segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

DA ETERNA BUSCA POR SENTIDO


“Para fazer uma colcha de retalhos, deve-se escolher os retalhos com cuidado. Se escolher bem dará destaque à obra, mas se escolher mal as cores ficam sem vida e tiram sua beleza. Não há regras a serem seguidas. Deve-se seguir o instinto e ser corajosa.”

(Trecho do filme Colcha de Retalhos)

ONDE MORA O AMOR? Esta é a pergunta central da trama do sensível e feminino Colcha de Retalhos (How To Make An American Quilt), de 1995, o primeiro longa metragem dirigido pela australiana Jocelyn Moorhouse. A história gira em torno das (re)construções  existenciais da personagem Finn (Winona Ryder), uma acadêmica que está escrevendo uma tese sobre trabalhos femininos coletivos em diversas culturas. Sua teoria é que todos os trabalhos artesanais coletivos dessas mulheres são realizados de forma ritualística. Prestes a concluir sua tese, depois de diversas tentativas frustradas de realizar outros trabalhos similares e abandoná-los por perder o interesse pelos temas, ela decide deixar a vida que levava com o noivo Sam (Dermot Mulroney) e passar uma temporada de verão na casa de sua tia Glady Joe (Anne Bancroft) e de sua avó Hy (Ellen Burstyn), com o objetivo de repensar os rumos sua vida acadêmica e pessoal. Reencontra, então, os rituais de um grupo de mulheres de uma pequena comunidade no interior da Califórnia, com os quais está familiarizada desde a infância. Elas reuniam-se, sob o comando da forte Anna (Maya Angelou), com o objetivo de confeccionar colchas de retalhos com temas específicos, que é uma tradição bastante comum no interior dos Estados Unidos. Juntas formavam o que chamavam de Clube da Costura. Naquele verão, o tema da colcha que o clube preparava era o resgate das memórias de amor daquelas artesãs, sob o título “Onde Mora o Amor?”. Cada uma delas seria responsável pela elaboração de um quadrado da colcha e o trabalho final seria presente de casamento para Finn. Desse trabalho artesanal são tecidas suas histórias de amor (e de dor) ao longo da vida até chegarem àquele momento.

Alguém aí deve estar se perguntando: por que resgatar esse filme lá do fundo da prateleira para escrever sobre ele agora? Tenho alguns - talvez bons - motivos para escrever sobre ele. Assisti a esse filme pela primeira vez há muitos anos e sempre fiquei com uma sensação de que faltava algo e que eu precisava revisitá-lo para costurar o que ficou para trás. Sempre deixei para depois. E isso é uma característica minha também. Procrastinar ou postergar poderiam ser agregados ao meu nome de batismo. Não costuro meus retalhos muito bem por falta de jeito ou preguiça mesmo. Mas lá no fundo eu sabia que precisava revisitar as sensações que tive quando assisti ao filme pela primeira vez e que uma hora dessas seria o momento. Aconteceu agora.

Nesta época do ano, quando somos enxovalhados por rituais externos a nós, quando somos impelidos a repensar nossas vidas, avaliar o que vivemos e projetar nossos sonhos frustrados de hoje com o combustível da esperança num futuro distante e incerto, porém melhor (?), senti que precisava rever algumas coisas esquecidas por aí. Certo, assisti ao filme para começar. Isso foi há alguns dias atrás. Demorei a escrever porque precisava decantar minhas emoções. Até porque assisti ao filme em um momento de letargia deliciosamente preguiçosa e amorosa de feriado. Agora, passado algum tempo, sento-me e tento escrever sobre minhas impressões para não ficar falando sozinho pela casa.

Abri a janelas e deixei a luz da manhã entrar, tomei um banho demorado, vesti uma roupa confortável. Cheiro de sabonete, pasta de dentes e café recém passado. Limpeza. Do corpo e da alma. Café de um lado, cigarros do outro (nem tão limpo assim). Não bebo nem fumo, entretanto, mas deixo tudo ao alcance da mão. Cerco-me de coisas que podem me proporcionar familiaridade, aquela almofadinha fofa nas costas, a xícara grande de porcelana branca, incenso de alfazema, a camiseta velhinha de “andar em casa”, chinelos de dedo e Billie Holiday como trilha sonora. Queria uma vitrola para ouvir o chiado do vinil harmonizado com a voz potente de Holiday e uma máquina de escrever igualzinha à da personagem Finn. O som seco dos tipos marcando o papel é delicioso e lembra algo da minha infância. Se sons tivessem cheiro esse teria o cheiro do pão-de-ló da minha mãe recém saído do forno.

O que mais me tocou no filme foi a forma de retratar a construção das memórias e os vínculos que formamos com outras pessoas, através dos rituais que desenvolvemos para que essas relações aconteçam. Fiquei pensando no quanto esses rituais podem ser reveladores para (e de) nós mesmos. Por mais automatizados e instintivos que sejam, esses rituais nos conectam com o que temos de mais essencial. Fazemos nossos retalhos sozinhos, mas quando olhamos para o lado, o retalho do outro encaixa perfeitamente no nosso. Então tecemos juntos uma mesma colcha de histórias amorosas. Penso que o mais fundamental é sempre o mais esquecido. De tempos em tempos, precisamos parar e revisitar nosso passado para encontrarmos a nós mesmos. É o que as mulheres do filme fazem. Cada uma à sua maneira, cada uma com suas particularidades, todas revisitam suas histórias para desconstruir e reconstruir significados através dos retalhos de tecido colorido. E é um trabalho de buscar o retalho mais apropriado, costurar ponto a ponto, refazer quando a costura não está perfeita, juntar todos os pedaços de história que tecem o que chamamos de “Vida”.

Finn não costura. Ela é o tipo de mulher que tece sua história através de uma máquina de escrever. Ou pelo menos tenta se encontrar através do academicismo, cético e racionalista, que guia seus passos e suas escolhas. Ela é uma artesã tão habilidosa quanto as costureiras da comunidade. Ela também tece uma trama para construir significados para sua própria existência. Ela também faz retalhos com costuras tortas. Ela também precisa desmanchar a costura e refazê-la quando não está perfeita. Ela também tenta excluir ou ocultar alguns retalhos da trama para que ela tenha um significado esperado ou ideal.

Em um momento da narrativa, uma das costureiras é inquerida sobre os motivos que a levaram a “contar” sua história com cores que não estavam harmonizadas com as demais. Ela é pressionada a excluir-se do grupo, juntamente com o “retalho” que conta sua história de amor. Isso me faz pensar em quantas vezes queremos contar uma história de nossas vidas com determinada unidade, sem percebermos que a vida é muito mais dinâmica e que não podemos esperar uma unidade estética (ou ética?) ideal porque ela simplesmente não existe. A vida é o que se apresenta diante dos nossos olhos e o máximo que podemos fazer é juntar os pedaços de vida que existem pelos cantos e tecermos nossa trama amorosa.

Contar nossa história é justamente isto. É recortar, juntar, montar, costurar e buscar sentidos novos para nossos eventos passados. E cada vez que visitamos nosso passado construímos uma nova colcha de retalhos, com novos elementos, mais viva. Estamos sempre transformando o que nos cerca externamente e o que nos preenche internamente.

Quero fazer um convite a você que chegou até aqui: Procure aquela velha caixinha de costura, junte panos coloridos, agulhas, linhas e tesouras e visite seu passado. Recrie, corte, recorte, costure com carinho, reconstrua e traga a beleza, mesmo dos eventos tristes, e reavive as cores dos momentos de felicidade. Porque o ano novo já está logo ali e isso não faz diferença nenhuma. Ele poderia estar muito longe de acontecer, caso não seguíssemos o calendário gregoriano, ou poderia nem mesmo acontecer, caso não seguíssemos calendário algum e a vida fosse apenas uma sucessão de dias sem quaisquer fases ou ciclos. Não é o amanhã, mas o que carregamos no peito agora neste exato momento o que realmente importa. Somente haverá um amanhã com lembranças valiosas de ontem se o hoje for lapidado como a pedra preciosa que é.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

ONDE ESTÁ (A JANELA DE) WALLY?





“Esses prédios, que se sucedem sem lógica, demonstram total falta de planejamento. Exatamente assim é a nossa vida, que construímos sem saber como queremos que fique.”



