sábado, 28 de abril de 2012

ESPERANDO NA JANELA


“The Dream of Lisa”. (Tania Baeva)


Para ler ao som de Koko Taylor, 'Voodoo Woman'


“Estou cansado de desamor”. Esta foi a ultima frase que ele disse antes de partir, talvez para sempre, nesta manhã fria e ensolarada. Mas não teve a dignidade de falar isso olhando nos meus olhos. Disse num bilhete torpe deixado sobre o criado mudo, ao lado dos meus comprimidos para dormir e da xícara de chá de ervas, sob a cópia da chave de casa que eu havia dado a ele. Eu não vi ele partir. Estava num sono pesadíssimo. Além disso, normalmente acordo tarde. Especialmente quando a noite anterior foi insone. E eu tinha me debatido a noite inteira, uns suadores estranhos, uns pesadelos com pessoas caindo, caminhos sombrios e desconhecidos que eu tinha que atravessar, precipícios gigantescos e intransponíveis, águas agitadas e caudalosas. Acordei várias vezes. Olhava o relógio, que parecia não se mover, tomava mais um comprimido, fumava um cigarro, verificava se todas as portas e janelas estavam fechadas, se o gás estava desligado, de as torneiras não pingavam. Voltava para a cama e tentava dormir novamente. E os sonhos recomeçavam de onde tinham parado.

Não entendi direito o que ele quis dizer com essa mensagem. Não sei que desamor é esse do qual ele cansou, tampouco que amor é esse que ele reivindica nas entrelinhas dessa mensagem de cansaço pela falta de amor. Eu sempre o amei profundamente e sempre acreditei que amor deve libertar. E foi o que fiz. Sempre deixei ele livre para ir e voltar, entrar e sair da minha casa e da minha vida a hora que quisesse e da forma que melhor aprouvesse. Ele tinha a cópia de todas as chaves e eu somente pedia para que ele avisasse previamente aonde iria, com quem e que hora voltaria. Admito que vez ou outra eu o seguia, revisava os bolsos das camisas, das calças e dos casacos quando ele chegava, olhava as ligações e mensagens no celular, esperava ele dormir profundamente e procurava sinais suspeitos em seu hálito, no pescoço, nas virilhas. Afinal, vivíamos juntos, tínhamos intimidade e um trato de cumplicidade. E agora isso. Agora ele me fala em estar cansado de desamor. Nunca esperei que ele fosse capaz de ser grato a mim por tudo que fiz, mas esperava um pouco de lealdade e reconhecimento.

Nos primeiros momentos fiquei sem rumo, andei pela casa toda, procurando indícios que me levassem a acreditar que ele voltaria. Olhei todos os armários de roupas, as estantes de livros e discos, os chinelos sob a cama, a escova de dentes no banheiro. Tudo havia sumido. Maus presságios. Então tentei recobrar a calma. Parei em frente ao espelho do banheiro, depois de ter revirado o cesto de roupas sujas procurando alguma cueca esquecida (e não havia nada). Olhei detidamente meu rosto no espelho, detalhe por detalhe, querendo ver se descobria algo que pudesse me dar uma pista desse - na minha opinião - súbito desaparecimento.

Fisicamente não sou mais como antigamente, isso é fato. Mas ainda tenho algum vigor, alguma vivacidade. Meu rosto está envelhecido e ressecado, tenho umas manchas estranhas nas maçãs, uns vincos fundos na testa e entre os olhos, meus cabelos estão opacos e grisalhos, mas isso eu poderia resolver se fosse o que o incomodava. Ergo o queixo e estico ao máximo a pele do pescoço e sinto as marcas do tempo que jamais serão apagadas. Não tenho vaidades, mas sei usar de todos os artifícios disponíveis quando necessário. Passei suavemente as mãos nas têmporas, jogando os cabelos para trás, e tentei ver meus olhos. Não consigo ver meus olhos no espelho. Tampouco consigo ver minha boca. Vejo apenas manchas negras. Talvez precise começar a usar óculos. Senti a aspereza das minhas mãos contra meu rosto sem cor e congelei numa cena que lembraria a obra “O Grito”, de Edvard Munch. Acho que é esse desespero que sinto agora: Clichê e maçante e ultrapassado. Pela ausência dele e pela velhice inefável, pela sequência inevitável dos dias, pelos meus erros do passado. E especialmente porque habito a prisão que criei. E nem ele nem eu sabemos onde estão as chaves que me libertarão dela.

