terça-feira, 30 de agosto de 2011

O IRENE NOSSO DE CADA DIA



“There's a place in the sun for anyone
Who has the will
Chase one and I think I found mine”
("Let Me Kiss You" - Morrissey)



Que bom seria se todas as catástrofes fossem anunciadas como foi a chegada do furacão Irene na costa dos Estados Unidos. Seria confortável e seguro. Teríamos tempo de fechar as portas, reforçar as janelas, construir barricadas, comprar suprimentos, correr para o bunker. Ao menor sinal de ameaça, a sirene de emergência soaria por todos os cantos da nossa vida e já saberíamos o que fazer para nos proteger. Levaríamos nossos bens mais preciosos, nossos queridos e nossos animais de estimação para um lugar protegido e esperaríamos a bonança. Pena que nem sempre há tempo de fugir para um lugar seguro e nos prepararmos para a chegada do furacão. Nem sempre temos equipamentos sofisticados o suficiente para nos avisarem que a catástrofe se avizinha.

Quando vi milhares de pessoas abandonando suas casas para não serem arrebatadas pela fúria do Irene, pensei em quantas vezes eu já deixei tudo para fugir do furacão. Não foram poucas. Mas sempre que isso aconteceu, eu já sentia as rajadas dos ventos na cabeça e as tempestades nos calcanhares. E era, quase sempre, quase tarde demais. Foram retiradas loucas, desesperadas, carregando o que dava e largando um monte de coisas pelo caminho, sem saber se um dia poderia reaver o que havia abandonado. Se as minhas catástrofes pessoais fossem anunciadas com antecedência eu teria feito várias coisas de forma diferente. Teria planejado minha retirada com cautela, teria revisto meu passado e carregado comigo o que era realmente fundamental, teria preparado suprimentos para sobrevivência, me certificaria que havia tomado todas as medidas necessárias para proteger o que estava deixando para trás, na tentativa de reduzir danos.

Não aconteceu assim. Embora várias das minhas catástrofes tenham sido anunciadas, eu não entendia os sinais. E quando vi pessoas negligenciando os avisos de perigo em função de estarem na rota do furacão e decidindo ficar em suas casas durante a passagem do Irene lembrei muito de mim. Porque sou meio soberbo às vezes e acho que posso contornar tudo, até mesmo as forças que desconheço, que independem da minha vontade e da minha ação. Porque eu tenho um ideal romântico e infantil de achar que posso tudo, fusão perfeita entre Peter Pan e Superman. Por tudo isso, nunca tive tempo de planejar uma saída segura. Eu achava que o caminho que seguia era o mais correto, no momento em que o escolhia. E era mesmo, porque assim eu julgava e porque era o que eu conseguia ver no momento. Depois, com o tempo e com as surras, via que não era bem assim. E redefinia rotas. Sem GPS.

Entro em crise o tempo todo, sou surpreendido às vezes pelos Irenes da vida, já que sou demasiado humano, mas tento desenvolver minha capacidade de enfrentar as situações de forma mais plena e consciente. Viver é um jogo de tentativa e erro. Não sabemos muito bem no que vai resultar o que estamos fazendo hoje. Isso me angustia um pouco. Mas vejo que o que diferencia as pessoas é a capacidade de lidar com a dor, com a frustração e com as adversidades, é a capacidade que temos de enfrentar os furacões de forma corajosa. E corajoso aqui não é, definitivamente, enfrentar o furacão de frente. Pelo contrário. Corajoso é saber a hora de recuar, de bater em retirada, porque existe uma força muito maior que a gente. Humildade é coragem. Nessas horas, a soberba é que nos cega e nos joga no olho do furacão, perdidos para sempre. E tento mentalizar, como um mantra, que quanto melhor consigo lidar hoje com as dores que surgem, melhor poderá ser o amanhã. E sim, isto é utopia pura. Na veia. Mas acho que esperanças e utopias devem estar no kit de sobrevivência, junto com água potável, comida desidratada, cobertores e lanternas.