O título em português já dá indicativas de como é construída a narrativa desse belíssimo filme, produção argentina, espanhola e alemã, ambientado em Buenos Aires e dirigido pelo novato em longas metragens Gustavo Tarreto, que assina também o roteiro. Medianeras: Buenos Aires da Era do Amor Virtual, como foi batizado no Brasil, é um filme interessante e bem amarrado, com um título infeliz aqui no Brasil, e que não faz jus aos seus atributos. O título original, por si, traduz perfeitamente a atmosfera apresentada pelo autor. A trama trata das buscas e perdas a partir de dois solitários, que nunca se cruzaram, tendo como pano de fundo uma Buenos Aires definida por construções opressoras e pautada por medianeras, como são chamadas em espanhol as paredes cegas dos prédios. Apesar de desconhecidos, eles são vizinhos e vivem vidas semelhantes. Ambos perdidos de si mesmos em uma grande cidade cinza-azulado de concreto contra um céu pouco celeste, imersos em uma penumbra claustrofóbica de seus passados fragmentados, presentes de olhares sem sonhos e futuros sem esperanças. O título, quase em tom de comédia da Meg Ryan, dado pelos nossos conterrâneos tupiniquins, nos possibilita, entretanto, alguns questionamentos, tais como: que “era do amor virtual” é esta onde estamos cada vez mais solitários? Que significados damos ao “amor”? O que é virtualidade?

Tenho percebido que os argentinos tem conseguido tratar desses assuntos de maneira feliz e sensível. A exemplo dos filmes Elza e Fred (2005) e La Vieja de Atrás (2010), que tocam em temas da solidão e velhice, Medianeras traz à tona a angústia e solidão nas grandes cidades, (in)comunicabilidade e isolamento, tendo como cenário uma Buenos Aires cosmopolita, cinzenta e impessoal, angustiante e onde a própria arquitetura da cidade forma pequenos nichos individuais, celas onde indivíduos são – voluntariamente ou não – confinados.

“O que esperar de uma cidade que dá as costas ao seu rio? É certeza que as separações e os divórcios, a violência familiar, o excesso de canais a cabo, a falta de comunicação, a falta de desejo, a apatia, a depressão, os suicídios, as neuroses, os ataques de pânico, a obesidade, a tensão muscular, a insegurança, a hipocondria, o estresse e o sedentarismo, são culpa dos arquitetos e incorporadores. Esses males, exceto o suicídio, todos me acometem.” É assim que a trama de Tarreto é descortinada para o grande público. Assim ele apresenta dois dos personagens principais da trama: A cidade de Buenos Aires e Martin (Javier Drolas). Poderia ser a história de qualquer um de nós, vivamos em grandes ou pequenas cidades, em grandes ou pequenos apartamentos, iluminados ou não, sozinhos ou não. Afirmação meio sem sentido? Talvez. Deixo, porém, de lado a identificação pessoal inicial que existe para um cara como eu, que vive sozinho, porque não vem ao caso. A bem da verdade, é inevitável não desenvolver empatia pelos personagens da trama de Tarreto. Todos passamos por momentos de cinza-azulado absoluto, inclusive na mais profunda solidão a dois. Isto porque vivemos até as últimas consequências o mito pós-moderno da liberdade individual e conhecemos muito bem a “angústia da pós-modernidade” - que já é um termo bem ultrapassado, porque a era da tecnologia nos impele cada vez mais rápido de um não lugar para lugar nenhum.

Logo em seguida, é apresentada a outra personagem, Mariana (Pilar López de Ayala): “Há dois anos sou arquiteta, mas ainda não construí nada. Nem um prédio, nem uma casa, nem um banheiro. Nada. Só umas maquetes inabitáveis, e não só por causa da escala. Com outras construções, também não dei certo. Uma relação de quatro anos ruiu, apesar dos meus esforços para mantê-la de pé. Se minha vida fosse um jogo como o Jogo da Vida caberia a mim o castigo de voltar cinco casas. Por isso estou aqui, com a vida desordenada em 27 caixas de papelão, sentada num rolo de 12m de plástico bolha para estourar, antes que eu mesma estoure.”  Somos multidões de engaiolados em mundos cada vez menores e mais individuais. Vivemos cercados, delimitados por nossas paredes cegas para que não vejamos  a intimidade do outro, pelos elevadores que não utilizamos porque somos claustrofóbicos, pelas calçadas que não transitamos porque somos agorafóbicos, pelas pessoas que nos definem e conceituam. Ruminamos ad aeternun  nossas angústias e nossas frustrações. Em nome de nossas liberdades individuais, nos fechamos em caixas herméticas. Criamos uma identidade baseada em toda sorte de rótulos de transtornos modernos e nos anestesiamos com psicotrópicos cosmopolitas.

“Quando vamos ser uma cidade sem fios? Que gênios esconderam o rio com prédios, e o céu com cabos? Tantos quilômetros de cabos servem para nos unir ou para nos manter afastados, cada um no seu lugar? [...] Bem-vindos à era das relações virtuais.”, profetiza Mariana, no alto de sua cela.  O que é mais virtual: uma relação mediada por tecnologias da comunicação ou uma relação “pessoal”? Talvez tudo seja virtual, talvez não nos relacionemos com o outro diretamente. No filme, tanto Martin quanto Mariana tiveram, no passado, relacionamentos fracassados. Até aí nenhuma grande sacada do filme. Porém, esses relacionamentos são retratados como desertos de comunicação e dão indicativas que foi essa incomunicabilidade que fez com que ruíssem. E eles tentam resolver essa necessidade de contato através de outras janelas. E talvez somente nesse momento tenham conseguido estabelecer relações reais com o mundo, com o outro e consigo.  

Mariana era obcecada por encontrar, sem sucesso, o personagem Wally em um livro de gravuras chamado “Wally na Cidade”. E suas reflexões sobre suas buscas mais íntimas se traduzem nessa frustração de não saber onde está Wally na cidade. Martin, por sua vez, em um dado momento retira da embalagem original um boneco antigo do personagem Astro Boy, um mangá dos anos 60 que conta a história de um androide provido de sentimentos humanos. Coincidentemente ou não, esse boneco possui um dispositivo que abre uma “janela” em seu peito, onde é possível ver um pequeno coração brilhante. Essas sutilezas são o que há de mais interessante na obra de Tarreto. Porque talvez Martin seja uma espécie de menino-andróide que descobre que tem coração e Mariana, buscando Wally, busca a si mesma.

O objetivo das medianeras é preservar a privacidade dos vizinhos laterais. É manter certa ordem, um limite. O que fazem Martin e Mariana é justamente subverterem a ordem e abrirem, clandestinamente, janelas nessas paredes para que entre alguma luz. E essa é a maior libertação deles. Como se fossem seres presos em cápsulas, eles quebram a casca que os envolve e se abrem para o mundo exterior, saem do casulo, ou pelo menos abrem uma fresta para enxergarem o que existe além-cárcere. Mas para saber se isso funciona, você precisará assistir ao filme. Ou quebrar uma parede e abrir uma janela em sua própria medianera. 



quarta-feira, 28 de novembro de 2012

RENACERÉ! RENACERÉ! RENACERÉ!


"Silêncio"  - Montserrat Gudiol

“Não lhe peço nada
Mas se acaso você perguntar
Por você não há o que eu não faça
Guardo inteira em mim
A casa que mandei um dia pelos ares
E a reconstruo em todos os detalhes
Intactos e implacáveis.”

