terça-feira, 26 de junho de 2012

PARA NÃO DIZER ADEUS


The Good Boy, by Edén Ochoa Iniesta


Para Mac, que queria ter alegria. Eis aqui o ápice.


‎"Acho que deve-se insistir na permanência de tudo aquilo que desafia Cronos, o deus-Tempo cruel, devorador dos próprios filhos."

(ABREU, Caio Fernando: “Caio 3D - O Essencial da Década de 1970”, p. 17)


Je ne suis pas fâché1, eu bradaria a quem pudesse interessar, soltando a fumaça do cigarro para o alto como uma furiosa locomotiva a vapor. Mas é mentira. Arrependo-me sim de muitas coisas. Principalmente quando tomo alguma decisão importante sem muita certeza, quase sempre logo após tomar alguma dose alcoólica. Tenho cada vez menos certezas sobre tudo. Uma das dúvidas que mais me corrói a alma é saber a hora de encerrar um ciclo, de parar, de dizer “basta”. Quando a gente sabe que o amor, o namoro, o casamento, a amizade íntima ou a transa fixa com ou sem compromisso chegou ao fim? Será que sabemos, a tempo de manter um resquício que seja de dignidade, que chegamos ao fim da linha? Será que, quando acontece, sabemos que é realmente o game over? Não tenho muitas convicções.  Aliás, não tenho convicção alguma. Talvez o momento da certeza só chegue com o tempo, com a experiência e depois de muitas surras. Ou nunca chegue. E se essas minhas íntimas - agora nem tanto - suspeitas forem reais, estou perdido.

Tendo a não dar o braço a torcer. Sou turrão, além de egomaníaco e vaidoso. Acho que posso dar um jeito em quase qualquer coisa, porque sou cheio de ginga e de malícia, e que tenho solução para tudo, de unha encravada (dos outros) a coração partido (o meu), sem recorrer a ocultismos.  Triste ingenuidade. Ou pior: sem reconhecer que sou soberbo, o que muitas vezes me custa, vago por aí, cego como Édipo, perdido em devaneios apaixonados ou desiludidos, condenado a não encontrar o caminho certo de volta a Tebas. Enfim, sou medíocre. Bebendo na fonte dos gregos, sou obrigado a admitir que sou enganado por meus sentidos. Povoam-me e constituem-me surtos incontroláveis de pessimismo e rompantes desvairados de otimismo, o que turva a visão e impede de ver a situação com distanciamento, sobriedade e certa frieza. Minhas emoções estão constantemente à flor da pele e meus pensamentos normalmente num fluxo contrário. E não, não sou transtornado, creio com fé.

Reconheço que relações afetivas são grandes potências de incertezas e insatisfações. Principalmente se os envolvidos já têm uma pré-disposição à neurastenia. Insatisfações, por si sós, não são necessariamente prejudiciais. É quando estamos insatisfeitos que tentamos ser melhores, analisamos o que nos deixa desgostosos e buscamos a satisfação. A velha fuga da dor associada à nossa tendência à atualização. Justamente por esses motivos que vejo que não reconheço a hora certa de partir da vida de alguém, quando não sou mais bem-vindo ou quando a outra pessoa não é mais bem-vinda em meu mundo. No fundo, sou um homem de algumas vírgulas, um ou outro ponto-e-vírgula e principalmente muitas reticências - o cubo hiperbólico e às vezes angustiante do ponto -, mas dificilmente de pontos finais.

O fato é que não sei abortar projetos facilmente. E você estranha o termo “projetos” que usei, correto? Justifico. Eu acredito que um relacionamento é um projeto. Quase sempre um projeto de vida. Não tão rígido, não tão fixo, nem eterno e indissolúvel, mas um projeto compartilhado, fluido, construído a quatro mãos, dois corações, duas cabeças e dois sexos, que podem ser iguais ou não. Depositamos o que temos de melhor no outro, apostamos todas as fichas, ou pelo menos as mais altas, na história esperando que ela cresça, fiquei bonita, nos dê prazer só de ver, como a mais premiável das orquídeas ou a filha que ganhou o concurso de Mini Miss na escola. Queremos que dê prazer ao parceiro ou à parceira, logicamente, caso contrário não há sentido. E queremos, lá no fundo e por vaidade, causar inveja nos demais. E quem diz que não espera, no mínimo, a admiração do respeitável público porque tem a relação que todos no mundo gostariam de ter, mente com vileza. Deixemos de tentar parecer monjas castas e puras! Um orgulhozinho por sermos admirados é sempre bom sentir. Com comedimento, obrigado.