segunda-feira, 22 de agosto de 2011

A CHEGADA DO CAVALEIRO ANDANTE


“Ai solidao to'me
Sima sol sozim na ceu
So ta brilha ma ta cega
Na se clarao
Sem sabe pa onde lumia
Pa onde bai
Ai solidao e un sina
Ausencia”

("Ausencia" - Cesaria Evora)


De forma inesperada a bolha onde eu vivia rompeu-se quando você chegou. Não pense que estou culpando você por isso. Pelo contrário. Fico feliz que você tenha chegado. Esperei você na plataforma todos esses anos, indo todos os dias no mesmo horário. Às vezes o trem atrasava e em outras chegava mais cedo. Era um pouco angustiante essa espera porque se eu chegasse cedo demais o tempo parecia se arrastar enquando tentava identificar você na multidão, afinal eu não sabia que cara você tinha. Se chegasse atrasado ficava tenso, pensando que você já teria desembarcado e ido embora, carregando sua mala, e eu teria que correr para alcançá-lo.

O mais estranho de tudo isso é que eu não tinha esses pensamentos claramente definidos em meu coração durante essa longa espera. Eu apenas ia ao seu encontro. Somente sabia devia ir. E ia. E quando não encontrava você eu não sentia que havíamos nos desencontrado pelas esquinas. Você simplesmente não estava lá. E eu precisaria voltar novamente no dia seguinte até que você estivesse. Mais estranho ainda é que você chegou sem estar aqui propriamente dito. Você é mais uma sensação no meu coração que uma presença na minha vida. Sua presença é uma ausência. E vice-versa. Mas não culpo você por não estar aqui todo o tempo, não me entenda mal. Eu sei que você precisa conquistar muitas terras distantes e vencer muitos caras maus com sua lança e seu escudo.

Eu vivo de paradoxos. Sou consciente. Sou errático. Sou catártico. Sou lúcido. E vivia num mundo constituído de barreiras de contenção, até você chegar a descontruir tudo. Você deve pensar que sou uma espécie de castor sem objetivos. E talvez seja mesmo. Mas eu pensava que todas as coisas tinham seu lugar. Meu mundo não era o ideal, mas funcionava, eu dava ordem ao caos. Era nítido e relativamente simples. E principalmente alheio às intemperanças exteriores. De forma narcisista, egoísta, vil ou talvez corajosa (porque é necessário ser corajoso para abandonar um mundo conhecido) eu deixei para trás tudo que não faria sentido do lado de fora da minha redoma de cristal líquido. Você ri agora quando falo em “cristal líquido”. Não, não é uma bolha hi-tech, é uma bolha de cristal, ponto, mas é líquida. Enfim, talvez você não entenda porque nunca consegui me fazer entender.

Seja como for, eu vivia numa bolha de cristal líquido que você rompeu. E deixei que você a rompesse. No fundo eu queria, por isso não ofereci resistência quando você chegou com sua espada reluzente, cansado das batalhas que enfrentou, com sua armadura meio enferrujada, o rosto abatido e um monte de histórias para contar das suas lutas contra o Rei e das discussões com Deus.

E você, cavaleiro andante, não chegou para me salvar. Porque eu não precisava de salvação. Bem, talvez precisasse. Tanto quanto você. E é por aí que nos encontramos. Você veio, cavaleiro, para ser salvo por mim e para me salvar de mim. Invadiu minha bolha – não hi-tech – de cristal líquido com sua lança enferrujada e sem fio para que eu salvasse você. A pergunta que me atormenta é: Salvar você do que, afinal? Eu mal sabia do que precisava me salvar.

Já contei para você porque fui parar nessa vida? Fechei-me nessa bolha que construí com esmero para me descobrir por conta própria. “Soberbo”,você pensa, com razão. Digo, agora que lhe encontrei, que você veio me salvar de mim. Mas será que isso é possível? Será que você queria isso mesmo? Será que eu queria? Quando você chegou, pensei mesmo que seria salvo por você. Porque acho romântico até. Não que eu tenha essas ilusões de donzela na masmorra. Pelo contrário, mas isso não vem ao caso. Achei romântico que você quisesse me salvar, mesmo que eu não precisasse (ou não quisesse) salvação. Se essa fosse sua intenção, eu me deixaria ser salvo por você, para te agradar. Gosto de ver sua cara de satisfação quando ajuda alguém. É uma cara de bom samaritano. Cândido e puro. Seus olhos sorriem e brilham radiantes. Uma bandeirante vendendo biscoitos de porta em porta. Uma monja mensageira da paz.