(Adriana Calcanhoto – Pelos Ares)


[Para ler ao som de Yann Tiersen – “L’Absente” (O Ausente)]


- Viajei dez mil quilômetros, numa odisseia de mais de vinte e quatro horas para estar aqui, no mesmo lugar onde encontrei você pela primeira vez, há mais de dez anos atrás. Aqui vivemos nossas primeiras horas juntos. Foi mágico, não foi? Era primavera. A primavera aqui é tão bonita. Tudo tão colorido, tão leve, tão claro. Dá vontade de viver e de amar loucamente. Foi nessa ânsia de sentir tudo ao mesmo tempo que nos encontramos. Éramos dois solitários querendo amar como se só nos restasse isso. E talvez amar fosse mesmo tudo o que tínhamos. Estávamos subitamente maravilhados, tomados de assalto pelo presente que a vida nos oferecia. E tínhamos a nítida certeza que não poderíamos desperdiçar esse momento em hipótese alguma. Desvendei você como se despetalasse vagarosamente uma flor, até chegar ao miolo, onde ficava escondido o néctar saboroso cobiçado por abelhas e beija-flores. E me deixei ser desbravada por você. Pelo menos até onde eu conseguia. E até onde você podia alcançar, porque se chegasse muito perto meus espinhos feririam sua pele. Essa sempre foi minha natureza e até hoje sou assim, infelizmente. Tento podar meus espinhos, mas eles nascem novamente em outros lugares. Como todos os espinhos, os meus são instrumentos de proteção contra predadores. Mas afastam quase todas as pessoas, principalmente as que não são predadoras, e resultam numa solidão quase sem fim. Nosso encontro sob a luz da primavera, cercados por suas cores, seus sabores e seus aromas, foi lindo. Foi piegas e clichê também, como todo encontro amoroso apaixonado nesta cidade. Éramos tão jovens e tão puros! Éramos tão bonitos! E tínhamos um mundo inteiro para conquistar. Eu não tinha cabelos brancos, você não tinha rugas. Meu ventre não era este deserto infértil, você ainda era viril como um touro. Eu não fumava, você não bebia. Não tínhamos cicatrizes dos nossos desastres implacáveis. Eu queria descobrir seu mundo, não importava se você fosse diplomata, malabarista de circo ou vendedor de automóveis, queria entrar em você até o mais profundo e descobrir quem realmente você era. E queria trazer você para dentro de mim, para o mais longínquo e desconhecido das minhas entranhas, para conseguir descobrir quem eu realmente era. Sim, era tesão o que sentíamos. Mas o meu era um tesão romantizado, porque eu era “moça fina de família tradicional”, metida a quatrocentona, sem um tostão no banco, mas com muita pose, e estava saindo pela primeira vez de casa para conhecer o mundo real sozinha e voar com minhas próprias asas. A mim era proibido sentir prazer pagão. A alguém como eu, “moça de boa família”, de moral irretocável, com educação talhada em internato de freiras, só era permitido exercitar um tipo de amor: o cristão, folhetinesco e vitoriano. E você me ensinou a ser dona do meu corpo, da minha vida e das minhas vontades. E ensinou-me a entregar-me a quem eu quisesse, com ou sem amor. Nossas primeiras horas mágicas viraram dias, que viraram semanas, depois meses e anos que no fim deram em nada além de dor e ausência. Porque sei que todo carnaval tem seu fim. Já não importa mais. Você, tão espiritualizado, depois de usar todas as drogas resolveu encontrar Buda, Krishna, Alá ou Jesus, nem sei mais. Você, que acreditava piamente nos ciclos da vida, sabe que isto é parte da “grande roda”, não é mesmo? Por isso fui embora. Por isso comecei agora um novo ciclo. Ou termino aqui, neste momento, um longo e infértil tempo. Porque desamor cansa, sabe. Não que eu esperasse que você me oferecesse algo que não era seu para satisfazer meus desejos, às vezes meio infantis e caprichosos, porque eu era uma mulher que estava me descobrindo como tal e sendo construída por você, com o seu amor e com o seu desejo por mim, e era natural que eu me perdesse um pouco com a excitação do descobrimento. Você sempre dizia que “ninguém dá o que não tem” e um monte de baboseiras espiritualmente elevadas que você lia naqueles livros que comprávamos nos sebos das feiras de pulgas, nos infindáveis domingos ensolarados e sem volta que tivemos. Eu não sei se vim até aqui, depois de atravessar um oceano por você, para dizer que não lhe quero mais e que talvez nunca tivesse lhe desejado de verdade, e sim desejado uma ilusão, uma ideia que criei, porque tenho mais de quarenta anos, porque queria viver um amor de verdade, porque queria sentir-me cotidiana, viva, intensa, comum e especial ao mesmo tempo, por ser capaz de ser amada e principalmente por ser capaz de amar. Mas não. Não sei se sou capaz de amar você ou qualquer outra pessoa. Tampouco sei se fui amada por você de verdade. Talvez fôssemos somente o egoísmo e a soberba de nos sentirmos especiais e únicos pelos vínculos que tínhamos (ou achávamos que tínhamos). Contudo, mesmo carregando essas amarguras cravejadas de incertezas e emolduradas por mágoas nunca reveladas, eu venho em aqui em missão de paz e reconciliação. Queria sentar-me à mesma mesa, tanto tempo depois, reviver o passado, revisitar nossa história e dizer que foi boa, que foi bonita. E que acabou. Ou então, revisitando minha própria vida, certificar-me se existe algum brilho do meu olhar perdido entre os farelos de pão sobre a toalha branca ou nas minúsculas gotículas do xerez no cálice vazio que ergo em contraluz pela haste e giro entre o polegar e o indicador.

Perdi-me em pensamentos e projeções olhando as gotículas do vinho escorrendo espesso pela borda do cálice. Como se saída de um transe, ergui os olhos na direção da cadeira vazia em minha frente. Tamborilei irrefletidamente os dedos na carteira de cigarros de filtro vermelho. Abri a carteira, peguei um cigarro e fiquei fazendo malabarismos com ele entre os dedos. Suspirei e hesitei em acendê-lo. Alisei as dobras da toalha de linho sobre a mesa. Minhas mãos ásperas contra o tecido fizeram um barulho que lembra o leve assovio que ele dava enquanto fazia coisas que o deixavam feliz, como preparar a sobremesa de chocolate que eu gostava ou lavar a louça do jantar enquanto eu bebia café deitada no sofá. Seria o sexto cigarro em talvez uma hora ou duas, talvez quatro ou cinco, nem sabia ao certo há quanto tempo estava sentada sozinha naquele mesmo lugar, imaginando tudo o que eu queria dizer a ele quando o encontrasse realmente. Acendi o cigarro sem querer fumá-lo. Olhei a hora. Já era tarde e logo a noite chegaria. Mesmo em dias mais longos de primavera, ainda anoitecia cedo. Eu ainda tinha que atravessar o rio e ir ao encontro que tinha programado.

O caminho até meu destino foi repleto de lembranças - boas e ruins - de tudo que vivemos. As praças onde estendíamos nossa toalha e passávamos as tardes de domingo, entre vinhos, frutas, pães e livros, os cinemas que frequentávamos nas tardes de sábado, os cafés de mesas nas calçadas que frequentávamos nas noites quentes de verão, os restaurantes onde nos encolhíamos nas madrugadas frias de inverno para nos aquecermos com caldos quentes. Até as ruas seculares de calçamento irregular onde volta e meia eu prendia o salto do sapato, perdia o equilíbrio e era docemente amparada por seus braços fortes, num abraço quente e confortante.

Finalmente cheguei em frente ao grande portão negro em estilo neoclássico, ornado com arabescos nas duas pesadas folhas e em cujo pórtico de bronze havia uma frase em latim que não compreendi. A entrada era guardada em ambos os lados por esculturas de gárgulas, pousadas sobre grossas colunas dóricas. A construção era imponente, embora decadente e de gosto duvidoso. Opulentas colunas jônicas de mármore de Carrara erguiam-se ao longo do terreno, cercando todo o imenso jardim frontal, ornamentado com uma infinidade de plantas tropicais, túneis de heras, passeios cuidadosamente calçados com pedras portuguesas em formas geométricas, fontes e esculturas de deusas gregas. Vi uma meia dúzia de Afrodites. Que lugar inusitado para se colocar tantas imagens da deusa do amor e do êxtase sexual! Quantas vezes ele e eu passamos juntos por este portão sem nunca repararmos nos detalhes? Quantas vezes nos roçamos sem querer nas folhagens que cobrem os muros, enquanto nos beijávamos na calçada? Quantas conversas descompromissadas ou juras de amor fizemos em frente às Afrodites, sem percebermos que elas nos espreitavam sorrateiramente? Saudades dos cheiros e das sensações amorosas daquela época que não existe mais. Respirei fundo e adentrei o jardim. Caminhei por alguns minutos pelos estreitos passeios até chegar ao meu destino final.