Juntei o bilhete, enrolei-o num canudo, bati mais uma carreira, que aspirei sem vontade. Depois usei o papel do bilhete para acender mais um cigarro, como auxílio de uma brasa da lareira. Coloquei a chave novamente no molho com chaveiro onde a imagem de Jesus Cristo crucificado imerso em bola de acrílico âmbar, como se tivesse fossilizado pela seiva de uma árvore jurássica, reluz contra o sol e tilinta como um cincerro quando ando pelas ruas.

Tratei de deixar as linhas dos telefones desocupadas, a caixa de e-mails vazia, verifiquei mais uma vez a caixa de correspondências. Perguntei senhor ucraniano de noventa e cinco anos - que tosse e ronca as noites inteiras há quinze anos na casa ao lado, importunando meu descanso - se havia recebido alguma encomenda, alguma caixa ou carta sem que eu visse. Ele me disse, irônico e profético, que não viu nada chegar, mas que logo cedo, havia visto “Ele” sair com uma pesada bagagem e que pelo volume pelos passos determinados era para sempre.  

Voltei, fechei a porta com duas voltas na chave, deixando Jesus-cincerro tilintando na fechadura, coloquei uma música suave, acendi um incenso, sentei em posição de meditação sobre um tapete indonésio e canalizei minhas energias para ele. Elevei meus pensamentos, de olhos semicerrados, conectei-me às energias cósmicas para iluminar seus caminhos, para que sua mente fosse atingida por essa chama de luz. Tentei alinhar meus chakras e visualizar a chama violeta de amor que nos une, entoei todos os mantras de purificação e proteção que conheço. Porém, minha vontade maior era de quebrar toda a casa, queimar tudo o que possuísse qualquer vestígio que me reportasse vagamente a ele, apagar os pelos do ralo do banheiro, queimar na lareira as toalhas com o cheiro amadeirado da sua pele, junto com todos os meus livros que ele leu e que guardavam ainda o cheiro das mãos dele, como se tivesse acabado de larga-los. Queria jogar álcool na cama e lascar um fósforo, dar as costas e deixar todo o passado ser consumido pelas chamas, afinal meu coração já havia sido consumido pelo fogo daquele amor estéril e inútil. E eu caminharia calmamente pela calçada de pedriscos, arrastando minha sandália de tiras, sentindo apenas o calor das labaredas nas costas, cada vez mais fracas, à medida que me afastasse da casa.

Mas não fiz isso. Respirei profundamente incontáveis vezes, para que a energia do planeta neutralizasse meus venenos interiores. Não funcionou. Peguei uma garrafa de vinho tinto, enchi uma taça até a borda, coloquei uma Koko Taylor corosiva, dilacerada em “Voodoo Woman”, queimei mais uma erva (nesta semana recebi uma boa!), dancei pela sala de pés descalços e rodei meu vestido amarelo estampado com hibiscos vermelhos como uma cigana beatnik, cantando “And i know the reason why, / They call me the voodoo woman”, pulando e rolando pelo chão do meu mundo particular.

Depois, cansada dessa dança vital em frente ao fogo (tentativa Wika de exorcizá-lo), tentei me recompor. Arrumei meus longos cabelos com as pontas dos dedos, sequei o suor do rosto com as palmas das mãos e limpei-as no vestido, peguei a cesta de vime ao lado da bergère de veludo carmim, sentei-me confortavelmente, voltada para a janela de dava para a rua, coloquei a cesta sobre o colo, retirei dela a cambraia alvíssima, delicadamente colocada entre os dois arcos de madeira, peguei agulhas e linhas e pus-me a concluir o trabalho que começara há tempos. Ponto a ponto, cantarolava “o mais importante do bordado é o avesso, é o avesso”, imitando a voz potente de Bethânia e jogando meus longos cabelos cacheados no rosto como ela faria no palco.