Mas vi que você, cavaleiro de lata, é um menino que precisa de colo. E despertou em mim uma ternura imensa. Mesmo eu estando acostumado a viver sozinho na minha bolha, e querendo que minha solidão fosse preservada, não me senti invadido quando você rompeu meu silêncio com seus sons de metal tilintando e frases grandiloquentes. Você chegou fazendo barulho, querendo atenção, posando de forte. Mas logo vi que queria abrigo, queria proteção. Foi quando vi que minha bolha não me protegeria, nem a você. Mas não estávamos desprotegidos. Porque minha bolha de cristal líquido era uma ilusão. Da mesma forma que sua armadura reluzente, barulhenta e enferrujada era uma ilusão.

Abandonei minha bolha, que você rompeu. Pensei que você abandonaria sua armadura, porque ela não serviria mais. Mas não. Vi que a armadura faz parte de você. E eu jamais lhe tiraria isso. E o que faz parte de mim agora? Você consegue ver o que eu coloquei no lugar da bolha? Pergunto a você porque acho que não tenho nada no lugar daquelas ilusões soberbas que criei e preciso que você me diga quem sou porque sozinho não consigo mais.

Fico pensando, cético, que nós nunca conseguiremos viver sem nenhuma proteção artificial. Porque eu não tenho nada de especial, nenhum super poder secreto para me defender. Não sou tão auto suficiente e auto consciente. Anos de análise e chás alucinógenos não me trariam essa consciência. O que me traz à realidade é me ver nos seus olhos, cavaleiro de lata, e ouvir você dizer quem sou, daquele jeito manso e infantil que você conserva, apesar dos vincos no seu rosto cansado de tantas batalhas. Então, venha cá, sente aqui comigo, preparo um café ou um chá para você, você me diz o que quer de mim, me tira esse monte de perguntas que me atormentam a cabeça, desfaz os nós que criei e me abraça até eu adormecer.







segunda-feira, 15 de agosto de 2011

À SEGUNDA VISTA

Fernando Barreto - "Intimidade"

Não sou muito manso em primeiros encontros. Sempre fico tenso, sem saber o que falar e onde colocar as mãos. Sinto-me superficial e artificial. E talvez seja mesmo. Neuroticamente, tendo a planejar o que dizer, como sentar, para onde olhar, como me movimentar. Nunca funciona. Eu não sou assim. Na verdade não sei planejar. Nada. Sei sonhar (e isso faço muito), mas planejar estrategicamente, nem minhas contas do mês eu consigo. Em primeiro lugar, nunca sei por onde começar. Em segundo, nunca traço metas claras e objetivas. Em terceiro, mesmo que tivesse metas, não conseguiria segui-las. E não é por rebeldia não, é por absoluta falta de jeito de andar na linha. É, sou um homem de desvirtudes.

Sei que você deve estar pensando: “Péra aí! A gente não deve planejar essas coisas!”. Claro que não devemos. Mas somos tentados a fazê-lo o tempo todo, nem que seja um pouquinho, na tentativa de que tudo saia perfeito. Como todo mundo, tenho lá minhas táticas e idiossincrasias num primeiro encontro. As vontades do Id, as verdades do Ego e a vigilância do Superego. Minhas táticas não funcionam, admito tristemente. Eu acabo me boicotando sem querer. Esteticamente algo sempre sai errado. Seja a calça curta demais, mostrando a pior meia, escolhida ao acaso pela ansiedade, seja a camisa que marca a sudorese em excesso pelo nervosismo adolescente. Por isso detesto os primeiros encontros. Fica uma sensação que sorri com uma sujeira no dente da frente, que respinguei vinho em algum lugar impróprio, que não segurei os talheres corretamente ou que disse alguma grande bobagem. Não tem coisa mais destrutiva que deixar a sensação que fui um imbecil, principalmente quando realmente fui. E quando esses pensamentos me atormentam, o que acontece o tempo todo, procuro respirar fundo e não usar qualquer tática. Tento ser o mais “eu mesmo” que consigo, sempre morrendo de medo e cuidando para não assustar meu interlocutor, o que é bem comum. Tento tirar as máscaras e não usar ardis. Mas sou meio truculento com essas coisas também. Falta-me jeito para achar a medida certa. É, sou um homem de desmesuras.