- Achei que seria gentil da minha parte lhe trazer umas flores. Sei que você gosta dessas delicadezas. Passei numa floricultura de esquina e comprei estas gardênias brancas, que são sutilmente perfumadas. Vou colocá-las neste vaso de porcelana. Sabe o que significam gardênias? O senhor da floricultura, ucraniano pelo sotaque, falou que significam “agradecimento”. Não entendi direito o que mais ele disse, mas somente saber que tem esse significado já foi suficiente para mim. Porque vim até aqui, atravessei o oceano, para estar aqui e te agradecer, depois de tanto tempo. Eu estava remexendo em velhas arcas de memórias empoeiradas e dolorosas e encontrei um pedaço de papel amarelado entre as páginas de um livro com a seguinte frase: “De tudo que vem de você, permanece em mim uma vontade de sorrir” *. Essa frase era uma dedicatória em um livro de J.D. Salinger que nunca li. Não comprei o livro, claro, mas anotei a dedicatória e coloquei o papel no meio de um livro da Jane Austen que você me presenteou, sem dedicatória alguma, embora eu tenha entendido posteriormente que a maior dedicatória que você poderia ter me oferecido era justamente me apresentar a Austen. Foi essa frase que me motivou a vir aqui hoje. Nosso último encontro foi de muito sofrimento e eu não quero perder a vontade de sorrir que vem de você e que me fez ser tão mais humana depois que nossos caminhos se cruzaram. Porém, o ciclo precisa ser encerrado. Fechei a porta para curar minhas feridas. Fechei-me em meu casulo para renascer. Por isso voltei somente agora. Você está tão bonito nesta foto. Talvez porque eu não via nenhuma foto sua há anos e talvez estivesse esquecendo os detalhes do seu rosto. Eu não queria ficar com as lembranças embaçadas, por isso queimei todas as fotos e objetos que lembravam você, por isso fui embora e deixei para trás nossa casa com toda nossa história, como se fosse um sarcófago. Não queria reminiscências. Parece mórbido achar bonitas fotos de lápides, mas você está bonito na foto. Minha última recordação sua foi a do seu corpo sem vida naquele caixão de carvalho e tudo que queria era que você acordasse e dissesse que ainda me amava como eu amava você. Mas não era possível. Por isso estou aqui agora, porque quero deixar estas flores em sinal de agradecimento a você. Queria poder beijar sua testa, como fazia antes de dormirmos, e dizer que você me fez uma pessoa melhor. Porque quando lhe conheci eu renasci, quando você se foi, eu morri com você e neste momento eu preciso renascer novamente. E renascerei, quantas vezes for necessário. Agora preciso ir, preciso pegar a última balsa e voltar para minha vida do outro lado do rio, do outro lado do mundo. Ou para o que sobrou dela. Ou para o que poderá ser ela a partir de agora que me despeço para sempre, trazendo você, finalmente renascido, junto comigo.  





* Sylvio Massa de Campos. Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/rio/ps-eu-te-amo-6826279#ixzz2DREQv7Rp © 1996 - 2012. Todos direitos reservados a Infoglobo Comunicação e Participações S.A. Este material não pode ser publicado, transmitido por broadcast, reescrito ou redistribuído sem autorização. 




sexta-feira, 9 de novembro de 2012

QUEM NUNCA?


Desperation - Antonina

“Esquecer o tempo
O céu
O sol
Um som
A pessoa
Um lugar.
Agora me diz o que faz você feliz!"

(Arnaldo Antunes)

Quem nunca sofreu de autocomiseração histérica, parado em frente à vitrine de uma confeitaria, vendo toda sorte de guloseimas irresistíveis e proibitivas e deixou de entrar, se sentindo absolutamente miserável porque antes de sair de casa percebeu que todas as roupas deixaram de servir? Quem nunca desejou sumir para sempre quando, no fim da noite, depois de ter passado horas de preparativos, numa superprodução digna de abalar estruturas, viu que nem com muita determinação e boa vontade sairia do “zero a zero” e que as únicas estruturas abaladas eram as suas próprias? Quem nunca se boicotou e se tornou seu pior algoz quando não se julgava merecedor de qualquer agrado da vida porque existiam coisas ainda mal resolvidas? Quem nunca quis fugir de tudo (principalmente de si mesmo) e correr das sessões de incursões solitárias de autodescoberta para as excursões etílicas em grupos pelos botecos quando olhou no abismo escuro interior e não viu nenhuma luz? Quem nunca desejou abandonar todos os planos e começar do zero porque o namorado não era o ideal, porque o emprego não era o ideal, porque o cabelo não era ideal, porque o corpo não era o ideal ou porque não adiantava querer aprender a cozinhar ou dirigir?

Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás”. É, pode até ser meio Guevara. Porém, pode ser menos pop, sem precisar estampar em camisetas vermelhas de algodão vagabundo uma ideologia distante e desconhecida. A impressão que tenho, “de tanto levar frechada”, é que na dor que crescemos mais. Mas com amor é muito melhor. Não acredito que consigamos ver progressos pessoais somente com amor, entretanto. Não, não é uma teoria masoquista. E não que eu goste de dor (minha e alheia). Pelo contrário, a vida podia se cor-de-rosa e fofinha que eu ia achar bem bom. Mas de fato, quando sofremos como cães é que a vemos a vida mais crua e nua. Meus olhos são bondosos, mas minha mente é bem madrasta comigo. O inferno não são necessariamente os outros. A realidade talvez seja mais cinza do que eu via aos seis anos de idade.

Pensando bem, não, não é verdade. Acho que quando eu tinha seis anos era pior que hoje. Pelo menos hoje tenho condições de alcançar as prateleiras mais altas da geladeira e preparar sozinho meu cereal matinal com leite. Melhor: não preciso mais beber leite, tampouco comer cereal, porque passei (há tempos) da idade de não poder usar o fogão e não há ninguém no mundo que me demova do sagrado desejo matinal de ovos mexidos, bacon e café preto no meu petit dejeuner.

Admitir-se dependente da bondade de estranhos soa melhor na boca de Blanche Dubois. Ser capaz de me autogerir, mesmo errando o tempo todo, é libertador. Só que é uma espécie de prisão também. Porque não posso pedir ajuda sempre, uma vez que nem sempre tem alguém ao lado, não posso ser negligente e passar incólume porque sempre há uma espécie de cobrança velada. Sou completamente autossuficiente, afinal. A bem-aventurança da ignorância é jaz. Como sou rotulado de independente, então as pessoas não estão disponíveis porque pressupõem que eu não preciso de ajuda alguma. O que também não é verdade. Quero colo e quero fugir de casa, às vezes, mesmo morando sozinho.

Tem horas que a gente exaure. E diz “chega, né?!” para tudo, não tira o pijama de manhã e passa o dia em silêncio, arrastando chinelos pela casa, bem Gal, esperando que a “nuvem negra” passe, largue o dia e leve o mal que o arrasou. Por mais madrasta que a vida seja às vezes, o que ela quer de nós é que sejamos generosos. Com os outros e conosco. E não digo isso com nenhuma espécie de sentimento religioso. Nada disso. É a mais pura generosidade pagã. É bom ser generoso, acredite. Porque nos livramos de algo que talvez não seja assim tão importante para nós e que pode ser fundamental para a outra pessoa.  E se somos generosos com os outros, acabamos sendo conosco também. E dizer “BASTA!”, assim mesmo com letras garrafais, para coisas que nos subtraem, que nos tornam menores, piores, é a atitude mais generosas que podemos ter em relação a nós próprios.

Quando penso em generosidade, e principalmente se minhas atitudes são assim classificáveis, sempre sofro de dúvida atroz. Não sei até que ponto estou sendo realmente generoso ou apenas covarde, egoísta, maníaco obsessivo, que é um grande risco que corro. Mas como uma pessoa pode querer (ou parecer) generosa e ser egoísta? Explico. Se oferecemos a alguém o que temos - supostamente - de melhor e esperamos que ela seja muito mais que aquilo que é e muito mais que aquilo que pode vir a ser, não estamos realmente sendo generosos com ela. Agimos esperando um resultado, almejando um objetivo. E nosso objetivo provavelmente é ter do outro aquilo que NÓS desejamos egoisticamente. Da mesma forma podemos ser covardes ao invés de generosos: Amamos o máximo que podemos, ofertamos o que temos que mais nobre e raro, porque alimentamos o amor com medo de ficarmos sozinhos e perdermos aquilo que julgamos tão imprescindível.

Indo um pouco adiante, assumo que sou um grande entusiasta do ócio lúdico e produtivo. E acredito que ele pode ser também uma atitude de generosidade. O comodismo é irresistível quando tudo está bem. E para que lutar contra ele? Prova disso é que fico preguiçoso até mesmo para escrever. Eu vivo simplesmente. E deixo a vida me afagar com fugazes momentos de felicidade. E exagero na generosidade comigo mesmo porque sou notoriamente desmedido. Se estou feliz, acho que sou mais generoso com os demais também. E se está tudo bem lá em casa eu não faço mais nada na vida além de viver simplesmente, meio gauche, o mais próximo possível da minha natureza mais íntima. Esse lance de uma cabana, uma rede e um amor funciona super bem comigo, mesmo sem um amor, sem rede e sem cabana. Mas se a ideia é ser generoso, tento acertar o que poderá fazer as pessoas felizes e o que me fará feliz. E aqui e agora, neste exato momento, entrego a quem quiser estes meus pensamentos fragmentados e palavras soltas... Foi!