Ele nunca quis ver o avesso do meu bordado, nunca saberá com que cuidado eu construo, ponto a ponto, as iniciais do seu nome nesse pedaço imaculado de pano branco. Da mesma forma nunca quis saber dos meus sentimentos profundos e verdadeiros por ele. Depois de bordar seu nome com esmero, costurarei firmemente a cambraia no pequeno corpo do boneco de pano, feito com retalhos de uma camisa que ele adorava, onde esperarei dezenas de agulhas, hoje mesmo, logo que anoitecer. Enquanto isso, espreito através da janela, cautelosa e pacienciosa, sentada em minha poltrona. Mantenho a coluna ereta, a mente quieta, o coração tranquilo e as pernas cruzadas, meio Dietrich. E fumando espero aquele a quem mais quero. Quem sabe ele resolva voltar antes do sol se por.



sábado, 21 de abril de 2012

INDISPONÍVEL E INTRANSPONÍVEL


Robert Longo. From the Men in the Cities series. 1981--(montagem)


[Morte] Quer garantias?
[A. Block ] Chame como quiser. É tão inconcebível tentar compreender Deus? Por que ele se esconde em promessas e milagres que não vemos? Como podemos ter fé se não temos fé em nós mesmos? O que acontecerá com aqueles que não querem ter fé ou não tem? Por que não posso tirá-lo de dentro de mim? Por que ele vive dentro de mim de forma tão humilhante, apesar de amaldiçoá-lo e tentar tirá-lo do meu coração? Por que, apesar de Ele ser uma falsa realidade, eu não consigo ficar livre? Você me ouviu?
[Morte] Sim, ouvi.
[A. Block ] Quero que Deus estenda as mãos para mim, que me mostre seu rosto, que fale comigo.
[Morte] Mas Ele fica em silêncio.
[A. Block ] Eu O chamo no escuro, mas parece que ninguém me ouve.
[Morte] Talvez não haja ninguém.

(Trecho do Filme O Sétimo Selo, Det Sjunde Inseglet,  1957, Ingmar Bergman)


Poderia ser a cena do filme de Bergman onde o cavaleiro joga xadrez com a Morte: “Você joga com as pretas”, disse Antonius Block para a Morte. “Muito apropriado, não acha?”, ela responde.  Sentados frente a frente, duelaram suas vaidades, asperezas, incertezas e solidões. Estudaram meticulosamente cada gesto, cada palavra. Olhares vazios, copos cheios. Sobre a mesinha redonda de madeira escura e pés de metal escovado da cafeteria, estavam dispostas ao centro duas xícaras de porcelana brancas com café até a metade, duas taças de água já sem gás, uma tigela de biscoitos amanteigados intocados. De um lado, os óculos de grau de um deles sobre o livro O Silêncio dos Amantes, de Lya Luft. Do lado oposto, e o telefone celular do outro, sempre em modo silencioso e virado para baixo. Polidez? Reserva? Privacidade? Olharam simultaneamente para os pertences alheios, entre a curiosidade e o desdém, pensando que eram muito apropriados aqueles objetos dispostos sobre a mesa daquela forma e naquele momento. Quatro mãos bonitas, muito brancas, pousadas cruzadas sobre o tampo, contrastavam com o escuro da madeira e emolduravam a cena. Assim como os olhos que não se cruzavam, as mãos jamais se tocaram. No máximo, vez ou outra, dançavam no ar, nervosas, entediadas ou explicativas, nunca divertidas ou amorosas como antes. “Esta é a minha mão. Posso mexê-la. O sangue pulsa nela. O sol está alto no céu e eu, e eu, Antonius Block, jogo xadrez com a morte”.  Tamborilavam os dedos na mesa para que pelo menos houvesse algum barulho que pudesse desfazer aquele deserto de incertezas e silêncios inférteis.  Às vezes um deles apoiava o queixo na mão aberta enquanto ouvia o outro dizer alguma coisa. Essa poderia se uma atitude que demonstrava interesse pelo outro. Ou poderia ser apenas cansaço de tudo. Nunca saberão. Havia um abismo entre eles. O abismo era Intransponível. E se não fosse, seria Indisponível.