No segundo encontro já é diferente. Se a pessoa saiu comigo uma vez e aceitou encontrar-me pela segunda, já dá para ter um indício que o primeiro encontro não foi tão desastroso assim. E relaxo um pouco. Mas também pode ser que encontre alguém obsessivo como eu, que talvez queira (também) tirar “a prova dos nove” e desfazer equívocos. Melhor. Porque assim é possível tentar retificar mal entendidos e principalmente, ver as coisas com mais clareza na busca de alguma certeza, mínima que seja. É, sou um homem de desconfianças.

No fundo, eu não sou muito manso com encontros de maneira geral. Primeiros, segundos ou ducentésimos, onde não haja familiaridade e intimidade. Conhecer pessoas é meio desconfortável para mim, mesmo sendo delicioso construir intimidade, algo que adoro. Gosto mesmo do fim do processo. Início e meio me incomodam. Não fico em paz ao “encontrar” algo desconhecido. Quero logo tirar os sapatos, afrouxar o nó da gravata, me jogar no sofá e erguer os pés, comprometida e relaxadamente. Gosto mesmo é de “reencontrar” o que já conheço. Parece meio medíocre querer somente um mundo conhecido. Mas é confortável. O início é aquela “pavonice”, a gente mostra o que - acha que - tem de melhor, cuida de todos os detalhes, mede palavras e gestos. O meio é aquela fase indefinida, ninguém sabe muito bem onde está na história, não sabemos que palavras ou declarações podem afugentar a outra pessoa. Já podemos relaxar um pouco e baixar a guarda, mas ainda não sabemos muito bem onde estamos pisando nem os efeitos dos nossos deslizes. O fim do processo não, nele a gente relaxa e se sente em casa nos braços do outro, aprende a entender suas manias, revela desejos íntimos, compartilha sonhos, conhece os limites e aprende a respeitar o espaço alheio, deixa escapar defeitos, manias e vaidades sem tanto medo de repreensão, divide a pia do banheiro na hora de escovar os dentes, usa o vaso sanitário (com ressalvas, claro) enquanto a outra pessoa está tomando banho. É, sou um homem de desinibições.

Acho que os segundos encontros podem ser mais reveladores. A gente consegue ver melhor a outra pessoa. E talvez a nós próprios. Porque tiramos um monte de pré-julgamentos e expectativas próprios dos primeiros encontros. Notamos desde coisas pequenas, como uma cicatriz escondida, que um olho é mais caído, que o sorriso é meio torto e aquele tique quase imperceptível, até coisas maiores e mais subjetivas, como o brilho no olhar quando a pessoa fala sobre seus desejos. A partir do segundo encontro construímos – ou destruímos - um sonho. Não que no primeiro isso não aconteça. O primeiro encontro é o primeiro filtro. Porém, não considero o melhor. É no segundo encontro que vamos aprofundar nossa expedição nesse novo mundo, sendo permitido ou não. Meu teste de fogo é: se à segunda vista eu tiver um frio na barriga é meio caminho andado para um terceiro encontro. Mas rezo para que chegue logo o dia de andar arrastando o chinelo pela casa, ficar de pijama o domingo inteiro, não me preocupar se acordei com o cabelo desalinhado ou o que vão pensar da minha barriga de chopp ou da minha barba por fazer. Algumas ilusões se desfazem e construo outras imagens, talvez mais reais. É, sou um homem de desconstruções.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

LA QUESTION

Rafael Perez - "Everytime I look At You"

Para ele tudo tinha um lugar definido. A vida estava organizada e todas as peças do quebra-cabeças tinham um encaixe perfeito. Pelo menos essa era a sensação que tinha superficialmente. E superficialmente funcionava bem. Porém, quando lançava um olhar interior mais detido, conseguia ver a desorganização e a poeira que se acumulava nos cantos. Justamente por perceber isso, evitava a tarefa dolorosa de vasculhar seus cantos escondidos. Bastava estar vivo e estar seguindo o que havia sido designado para si por outros. E não viveria mal dessa forma irrefletida. Sabia que era possível viver assim a vida toda.