Imagem cedida por Leonardo Cassimiro. Arquivo pessoal

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

COFFEE DATE

Leonid Afremov (1955, Belarus)


“Que seja presença e companhia, o relacionamento bom: pois a solidão é um campo demasiado vasto para ser atravessado a sós.”

(Lya Luft. “Pensar é Transgredir”, Ed. Record, pág. 35)


Quarta-feira, 15h. Depois de pensar muito, ponderar infinitamente todas as alternativas possíveis e me boicotar como de costume, joguei para o lado a manta de patchwork colorida com a qual cubro minhas pernas para me proteger do mundo, desliguei a TV e juntei do chão as embalagens de chocolates belgas, comprados por uma bagatela e com muito esforço no “mercado do negro”, um amigo muambeiro que contrabandeia delicadezas importadas. Eu estava em meu ninho. Esse era meu castelo secreto, meu mundo particular, o único lugar onde eu poderia ser eu mesma e esquecer as convenções sociais. Em meu mundo particular eu posso ser contraventora, receptadora, gorda, feia, não me depilar e não tomar banho um fim de semana inteiro. Posso ser neurótica, cheia de manias, desenvolver fluidamente meu transtorno obsessivo compulsivo, comer gordura saturada e beber a quantidade de unidades alcoólicas que quiser, ouvindo um bolero bem dor de cotovelo na voz rouca de Waleska ou dançando estranhamente um folk ucraniano. Meu castelo é meu lugar no mundo. Tenho minhas lembranças, minha música, minha máquina de escrever, meus livros. E mesmo assim algo sempre falta. Será que nunca terei um mundo perfeito? Que maldição é essa de desejar infinita e indefinidamente tudo aquilo que não tenho até conquistar e automaticamente eleger outro objeto obscuro de desejo?

Como sempre me falta algo, fui em busca de saciar minha sede de viver. Levantei-me e fui vestir a roupa camuflada de minha personagem. Escolhi com cuidado algo que desse aquela levantadinha no busto irremediavelmente flácido e na bunda cada dia mais precária e que não mostrasse minha barriga protuberante, resultado de madrugadas inteiras beliscando guloseimas e chorando com filmes românticos dos anos 50. Passei pelo insuportavelmente doloroso processo de depilação sem nenhuma glória. Quem inventou que precisamos de depilação devia nos odiar profundamente. Misoginia! Mesmo ficando com as virilhas cheias vergões de tão irritadas e as canelas cravejadas de pontos vermelhos, não tinha condições de bancar a feminista peluda revolucionária das Barricadas de Paris de 1968 porque corria o risco de causar a pior das impressões. Então, respirei fundo me joguei no “Dia de Mulherzinha”.

Tomei um banho demorado, cuidando para passar a esponja em todos os recônditos que nunca toco ou sequer lembro que existem. Para que lembrar dessas coisas? Até descobri que tenho um sinal bonitinho que nem sei se é de nascença ou não. Uma manchinha caramelo em formato que lembra um coração, ou uma pera, ou uma coxinha de frango, ou nada disso. Aquele banho incomummente demorado foi um carinho do tipo que há tempos eu não recebia. Tive vontade de permanecer indefinidamente sob o chuveiro morno massageando meus ombros e ficar acariciando-me delicadamente com a esponja. Como posso viver tantos anos neste corpo que não conheço? Como posso não visitar-me para me fazer feliz? Tive vontade de se generosa comigo, vestir o pijama novamente, sentar em minha poltrona de leitura e votar a ler Jane Austen depois de mais de vinte anos. Mas não, não podia, eu tinha um compromisso ao qual não poderia faltar, custasse o que custasse. Simone de Beauvoir, protegei-me! 

Depois de me besuntar de creme hidratante canforado para diminuir a irritação da pele, vesti meu roupão e fiquei um tempo vendo uma pilha de roupas sobre a cama. Bancaria a donzela vitoriana, pura e casta, com uma blusinha branca de rendas e brocados? A femme fatale, agressiva e independente, com um vestido rubro e salto alto de vinil? A urbanóide descolada de jeans estonado, T-Shirt monocromática, lenço palestino no pescoço e óculos de grau? Ou sairia na rua sendo eu mesma, de cara limpa, “cabelos brancos de melancólica Rapunzel1, como diria Lya Luft, castamente presos num coque e nenhuma graça no olhar? Bullshit! Decidi ir de cara limpa, sendo eu mesma. Não, não era uma boa alternativa ser eu mesma. Tá difícil ser eu sem reclamar de tudo2. E cadê meu estojo de maquiagens? Não sabia nem como segurar um pincel. Será que dava tempo de achar algum tutorial na internet ensinando o passo a passo do truque para ser outra?

Maldita hora que passei meu número de telefone a um ilustre desconhecido que me abordou em público. Na verdade eu só queria contrariar todas as estatísticas e superstições que dizem que não seria na fila do supermercado, numa tarde chuvosa de sábado, quando eu estava com o pior moletom, a pior cara e o pior humor, que aconteceria algo como “uma possibilidade”. Além disso, porque essa abordagem mexeu com minha vaidade. E admito que depois de tanto tempo sozinha, pensar que poderia ter um encontro me soou atraente. Agora, porém, amargo a séria possibilidade de ver o processo de rejeição longo e doloroso do passado se repetir mais uma vez.

Quando recebi a ligação, inesperadamente, no domingo após o encontro casual no supermercado, fui invadida por uma breve alegria. Que bonitinho ele me ligar, pensei. Logo depois bateu o pavor. O que ele vai pensar de mim se eu aceitar? O que ele vai pensar de mim se eu não aceitar? Mas se ele ligou é porque deve estar pensando que eu sou fácil, e eu sou mesmo. Se eu não aceitar, ele vai pensar que eu sou fácil e me faço de difícil, o que também seria verdade, porque eu estaria fazendo gênero. Não estou em condições emocionais de dizer não a um encontro que nem precisei batalhar muito para conseguir. Não que eu batalhe por encontros normalmente. E não que me venham facilmente, por outro lado. Encontros simplesmente não acontecem comigo. Fáceis ou difíceis, eu nunca estou muito disposta, mesmo que esteja eternamente disponível.

Enquanto me vestia ritualisticamente pensava no ritual do encontro. Eu já conheço os passos dessa estrada, sei que não vai dar em nada3. Eu chegaria, sentaria, esperaria. Ou ele chegaria, sentaria, esperaria. No primeiro caso eu estaria com a cara de tédio que me é peculiar em casos de esperas ásperas. No segundo caso, chegaria ofegante, escabelada e com o rosto suado, falando sem parar e me desculpando histericamente por ter me atrasado. Não sei o que causaria a pior impressão. Eu sempre acho que estou causando a pior das impressões. Mas tudo bem, era melhor não estar suando como um operário de senegalês de minas de carvão. Por isso apurei o passo para terminar logo de vestir meu paramento e, bélica, ir para o local marcado.

Aceitei o convite e escolhi o dia e o local onde nos encontraríamos. Queria um local público, neutro e que não me tirasse de minha zona de conforto. Que outro lugar poderia ser? Claro que foi em uma confeitaria. Só açúcar e café forte me reconfortariam e me acalmariam, já que eu não podia fumar mais em locais fechados, e mesmo que pudesse não o faria para não causar uma impressão ainda mais negativa. Aliás, odeio essas campanhas antitabagistas. Não porque sou fumante, mas porque sou livre. Tenho o direito de escolher o que fazer da minha própria vida e se escolher morrer um pouco a cada tragada, a escolha é minha. Suicídio é um ato de liberdade. Mas querem que sejamos boas moças, puras e castas vitorianas. Fucking’s health moralists!

