bem conheciam. Quando ouvia daquela boca amada que era amado e quando via nos olhos molhados e profundamente tristes do outro que o amor que sentia era correspondido, seu peito bramia extasiado, seu coração amargurado aquecia-se e sentia sua alma expandir-se em todas as direções.
 
Entretanto, imediatamente após essa explosão de paixão em fúria eram invadidos por uma força contrária avassaladora. Acordados do transe amoroso ouviam as batidas prementes da realidade na porta. E vestiam suas carapaças, porque o sol já havia se posto e era hora de partir, porque era a única forma de suportarem suas existências separados e porque era a maneira que encontraram para proteger, precariamente, o amor que construiram.

BUT TIME TAKES TIME...


(Para ler ao som de Chet Baker - “My Funny Valentine”)

A brasa do cigarro cintilava na escuridão, rasgando a penumbra num risco alaranjado. Debruçado sobre o balcão do segundo andar do casarão antigo de esquina contemplava a noite silenciosa e branda, acompanhado de vinho tinto, cigarros e um Baker triste na velha vitrola Webster Chicago 78 rpm no fundo da sala. Sentia uma paz tamanha que todas as guerras do mundo poderiam ser declaradas, bombas nucleares e terremotos poderiam assolar seu bairro, o planeta poderia ser invadido por povos alienígenas querendo escravizar os humanos, que nada lhe tiraria aquela sensação de plenitude. Era uma quase comunhão com o cosmos, com Deus, consigo. Sentia que finalmente havia feito as pazes com seu coração. Porque finalmente havia descoberto que todas aquelas histórias que lia nos livros poderiam ser, resguardadas as proporções, reais. Não, não queria conquistar uma donzela vitoriana envolta em rendas e véus, tampouco ser um cavaleiro em armadura reluzente enfrentando batalhões de bárbaros. Queria os dias límpidos e iluminados de outono, despertares com beijos de hortelã e sorrisos sonolentos, queria todas as manhãs do mundo e entardeceres com o sol se pondo atrás da coxilha, queria as coisas simples e plenas que somente o cotidiano compartilhado com quem se ama pode proporcionar.

Objetivamente pouca coisa havia mudado em sua vida. A não ser, talvez, uma esperança renovada na vida e nas pessoas. Continuava vivendo no mesmo sobrado herdado do pai - o único bem da família de poucas posses - de fachada caiada já descascada, portas e janelas de madeira de lei corroídas e ladrilhos hidráulicos desgastados no piso frio. Continuava acordando cedo para ver o sol entrar pelas amplas janelas, batendo tapetes puídos e almofadas velhas, espalhando travesseiros e cobertas pelo quintal para tomarem sol, alvejando lençóis de algodão, varrendo os cantos e as frestas do assoalho de imbuia, num ritual para espantar os espíritos da noite que espreitavam pelos cantos empoirados. Espantava o mau humor, característico de sua personalidade soturna e reservada, com pranayamas e assanas logo nos primeiros raios da manhã, sentado em postura de lótus no pequeno e florido jardim que cultivava com esmero nos longos e solitários finais de semana no velho casarão. Acendia velas para São Jorge, incensos para Shiva e fazia oferendas de mandala para Padmasambhava. Tinha o mala de mantras sempre em três voltas no pulso direito e a guia de Iemanjá no pescoço.

Executava todas as lides cotidianas do mesmo modo como fazia há anos, com a mesma obstinação, detalhamento e zelo. E mantinha as mesmas dificuldades cotidianas habituais, como falta de vontade de viver, falta de recursos financeiros para se manter com conforto e a amargura contida de não ter realizado seus desejos mais íntimos. Dificuldades combatidas com bravura, mesmo que vez ou outra os cansaços o fizessem repensar os desígnios de Deus.

Apesar de todas essas mazelas, via nessas pequenas epifanias cotidianas - em especial uma -, que sem mais surgiam em sua vida, que ainda existem motivos para seguir adiante. De toda sorte, agradeceu ao universo, reverenciou Shiva com um mudrá, prostrou-se três vezes diante de Buda e saudou Ogum com suas armas por sentir-se um dos escolhidos. Mesmo que não soubesse exatamente escolhido para que, tinha um leve pressentimento que algo de bom e belo havia por trás daqueles olhos marejados, negros e profundos que visitavam-no inicialmente vez ou outra, sempre no fim da tarde, e que iam embora logo que a noite chegava, mas que agora começavam a ser presentes, fisicamente ou não, com cada vez mais força e traziam à tona um homem esquecido, soterrado pelas cotidianidades. Sentia a possibilidade de um carinho que o fizesse querer sorrir quando acordasse, sentir um arrepio percorrer a espinha e ver um brilho duradouro no olhar.

Debruçado sobre o balcão, entre uma tragada e outra, enquanto espelia a fumaça densa dos pulmões, pensava nas armadilhas da vida e no quão imbricados podem ser caminhos que escolhera. Estupefato pelo devir, tentava dar o devido tempo ao tempo e a devida importância às experiências que vivia. Aprendera, embora tardiamente e a duras penas, a esperar o tempo certo de cada coisa. Mantinha aceso o desejo fremente pelo figo maduro e suculento, mas apreendera a esperar o fruto amadurecer no pé, vendo-o diariamente crescer e aprontar-se. Aprendera a esperar o exato tempo de preparar a terra, semear, ver os botões germinados e contemplar as flores desabrochadas. Finalmente estava com o coração sereno, embora em brasa. Finalmente estava preparado para ser a morada de um novo amor.