Começou a perceber, porém, que surgia uma intensa angústia, como se um cordão tensionado estivesse prestes a rebentar ou uma comporta prestes romper em algum lugar ainda desconhecido dentro de si. E sabia que essa explosão seria devastadora. Evitaria o quanto pudesse esse momento. Tratou de cobrir toda a poeira com filosofias orientais, comida macrobiótica, religião, psicanálise, álcool, relacionamentos fugazes. Tentou fechar todas as janelas, todas as portas, cobriu todas as frestas da luz do sol, tirou o telefone do gancho, não leu e-mails, não atendeu à campainha. Como sempre foi cético e um tanto soberbo, achou que conseguiria manter tua vida numa câmara de laboratório com temperatura, umidade e pressão controladas. Era um cientista, trabalhava com dados precisos, tinha metas e queria resultados claros. Imaginava que conseguiria criar um casulo hermético. Afinal, já havia conseguido controlar tantas coisas e era exigido por todos a manter o controle, que essa tarefa parecia ser, além de fácil, o que todos esperavam dele. Vestiria o avental branco, manipularia os materiais e ao fim teria a velha sensação de dever cumprido, de ter feito o que seu pai esperava, o que sua mãe havia planejado para ele, o que seus pares desejavam.

Não adiantou. Existia algo, talvez externo, e muito mais forte que ele.  Foi obrigado a reconhecer que não conseguiria conter ou manipular a energia da vida e da natureza. Essa vida que invadia todos os lugares, penetrava profundamente todas as coisas e tornava-o frágil e desprotegido. Percebeu-se à deriva, inevitavelmente, ao sabor do destino e de suas forças.

Quis outra vida, arrumou a mala e mudou de cidade. Buscou reescrever sua história. Encontrou um trabalho, um grande amor e arrumou a casa. Tentou colocar a vida dentro de uma bolha, alheia às intempéries. Por um tempo conseguiu. Era uma grande ilusão, sabia, embora negasse. No fundo de seu coração sabia que não conseguiria bloquear a vida exterior que insistia em invadi-lo. A cidade se tornou um tropeço, o trabalho uma obrigação, seu amor o deixou para sempre. Viu-se desamparado.

Decidiu, então, mudar de estratégia – porque julgava-se também exímio estrategista. Abriu todas as janelas, todas as portas, desobstruiu todas as frestas e estourou a bolha com força. Deixou a vida entrar, torrencial, carregando todos os entulhos que havia acumulado. E descobriu uma nova possibilidade de amor. Quando menos esperava, alguém entrou pela porta que havia deixado aberta. Viu um ser que chegava de mãos vazias, braços abertos e um olhar que lembrava vagamente o homem que foi antes de tantos desastres. Permitiu que esse desconhecido permanecesse, mesmo que fosse apenas para identificá-lo, classificá-lo, catalogá-lo e arquivá-lo, como fazia habitualmente. Não conseguiu. Era algo inclassificável, um ser etéreo e quase impalpável, que chegou sem pedir nada e nada perguntou. Ele percebia que existia algo de seu nesse outro ser. No fundo sabia que não era por acaso que havia entrado pela porta entreaberta, sem ser anunciado ou esperado.
Natural e amorosamente investigaram-se, esmiuçaram-se, descobriram-se. Mas havia uma barreira entre eles, estabelecida por medos, distâncias e reservas. E não aceitavam essa barreira passivamente. Era desconfortável e dolorosa a limitação. Não conseguiram suportar o distanciamento. Queriam ir ao mais fundo do outro, chegar às entranhas mais remotas, os lugares mais secretos, onde medos, reservas, preconceitos, julgamentos, hábitos e tradições não fariam qualquer sentido.
Questionaram-se mutuamente sobre os motivos desse sentimento de desconforto em relação ao distanciamento que eles próprios estabeleciam. Ambos tinham motivos para manter as armaduras e não conseguiam vencer as barreiras interiores que haviam construído. E sabiam que deviam romper esses limites, porque isso era a vida chamando-os e essas posturas chocavam-se frontalmente com tudo a que se propunham naquele momento, implicitamente, com o outro e com eles próprios.
Então, ele conectou-se ao mais profundo instinto vital que conseguia localizar em meio aos escombros do que era. Varreu a poeira dos cantos, respirou fundo, queimou um incenso, mentalizou um mantra, localizou o velho LP com a música que não saia de sua cabeça: “Je ne sais pas qui tu peux être / Je ne sais pas qui tu espères / Je cherche toujours à te connaître / Et ton silence trouble mon silence”**. Recostou-se e entregou-se.   