Cheguei e procurei uma mesa de canto, próxima a uma grande janela que dava a um parque com ipês impressionantemente coloridos. Sentei-me de frente para o parque, pedi um cappuccino grande, uma generosa fatia de cheese cake e tentei me acalmar. Mas dei-me conta que estava de costas para a entrada e assim não veria o rapaz do supermercado chegar. Espero que ele me reconheça facilmente, pensei. Eu estava sem óculos e sem lentes de contato naquele dia no supermercado e não vi direito o rosto dele. Também não faria diferença, eu aceitaria de qualquer forma a abordagem, porque meu narcisismo sempre me faz cometer esse tipo de loucura de dar abertura às pessoas só porque elas olharam para mim. Ou talvez não seja meu narcisismo, mas minha profunda baixa autoestima.  Mas não queria pensar nisso. Mudei de lugar e sentei de frente para a porta. Mas não era um bom lugar. Eu pareceria muito desesperada e ansiosa, espreitando a entrada. Além disso, a luz que vinha de fora era péssima para minha pele, porque mostrava todas as manchas e rugas que eu já tinha tentado esconder com base líquida e pó compacto. Sentei em outra mesa, onde a luz era mais fraca. Puxei uma cadeira lateral, onde poderia ver a entrada e o parque colorido no fim da tarde e de onde poderia fingir distração e tranquilidade vendo as pessoas praticarem esportes (que me cansavam só de vê-los de longe), enquanto folhava uma revista de fofocas sem lê-la. Finalmente o lugar escolhido estava bom. Ajeitei o cabelo atrás da orelha, alinhei a coluna e joguei os ombros para trás (ando arqueada como uma camponesa eslovena sexagenária), cruzei as pernas, meio sexy, mas contida. Posicionei o café na diagonal à minha esquerda, a fatia de torta na diagonal à minha direita, a revista bem à minha frente, acima dela o açucareiro, o adoçante, os guardanapos e a placa com o número da mesa, milimetricamente alinhados.

Dezesseis era o número da mesa. A soma dava sete. Sete é o número da perfeição, dizem. Eu nasci no dia dezesseis, que é o número da mesa, e cuja soma com mês e ano de nascimento também dá sete. A soma dos quatro últimos números do telefone do rapaz do supermercado dá trinta e quatro, portanto, sete. Moro num prédio cujo número é 2500, que também dá sete. Serão sinais? Tenho que parar com essas paranoias obsessivas com numerologia. Isso já me rendeu sete anos de azar, catorze anos de análise e sete meses numa clínica para dependentes químicos.

16h27min. Ele estava atrasado. E novamente a soma dos números dava sete, mierda! Eu acho que ele não vem, ele não vem não, ou será que virá?4 Eu já havia bebido o cappuccino, já havia folhado duas mil setecentas e vinte e cinco vezes a mesma revista, tamborilava na mesa as unhas recém-pintadas de rosa bem clarinho.  Já tinha perdido a pose e segurava o queixo com a outra mão, com a coluna virada num “U”, olhando para o nada no parque lá longe e os pés cruzados sob a cadeira, prova que estava louca para sair correndo dali. Então, ele entrou. Abriu um sorriso franco e me desarmou. Estendi a mão, polida e pudica, e ele inclinou-se para beijar-me. Sua barba roçou levemente o lóbulo da minha orelha e tive um arrepio. Oh, Deus, pensei, te segura. Talvez ele tenha pedido desculpas pelo atraso, mas eu estava tão desconcertada com a barba dele roçando em mim e com aquele sorriso branco no meio daqueles pelos negros que fiquei surda por alguns momentos.

Ele não é um homem bonito. Seus olhos são juntos demais, sobrancelhas negras bem marcadas, nariz adunco, pele meio macerada, cabelos finos, desgrenhados e ressecados. As mãos são bonitas, fortes e com juntas salientes. Ele é alto, magro, meio desengonçado. Pareceu-me ser até meio manco, mas talvez fosse constrangimento de atravessar o longo salão sendo observado detidamente por mim, sentada na mesa do fundo. Acho que ele chegou a pensar que eu olharia para ele quando chegasse à beira da mesa e diria: “Certo, vire-se. Ok, sente-se.” Confesso que pensei em fazer isso, lançando um olhar analítico-megera, meio Anna Wintour, mordendo a ponta dos óculos, erguendo uma das sobrancelhas e acariciando o queixo. Obviamente não fiz, embora tenha realmente realizado uma avaliação preliminar do rapaz, da mesma forma que certamente fui analisada - rogo que positivamente.

Conversamos longamente e nem percebemos a hora passar. Ele contou-me sobre suas andanças pelo mundo, seu cotidiano, família, amigos, gostos diversos. Chegou a fazer certa autopromoção, supervalorizando seus feitos mais simples, mas tentei exercitar minha condescendência em primeiros encontros. Ele é tímido, comedido, mas bem articulado. Parecia que estávamos compassados, cumprindo a dança da conquista, respondendo mutuamente ao questionário básico da entrevista para ocupar a vaga disponível. Tentei falar brandamente o que penso, sem me mostrar muito e sem me boicotar. Sempre falo bobagens quando estou tensa e primeiros encontros são polos de tensão. Acho que por isso que não tenho segundos encontros. Ponto para mim. Comportei-me perfeitamente, acho. Sem piadas de humor negro, politicamente incorretas, preconceituosas e principalmente autodestrutivas.

Entardeceu, o sol se pôs, a confeitaria fechou. Quando olhamos para o lado, todas as mesas estavam vazias e as cadeiras começavam a ser empilhadas sobre elas para que a limpeza do salão começasse. Levantamos e nos dirigimos à porta. Momento constrangedor. Eu não sabia o que dizer, o que sugerir, nem sei se queria fazer algo depois. Um café no fim da tarde nem é propriamente um encontro. É um café no fim da tarde. Encontro seria se ele me levasse para jantar a luz de velas em um restaurante francês ou se fizéssemos um passeio em algum parque no domingo, com direito a piquenique com vinho e frutas. Mas era apenas um café. No fim da tarde. E eu estava preparada para a constrangedora despedida na beira da calçada. Eu vou para um lado e ele diz que tem que ir para outro, mesmo que fosse para o mesmo lado, só para não me acompanhar. Eu estava acostumada e havia me tornado expert em me desvencilhar de despedidas constrangedoras no fim de encontros desastrosos.

E foi o que aconteceu. Meio desajeitados - ele muito mais que eu – nos despedimos próximos ao meio-fio. Deixei cair no chão os óculos de grau quando tentava colocá-los na bolsa. Gentilmente ele curvou-se para juntá-los. Cena clássica: eu também me curvei e dei-lhe um encontrão fazendo com que derrubasse o livro que estava lendo. Fausto, de Goethe. Comentei que meu gato chama-se Fausto em homenagem à Goethe. Que queria chamá-lo de Mefistófeles, mas ele tem mais cara de Fausto mesmo. Ele riu. Não sei se foi positivo ou negativo o riso. Hesitei. Senti-me ridícula. Ele deve ter pensado que nunca li nada de Goethe. Para evitar prolongar o momento constrangedor, tratei de estender a mão para despedir-me com um sorriso amarelo e um “até mais, então”. Ele pareceu surpreso com minha reação. Despediu-se e perguntou se poderia ligar “um dia desses” para marcarmos um jantar. Sei, um dia desses é nunca mais, ainda pensei na hora. Vontade de dizer: “Ok, sem prêmios de consolação. I will survive.” Mesmo assim disse a ele que sim, que ele poderia ligar quando quisesse, e poderíamos combinar uma noite em que eu estivesse livre e que meu único dependente é Fausto e que ele é mais independente que eu. Ele insistiu perguntando se poderia ligar QUANDO quisesse. Franzi a testa, meio esquiva, e novamente disse que sim, que poderia ligar.

Como eu já esperava, ele foi para um lado e eu para outro. Mas fui eu quem perguntou para que lado ele seguiria. Coincidentemente ele ia para o lado que eu deveria ir e, sendo assim, a regra mandava que eu dissesse obrigatoriamente que ia para o lado oposto ao da minha casa. Dobrei a esquina e uma chuva fina chegou para lavar minha alma de mais um encontro frustrado. Minhas sapatilhas vermelhas de pano ficaram pontilhadas de chuva e contra o calçamento cinzento do passeio formavam uma composição bonita, meio melancólica, como eu estava. Apurei o passo me protegendo sob as marquises. Parei numa esquina para atravessar a rua e ouvi o celular tocando dentro da bolsa. Remexi seu interior procurando-o. Eu nunca conseguia encontrá-lo a tempo de atender da primeira vez. Quando o encontrei a ligação já havia sido encerrada. Guardei-o sem ver quem ligou. Pouca coisa me interessava àquela hora. O telefone tocou novamente. Eu estava no meio da travessia da rua e atendi às pressas.