Indisponível, chamemos assim porque era assim que o outro o denominava, era um homem bonito de meia idade. Altivo, sensato, sereno, olhos de um verde profundo, pele muito clara. Barba rala, sempre bem aparada, cabelos negros. Seu sorriso era franco, às vezes meio retraído, especialmente quando espremia os cantos da boca e desviava o olhar para o infinito. As covas das bochechas ficavam levemente salientes e combinadas com o brilho dos olhos cor de esmeralda, que também sorriam, desenhavam um ar de menino que cresceu de repente e ainda não se adaptou à vida de adulto. Era tímido. Às vezes se refugiava atrás de uma autoestima e segurança inabaláveis, talvez na tentativa de não ter sua personalidade em eterna construção colocada à prova. Seus pensamentos e atitudes eram firmes, mas ele era doce e conseguia ver beleza nas menores coisas da vida. E essa doçura deixava transparecer que por trás dessa casca de altivez e autossuficiência o mais importante para ele era o que o coração e a alma ditavam. Tinha a fala mansa. Possuía um jeito de quem já viveu tudo e encontrou o ponto de equilíbrio eterno e imutável. Meio espiritualizado, meio transcendente, meio Shiva, meio Nossa Senhora, meio Madre Tereza, meio Ghandi. Mas esse Sidarta que não a abandonou o castelo paterno de origem para atingir a iluminação não tinha se livrado das ilusões do Samsara. Pelo contrário, era cada vez mais vítima na teia do real. Em rompantes de lucidez (ou acidez?) dizia-se despertando de um sonho difícil para a realidade “tapa-na-cara”. Sempre tinha uma frase grandiloquente para ilustrar, acalmar, confortar ou contextualizar qualquer situação, o que lhe conferia, entre os seus, um ar sábio do tipo “pergunte-qualquer-coisa-e-responderei”.

Intransponível, que também será desta forma nomeado por ser assim que o outro o via, era o oposto complementar de Indisponível. Ambos tinham mais ou menos a mesma idade. Intransponível era ligeiramente mais jovem que o outro. Tinha o olhar oscilando entre a catatonia perdida em pensamentos neuróticos e o nervosismo de querer dizer tudo que sua mente frenética produzia. Era pálido, olheiras fundas, cabelos grisalhos desgrenhados, barba eternamente por fazer, unhas roídas, um ar cansado de quem lutou por anos, perdeu a batalha e voltou, incrédulo e desesperançado, arrastando a armadura e a espada e tentando enganar a Morte. Mas não era derrotista. Era sim amargo e cético, como se houvesse olhado no espelho naquela manhã e tivesse descoberto que é um velho sem futuro. E talvez fosse. Mas no fundo de seus negros e opacos olhos ainda havia sonhos. Mas a vida trancafiou esses sonhos numa carapaça cinzenta, numa pele opaca, num sorriso amarelo de amarguras, cigarros e café, num corpo nem magro, nem gordo, apenas disforme e desajeitado. Desajeitado como seu espírito, como sua alma. Incompreensível e inacessível como seu coração. Tinha apenas histórias para contar. Histórias verdadeiras e fantasiosas (a maioria), porque acreditava que a vida não precisava ser vivida – se dura –, mas devia ser inventada. Vivia cada dia como se fosse o último (pelo menos emocionalmente) e esfarrapado arrastava-se para o dia seguinte porque acreditava que era lá onde e quando seria um homem melhor. Desenhava histórias com finais temerosos. Era hábil com lápis e papel. Superstição de que talvez vivendo maus agouros no papel ficasse livre de vivê-los na vida real. Tinha os livros que leu, os discos que ouviu, os amores que perdeu, as lembranças que não conseguia esquecer, uns trocados no bolso do pesado casaco de alpaca azul marinho de marinheiro e uma vontade imensa de viver outra vida.

Tentaram conversar sobre amenidades. Não foi uma conversa difícil. Ambos tinham o riso frouxo quando estavam juntos, mesmo em situações em que a dor era excruciante e que estavam armados. Possuíam humor ácido e ferino, eram astutos, perspicazes e sempre tinham um comentário sobre tudo o que acontecia à sua volta ou dentro deles. No tempo que permaneceram frente a frente, nessa tarde qualquer de um dia qualquer, na cidade que não era de nenhum e ao mesmo tempo era de ambos, trocaram alguns olhares furtivos, indecisos, receosos. Olhavam detida e disfarçadamente o outro, sem serem flagrados, e perdiam-se em pensamentos silenciosos.  Intransponível sempre foi acusado de não dizer o que sentia. Indisponível de não sentir o que dizia. Eles sabiam, olhando no fundo dos olhos do outro, que se amavam profundamente. Um amor puramente fraterno, cristão, o amor mais nobre e digno que poderia existir. Mas a cada novo suspiro de insatisfação e a cada frase solta, cotidiana ou banal, dita com requintes de crueldade, as diferenças abissais que existiam se tornavam mais fortes.