** “Eu não sei o que você pode ser / Eu  não sei o que você espera / Procuro sempre te conhecer / E seu silêncio perturba meu silêncio” (Françoise Hardy – La Question)

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

CARTA PARA ALÉM-MAR

Osvaldo Goeldi - Abandono

Já faz tempo que ando ensaiando escrever para você. Não sei se você vai receber esta carta. Nem sei mais seu endereço. Acho que nem sei mais quem é você, nem quem sou eu. Mas queria ter notícias suas. Mesmo tendo a sensação de escrever aquelas cartas que colocamos em garrafas e jogamos no mar sem saber se chegarão ao destinatário, sabe? Você vai achar estranho eu escrever agora, depois de tanto tempo que você foi embora, perguntando sobre como a vida tem lhe tratado. Se bem lhe conheço, você fará um ar blasé, dirá com a voz profunda, levemente rouca e calma que lhe é peculiar, que está tudo bem, afinal sempre esteve. Você não gosta de falar sobre si mesmo. Nem com seu analista, eu sei.

No fundo eu sei a resposta para a pergunta que agora lhe faço. Não precisaria perguntar por você, porque mesmo distante, mesmo sem lhe ver, eu sei o que aconteceu e sei como você se sentiu. Eu sempre senti você à distância. Sabia o que você estava pensando quando olhava nos seus olhos fundos, tristes e marejados. Sabia o que estava pensando e sentindo quando você sumia por dias e voltava com ressaca moral e comiserado por ter feito bobagens por aí. Às vezes encontrava pessoas na rua que me perguntavam por você e eu dizia, reticente, que estava tudo bem, que você estava cuidando com mão de ferro da sua própria vida. No fundo eu sabia que não. Você nunca conseguiu tomar as rédeas da sua própria vida. Sempre achei triste e ficava angustiado quando você tentava dizer que estava tudo bem – e eu sabia que não estava – da mesma forma que me entristecia quando você esmorecia e demonstrava suas fraquezas, deitado no meu colo, encolhido, e choramingava que a vida era vazia e você não via sentido em nada.

No dia em que você sumiu pela última vez eu sabia que seria para sempre. Eu até tentei fazer você voltar, como eu costumava fazer, brigando, dizendo palavras duras, me contorcendo em cólicas, ligando e mandando mensagens, para depois lhe abraçar apertado, querendo que você fosse mais forte e encarasse a vida de frente. Porque eu estava ao seu lado, para o que fosse, mesmo que eu mesmo não conseguisse ser o que esperava de você. Eu também não era forte, nem conseguia enfrentar tudo. Mas tinha a ilusão romântica de que juntos poderíamos mudar o mundo. E quem roubou nossa coragem? Não sei. Talvez nunca tenhamos sido corajosos, talvez ainda sejamos e não conseguimos achar essa coragem escondida no fundo do peito. Mas eu queria tanto enfrentar o mundo com você. Achava que poderíamos ser tão grandes, luminosos, bonitos. Achava que irradiávamos uma energia intensa, porque nos amávamos intensamente, e que essa energia atingiria todas as pessoas e tornaria a vida mais branda, mais fácil, mais clara.