- Alô? Oi? Sou eu...
- Oi...É...Tudo...Tudo bem? Que surpresa...
- Você disse que eu poderia ligar QUANDO quisesse, então liguei.
- Pois é...Rápido, né?
- É...Se você estiver ocupada tudo bem...
- Não, não...Estou somente mexendo no rabo e fazendo um castelo de areia. Mas com essa chuva acho que vou pegar meu cubo mágico da bolsa...
- O quê?
- Nada não, nada não...Então...Fala aí...
- Eu liguei porque você disse que eu podia ligar quando quisesse para convidá-la para jantar. Pensei que um encontro só é de verdade quando é um jantar ou algo assim tipo um piquenique no parque com direito a vinho e frutas. Mas com essa chuva...Café no fim da tarde não é um encontro e não dá para fazer um piquenique agora. É...O que quero dizer é...quero saber se você está ocupada para o jantar hoje, agora. E quero saber se Fausto sobreviverá mais alguma horas sem você?
- Não...Quer dizer, sim...Sim e não. Eu estou livre para o jantar, sim. E não, não estou ocupada. E fausto sobreviverá melhor sem mim que comigo. Onde te encontro?
- Vire-se e olhe atrás de você.

Eu virei. Uma mão segurando a bolsa, a outra puxando a barra molhada da calça e o celular preso entre a orelha e o ombro. No movimento brusco de virar-me derrubei o celular, que se partiu em três partes numa poça d’água.  Sorrimos, nos ajoelhamos e juntamos os pedaços do aparelho. Peguei o exemplar de Fausto que ele carregava e coloquei-o na bolsa para não molhar ainda mais. Continuamos nos esgueirando da chuva sem rumo certo. Vez ou outra ele me abraçava para me proteger e me puxava contra si para evitar que eu pisasse em alguma poça. 

Naquela noite eu tirei a barriga da miséria.

Imagem gentilmente cedida por Leonardo Cassimiro. Arquivo pessoal.

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1 Pensar é Transgredir. Lya Luft, pág. 30.
2 “Nuvem Negra”, Gal Costa.
3 “Retrato em Branco e Preto”, Chico Buarque.
4 “Tudo Pode Mudar”, Metrô.

sábado, 29 de setembro de 2012

POUR CHANTER EN CHOEUR: “JOYEUX ANNIVERSAIRE!”



“Den Döende Dandyn” – (The Dying Dandy): Nils Von Dardel, 1918 [*] 



“Pára, meu coração! 
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...” 

(“Aniversário” - Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)) 



[Para ler ao som de Bon Anniversaire – Charles Aznavour]



Dei uma última olhada no espelho bisotê emoldurado em ferro fundido com motivos florais em estilo rococó sobre o aparador antigo de mármore. Ainda tenho a mania de esperar que milagres aconteçam no caminho do quarto até a sala e que minha aparência milagrosamente melhore no exato instante em que certifico o feito no espelho do corredor. Não aconteceu, obviamente. Suspirei para buscar fôlego e continuar andando, arrumei uns fios rebeldes do cabelo que caíram sobre a testa já lustrosa devido ao nervosismo habitual da situação. Passei as mãos na lapela do casaco branco para retirar possíveis fios de cabelo, também brancos, caídos de minha cabeça cada vez mais calva. Vesti o sorriso mais forçado e adentrei a sala.

Todos esperavam por mim. Aplausos e abraços, risos altos e beijos estalados. Detesto esses contatos físicos próximos, principalmente quando penso que envolvem centenas de milhares de perdigotos jogados em minhas faces no final. Cumpri à risca o protocolo, que envolvia dizer a idade que estava completando e ouvir sorridente que “nem parece”, quando na verdade parecia, que eu estou “super bem para a idade...”, quando na verdade todos sabíamos que não estava, ouvir atento e interessado receitas para finalmente encontrar um bom casamento, já que a vida toda fui solitário e é inconcebível sê-lo por escolha pessoal na idade que tinha atingido, parar de fumar, porque “existem cinco minutos presos em cada cigarro”, parar de beber - porque prazeres hedonistas não são sóbrios - e de dormir até muito tarde em dias ensolarados de primavera, “porque o sol faz bem pros ossos, ainda mais depois de certa idade”, praticar exercícios e ter uma alimentação saudável. Enfim, eu deveria deixar de ser eu mesmo. Não existe coisa mais pedante que pessoas politicamente corretas. Sim, existe. São insuportavelmente pedantes as pessoas politicamente corretas que tem intimidade conosco e acham-se no direito de intervirem em nossos hábitos autodestrutivos. Agora que havia entrado nessa “nova era” dos quarenta anos deveria casar, ter filhos, uma casa com varanda e quintal, poupança, plano de aposentadoria, uma vida sem vícios. Resumidamente, queriam que eu trocasse de jaula. Uma nova prisão para um dândi de meia idade. Uma prisão mais digna do status que eu deveria ter com a idade que me alcançou, a idade da razão, que nem sei se algum dia terei. 

Aturdido, peguei uma taça de vinho branco e fui para um canto do salão. É reconfortante sentir todas as papilas serem inundadas pelas notas delicadas de um doce néctar de boa safra. Fechei os olhos e tentei me imaginar longe dali. Não funcionou. Ouvi gritarem meu nome. Acordei do breve transe nos braços de Dionísio. A realidade é pior que o sonho, sempre. Levantei-me e tentei parecer feliz. Caminhei em direção à grande mesa onde estava disposto um bolo com meu nome escrito com glacê. As pessoas não se cansam de serem cafonas com os outros e de expô-los a situações vexatórias? 

A hora do “parabéns pra você” é a pior desde que tenho três anos de idade. Tortura medieval seria menos dolorosa. Neste ano, como se não bastasse, eles aprenderam a cantar Parabéns em todas as línguas de todos os países por onde andei ao longo de alguns anos, na tentativa desesperada e frustrada de fugir de todos aqueles que naquele momento rendiam-me homenagens. Começaram a cantar em minha língua materna e terminaram gritando, “en choeur”: “JOYEUX ANNIVERSAIRE”.

Enchi os pulmões de ar, inclinei meu corpo para frente e expeli o ar vigorosamente pela boca, cuidando para fechar os olhos como se estivesse fazendo um pedido especial (que evidentemente não fiz porque meu único desejo, o de sumir dali, não seria realizado no momento em que precisava). Pronto. Apaguei as dezenas de velas brancas pequenas dispostas sobre o bolo de chocolate confeitado. Alguém entusiasmado disse que ele era feito de ganache de chocolate meio amargo, morangos e uma crosta de amêndoas caramelizadas. “Ma-ra-vi-lha!”, eu disse, com forte entonação na separação silábica. A vontade que tinha, porém, era de dizer que sempre achei o cúmulo do lugar comum à combinação de morangos e chocolate. Não consegui contar as velas, mas provavelmente o vexame completo era que elas representavam cada uma um ano da minha vida. Precisava esfregar a realidade na minha cara e fotografar para registrar para a posteridade a minha ruína? 

Eu via como um estrangeiro aquela agitação alusiva ao dia em que eu fazia anos. Não era para mim, não era comigo, não era eu. Ali havia um duplo de mim, oco e sem essência. Uma carapaça sorridente e compassiva atrás da qual o “Verdadeiro Eu” se escondia para satisfazer as necessidades alheias. Queria sentar no alto do morro mais alto, de onde podia ver todas as luzes deste povoado medieval parado no tempo acenderem, até as mais distantes, enquanto bebia meu Bourbon de qualidade duvidosa e fumava um cigarro marroquino de cravo. A vontade que sentia naquela hora, sabendo que era realmente amado por todos aqueles que festejavam a minha existência, era de dizer: “Certo, já sei que vocês me amam, agora preciso sair e ficar sozinho. Bebam e comam por mim. Somos todos bacantes!” Mas tenho crises atrozes de comiseração cristã. Eu jamais feriria essas pessoas com meu egoísmo. 

Há anos vim parar aqui nestas longínquas e isoladas tierras de España. Nem sei bem o porquê. Só queria fugir. Não consegui. Carrego, marcada na alma, a cidadela na fronteira com o Uruguai que deixei, carrego no peito os amores que deixei, carrego na pele as cicatrizes das lutas contra o Rei. E cercado de pessoas que supunha me amarem, felizes por terem preparado uma festa especialmente para mim, mesmo eu sabendo que não merecia tamanha honraria, tal como um bolo ostentando velas na quantidade dos meus anos, um prato generoso de pisto, tortillas variadas, tapas finamente adornadas e uma sangria forte, sentia claramente que eu era uma fraude.