Trocaram algumas singelezas e gentilezas. Trocaram presentes porque Intransponível adora cheiros confortantes antes de dormir e Indisponível faria uma grande viagem sozinho. Em alguns momentos a conversa era leve, quando ambos faziam piadas sobre coisas engraçadas da vida que quase tiveram em comum. Em outros era pesada, quando se deparavam com suas limitações e suas incapacidades pela vida em comum que nunca tiveram. Um comentou sobre o livro que estava lendo, que contava a história do amor entre uma mulher e um homem, ambos de meia idade. Esses dois seres se encontraram já na maturidade, vinham de vidas pontuadas por dores e perdas, cicatrizes profundas e resquícios que jamais seriam esquecidos. Porém, ambos tinham um impulso vital de sobreviver a essas marcas e colocar as lembranças – boas e ruins – de uma vida inteira num lugar especial e devido. Narrada em primeira pessoa pela mulher, a história é pautada por sentimentos intensos e conscientes, contextualizados através dos silêncios que somente os amantes entendem, aqueles momentos em que nada é necessário ser dito, onde calar é deixar que o outro entre em seu no universo particular, quando tudo é compreendido e compartilhado apenas com um olhar. Silêncio é cumplicidade também. Coincidentemente ou não, esse silêncio fértil que pontua e tece a trama amorosa era Intransponível.  O outro contava sobre um livro que havia lido, que falava sobre os meandros das relações amorosas, através de explicações pouco ortodoxas e um tanto metafísicas e sobre a necessidade de humor no amor, de condescendência, generosidade e paciência. Ele sempre gostou de manuais sobre amores-que-podem-dar-certo. Essa elucubração sobre uma existência que não era a sua e sobre uma relação que nunca tiveram era Indisponível. E ambos concordavam intimamente, era também Intransponível.

Exaustos do derradeiro embate de horas que pareceram semanas, os duelantes saíram da cafeteria. Precisavam caminhar. Precisavam respirar. Precisavam emergir. Era noite alta. Caminharam lado a lado sob o céu estrelado, em silêncio quase absoluto, somente quebrado por uma ou outra farpa trocada polidamente. Seria a noite perfeita para os amantes. Mas eles não sabiam sê-lo. Eram dois aristocratas ingleses do século XVIII, com seus sobretudos nas mãos e seus chapéus cobrindo as faces marcadas de desgostos, dois oficiais do Führer, de botas reluzentes e semblante austero, duas carmelitas silenciosas e castas indo para o claustro, dois prisioneiros condenados à pena de morte atravessando o corredor frio e sem fim rumo à execução. Um tentou aproximar-se, como sempre do jeito errado, soltando espinhos. Intransponível. O outro não estava mais lá. Indisponível. Haviam se transformado em lembranças esmaecidas de alguém que um dia foi o centro de uma vinda inteira.

Murmuraram, resmungaram, calaram. Corações apertados, nós nas gargantas, talvez tivessem os olhos marejados. Não era possível ver porque andavam por caminhos escuros e estavam em nenhum momento olharam um no rosto do outro. E mesmo que tivessem olhado, talvez não conseguissem ver nada além de um borrão. Seus olhares não se cruzaram na despedida. Despediram-se solenes, desejando sem vontade que a vida fosse doce que o futuro fosse uma nuvem macia onde pudessem pousar, que a vida não fosse mais tão madrasta e desse uma colher de chá, porque o peito já era um copo até aqui de mágoa. Intransponível, mais ácido que nunca, pensou em dizer ao outro sobre o quão cíclicas eram as situações entre eles, que se aproximavam, planejavam o futuro, desejavam, achavam que poderiam conquistar o mundo, mas que depois roubavam sua coragem, o céu ficava cinza, vinham as tempestades, o terreno onde cravavam suas estacas ficava infértil, surgiam os silêncios longos e desesperadores, o afastamento, deixavam de participar um da vida do outro, voltavam a ser desconhecidos. Então aparecia uma nova carta ou encomenda na caixa de correio, um telefonema, uma mensagem qualquer. E o ciclo reiniciava indefinidamente. Mas não disse nada. Abraçou um abraço oco e ainda pensou em dizer suas últimas palavras, apoteótico e dramático. Um gran finale para uma peça em um único ato. Ficou calado, olhar sintomaticamente distante.  E isso era Intransponível. Ao seu melhor estilo, o outro entendeu a mensagem nada subliminar – que ambos detestavam, embora usassem muito - e respondeu à provocação. Indisponível.

E o derradeiro encontro terminou assim:

Luc B. Arquivo pessoal