O fato é que você foi embora para sempre, e eu sempre soube que isso aconteceria. Só não sabia que seria tão cedo, nem da forma violenta que foi. Você sempre pode fazer tudo o que quisesse. E fez. Amaldiçôo o livre arbítrio! Amaldiçôo a liberdade! Queria que você tivesse escolhido o que a vida estava oferecendo e você se negava a ver, queria que você tivesse escolhido a mim, como eu escolhi você. Queria poder trancar a porta e impedir você de sair. Bater na sua cara e dizer: “Acorda! A vida é madrasta, mas está sendo generosa com a gente. Vamos viver!”.

Senti raiva quando tive a certeza que você tinha ido embora para sempre. Queria olhar nos seus olhos fundos e tristes e dizer que você estava fazendo uma grande besteira. Pensava: Com que direito você revira a vida de todo mundo que te ama, cara? Que direito você tinha de fazer da sua vida o que fez, enquanto eu estava aqui, preparando o jantar e esperando você chegar com a casa arrumada? Com que direito você dá descarga nos nossos sonhos mais íntimos? Mas sei que não adiantaria. Você tinha escolhido um caminho sem volta. Sempre fomos individualistas e demarcávamos nossos territórios. Sempre prezamos nossa individualidade. Mas tínhamos nossos sonhos juntos também. Quando chego ao fundo do poço, me sentindo miserável, rejeitado por você e rechaçado pelo mundo, lembro dos nossos sonhos. Eram bonitos nossos sonhos, né? Éramos bonitos juntos quando sonhávamos. Só que sempre chegava meia-noite e você tinha que voltar para a realidade. E eu voltava a ser abóbora. “Anyway, we gonna die”, você dizia com a chave na mão.

É, sei que você pensa que eu sou egoísta. E eu estou sendo mesmo. Mas precisava dizer que meu amor não era descompromissado. Nem Yoga, nem Jung ou New York ajudaram muito. E não, baby, eu não vou para o céu por isso. Mas quando penso nessa raiva que senti porque você foi (sim, você foi) egoísta e escolheu a si mesmo e não deu a mínima para as pessoas que realmente lhe amavam, me sinto completamente ridículo, mesquinho e vil. Logo depois paro e penso: “sem drama”, como você adorava dizer nas minhas crises, na verdade eu não fui assim tão devotado. Eu, assim como você, sou um pouco o rato do navio, que é o primeiro a pular quando o barco afunda. Várias vezes tive dúvidas e pensei em mudar o rumo. Contingências. Mas eu queria tanto que nós remássemos juntos!

Até que chegou o dia que todos os sonhos viraram pó. Você foi. Eu fiquei. Meus sonhos ainda são meus. E os seus? O que será que você fez com seus sonhos? Queria poder sentar novamente naquele bar que freqüentávamos e saber dos seus sonhos e dos seus planos. Sabe, nunca mais consegui passar nem na frente do bar. Na verdade, depois que você se foi nunca mais consegui um monte de coisas. Sei que um dia vou ter que voltar a conseguir, porque a vida vai ter que continuar, mal ou bem. E quer saber? Eu até tenho me orgulhado de vez em quando, tenho me saído bem nessa dança, mesmo errando o ritmo e dando passos em falso.

Estou lhe escrevendo porque tenho lembrado de você todos os dias. Às vezes tenho a sensação que você já vai chegar, que o telefone vai tocar e será você, com sua voz mansa, dizendo que está na porta, e vamos pedir algo para comer e vamos assistir a um filme. Mas não, nada disso acontecerá. Você se foi para sempre e eu nunca mais terei notícias suas, eu sei. Somente as lembranças (boas e ruins) que vão ficar guardadas numa caixa no fundo do armário. Quem sabe um dia eu tome coragem, lhe leve umas flores bem bonitas, onde quer que você esteja, e faça uma oração por você.

Saudade.

Do Seu,

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