Ofereceram-me mais um copo de sangria, porque tinham certeza que eu adoro - mas detesto profundamente e não diria jamais porque não tenho coragem de ser sincero e correr o risco de ser rejeitado. Minha necessidade de ser amado é maior que minha necessidade de dizer o que realmente penso. E por mais que fosse opressiva essa situação que via com distanciamento e estranhamento, pior seria se estivesse sozinho em casa com meu gato, sentados à mesa comendo comida enlatada fria ou então passando horas preparando um jantar sofisticado, composto por entrada, prato principal e sobremesa, harmonizado com bom vinho tinto, somente para mim. 

É uma tradição familiar que conservo desde a mais tenra infância a de transmitir afeto através da culinária. Todos em minha família costumavam abrir as portas de suas casas e receber as pessoas calorosamente com jantares ou almoços longos e fartos, impecavelmente apresentados e com cardápio invejável. Os prazeres sensoriais da boa mesa sempre foram nossa moeda de barganha. Eu não teria me tornado chef de cozinha profissional se não tivesse esse desejo de seduzir meus convivas com a alquimia exerço na cozinha. Além disso, é a única forma autêntica que conheço de demonstrar afeto. O resto é um grande espetáculo artificial. Mesmo sem refletirem muito sobre isso, todos em minha casa materna sabiam que não existia forma mais fácil e eficaz de dar e receber carinho que através da boa mesa e que não existiria, numa família emocionalmente desestruturada, outros momentos de comunhão – embora interessada – além dos proporcionados ao redor da mesa de refeições, onde cores, sabores e cheiros traziam à mente aconchegos longínquos ou recriavam carícias inexistentes. 

Cordato, sentei-me à cabeceira da grande mesa cuidadosamente posta, como gosto e como costumo fazer quando recebo os que me são caros. A toalha alva de cambraia bordada com arabescos pendia graciosamente nas laterais da mesa, os guardanapos de linho estavam milimetricamente dobrados e presos por anéis de alpaca polidos à exaustão e pousados do lado esquerdo dos pratos de delicada porcelana branca, as taças de água, vinho branco e vinho tinto eram de cristal alemão à direita, e os talheres de prata estavam irretocavelmente lustrados e perfeitamente dispostos. Irrepreensível. Todos se acomodaram em seus lugares ao redor da mesa, aparentemente eufóricos com o momento que supus ser o ponto alto da noite. Então, ouvi uma agitação maior. Aumentando gradativamente, surgiram palmas, sapateados, castanholas e uma guitarra soando de forma envolvente. E pelas minhas costas surgiu um carrinho trazendo um opulento jantar típico da minha terra de origem, preparado especialmente por um dos meus queridos ali presente. As baixelas de prata traziam toda sorte de cortes bovinos, ovinos e suínos, assados em brasas, vísceras que eu sequer seria capaz de identificar, carnes gordas e mal passadas. Uma refeição típica de bárbaros mongóis (ou latinos). O grupo musical, composto por homens alinhados em ternos negros e dançarinas exuberantes com vestidos de renda carmim, cercou a mesa. Todos acompanharam o ritmo da música com danças e palmas, enquanto os pratos eram cuidadosamente colocados em frente aos comensais, como se fosse uma oferenda aos deuses. Fiquei lisonjeado com o carinho e com a singeleza profunda do ato, embora abomine veementemente todos aqueles pratos. O cheiro da comida e a música tomaram conta de todo o ambiente e me deixaram mareado. Disfarcei e recobrei as forças com um gole d’água. Bati palmas, sorri e agradeci por tudo aquilo que estava sendo feito por mim. Intimamente, no entanto, eu estava completamente desolado com todo aquele circo. 

Serviram-me sem parcimônia alguma, ao melhor estilo latino no qual estávamos todos imersos. Remexendo a comida no prato com a ponta da faca pensava: Que pedaços são esses sangrentos e gordurosos no meu prato? Eram as vísceras de um boi, imaginei. Engoli seco. O que é isto? Frango? Ah, não, é o coelho da paella valenciana. Salivei, nauseado. Separei todos os pedaços de carne e tentei comer o restante do que me foi servido. Alternadamente bebia generosos goles de vinho ou água para conseguir deglutir a comida. Esta foi a maior das torturas já realizadas naquele vilarejo, desde sua fundação, em meados do século XVI. Não tive coragem de dizer a eles que eu sou vegetariano macrobiótico há anos, temendo estupefação geral e desprezo indistinto. Da mesma forma que jamais diria àquele grupo de católicos fervorosos, que fez uma oração em um dialeto basco em frente aos pratos servidos, que sou muçulmano e que havia me convertido já em idade adulta, porque tive uma louca paixão por um iraniano, cujo nome e rosto deliberadamente desapareceram da minha mente no dia em que ele resolveu explodir a si mesmo e à embaixada do meu país em Jerusalém, cidade onde vivíamos. Meu amor literalmente explodiu, mas minhas crenças permaneceram. Frágeis, mas existentes. 

Consegui, na profusão de pratos, taças e talheres, me livrar de toda carne servida a mim sem chamar atenção. Continuei sorrindo e conversando cordialmente com todos, afinal era essa minha obrigação. Por dentro, no entanto, a cada sorriso, sentia uma lança atravessar meu peito destruído. Tentei sair da mesa e ir fumar em um canto qualquer, longe da confusão. Impossível. Era hora da sobremesa. Servem espumante produzido nas redondezas do vilarejo. Razoável (bem razoável!), mas não digo nada porque era uma cortesia do produtor, que estava presente. Ergo um brinde e agradeço a cada um por toda a atenção e carinho dispensados ao longo de todos os dias, em especial naquele. Salud! 

Cabia-me, como é tradicionalmente feito, a incumbência de servir e dedicar o primeiro pedaço do bolo com algumas frases de efeito. Polidamente servi e ofereci à primeira pessoa que vi, aleatoriamente. E dirigi-lhe gentilezas genéricas que diria a qualquer um ali presente. Cortez, nada além disso. Sem que pudesse dizer que estava farto e não comeria naquela hora o bolo de chocolate, serviram-me uma fatia generosa, onde era possível ver a inicial do meu nome. Não pude dizer que sou intolerante à lactose e alérgico às amêndoas da crosta crocante do recheio, tampouco teria coragem de dizer que detesto chocolate e amêndoas, ainda mais cobertos de confeitos coloridos.

Tomei, então, uma decisão radical. Era isso que eles esperavam de mim, que eu fosse grato e me deleitasse com o amor que me era ofertado até ser consumido por ele? Então, que seja. Entreguei-me. Bebi o restante do espumante da taça em minha frente em um único gole. Respirei fundo, fechei os olhos e concentrei-me na garfada do bolo, a qual levei à boca vagarosamente. Minhas papilas foram invadidas pelo doce enjoativo dos confeitos açucarados. Mastiguei a crocância das amêndoas. Engoli. Em volta todos observavam sorridentes. Sorri para acompanhar e assenti, olhando cada um dos presentes diretamente nos olhos. Ainda ouvi as risadas, os aplausos e os gritos de todos ficando cada vez mais distantes. Minha visão ficou turva, tive tonturas, sudorese, alteração da pressão arterial e perdi a tonicidade muscular dos braços e pernas. O resto foi contado a mim nos dias subsequentes pelas testemunhas dos fatos: fui carregado nos braços, cianótico e inconsciente, para o hospital da cidade. Fui medicado e muitas horas depois recobrei a consciência. Estava ainda bastante atabalhoado, mas tinha uma certeza: a de pelo menos ter conseguido sair da minha própria fiesta de cumpleaños na hora que decidi. Finalmente tive um bon anniversaire.




[*] Classificado pela história da arte como pós –impressionista, Nils Dardel é um artista sueco do começo do século XX. De família aristocrática e biografia aventureira, ele passou por, Cuba, Peru, México, Guatemala, Norte da África, Japão e Paris, antes de morrer em Nova York, em 1943. O deslocamento geográfico é semelhante ao estilístico, Dardel adotou o Cubismo, o Fauvismo, a abstração e volta e meia aportava no realismo tradicional. É fato que em algumas obras ele antecipou o Surrealismo. Era em vários sentidos um dândi, conhecido pela elegância pessoal, pelas opiniões afiadas e excêntricas e pelo gosto por morbidez e decadência. A obra mais conhecida que ele deixou se chama justamente A morte de um dândi (de 1918, acima) até recentemente o quadro sueco vendido pelo maior valor no mercado da arte global.