Comedimento. Pensando agora nessa palavra tão redonda, fofa e felpuda, que parece que vai saltar da boca e sair quicando pelo chão, vejo que é um pouco isso que me falta. Eu não sou comedido. Acho que já admiti isso várias vezes, aqui mesmo neste espaço para devaneios e pensamentos fragmentados. Repito-me. Sou excessivo. E se não disse diretamente, qualquer leitura mais atenta revela minha característica (prova cabal de que realmente não sou comedido). Sou hiperbólico. Pronto, falei.

O que angustia em viver a dois - e sozinho também - é que a vida não é como um simulador 6D de voo. Se movimentarmos errado o manche e a aeronave desestabilizar e cair no Triângulo das Bermudas no trajeto para Paris, apertamos o botão de pausa e suspendemos a simulação. Na vida real, ficaremos eternamente perdidos no meio dos destroços e sem qualquer pista para localização. A caixa preta se perderá para sempre e seremos apenas estatísticas e uma notinha no noticiário das 20h. A vida, madrasta que é, não oferece simuladores de relacionamentos afetivos para treinarmos antes de vivermos para valer. Ela nos obriga a colocarmos a cara na rua, na maioria das vezes para ser esmurrada à moda Rocky Balboa. Parece que é necessário “ser”, o que acontece somente no duelo final e depois de muito treinamento, para somente então conseguirmos “ter” o cinturão desejado. Isso me leva a pensar que talvez existam coisas que não são para todo mundo. Principalmente do jeito que queremos. Isso não significa que quem não lutou e não apanhou na cara não mereça satisfação como ser amante e amado.  

E se o momento da certeza nunca chegar, o que fazer? Como viver? Para onde correr? Não quero ser fatalista, embora essa seja minha natureza, porém não vejo para onde correr. A água está subindo até os joelhos no subsolo do navio e as escotilhas estão travadas. Enchemos os pulmões de ar, soltamos o corpo e tentamos boiar. Ah, você não sabe nadar? Sorte que sempre existem cursos de férias que ensinam algumas técnicas em poucas lições. Não nos tornamos nadadores olímpicos, contudo não morremos afogados. Relaxemos na bubuia.

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1  Eu não me arrependo

sábado, 16 de junho de 2012

ACORDEI COM SAUDADE DO CHEIRO DO SEU PESCOÇO

Imagem cedida por Maria Thereza Heim (Arquivo pessoal - "Galeria M")


J'ai connu pour un temps assez court
quelque chose qui ressemble à de l'amour
une voix douce comme le miel
qui me suit jusque dans mon sommeil
une promesse et un battement de cil
et on se croirait presque indivisible
c'est peut-être parce que c'est éphémère
qu'on s'arrache ces morceaux de rêve

j'y pense comme je respire
peut-être même encore pire
même mille fois maudite
j'y pense comme je respire

et surtout qu'il est bon de sentir
qu'on est fait pour ce monde intangible
pour un peu on se dirait presque
qu'on a la belle vie quand même
(La Belle Vie – Holden) *


O chiado do vinil ecoou seco pelo quarto. A última faixa do disco havia sido executada com o único mérito de embalar meu parco sono, inquieto e superficial, enquanto estive encolhido na pequena poltrona de tecido puído e já sem cor, enrolado na nossa manta de retalhos coloridos. Não fiz ideia das músicas que tocaram. E não importava. Lembro que escolhi um dos discos que você gostava, no qual tinha uma faixa que não me saía da cabeça. Que música era mesmo? Da janela entrava um solzinho tímido de outono. A garrafa de vinho jazia caída num canto do quarto, ao lado da taça de malbec, servida até a metade. Juntas criavam um caleidoscópio, quando os raios do sol incidiam sobre elas, e o reflexo colorido rebatia direto nos meus olhos.

São 15h30min de um dia comum que escolhi não viver. Acordei com saudade do cheiro do seu pescoço. Pensei em ligar, mas sei que você não poderá mais atender ao telefone. Chego a ouvir sua voz profunda sussurrando carinhos através do meu travesseiro. Consigo sentir em meus lábios a maciez da sua pele e o característico calor emanado da região próxima à sua orelha.

Desta vez não relutei. Deixei que as lembranças dançassem sobre mim em espiral. Lembro-me quando me aconchegava em você nos dias frios para nos aquecermos. Eu tinha as mãos sempre frias e você os pés constantemente gelados. Ou quando era calor e nossos corpos úmidos de suor formavam uma única massa pegajosa de carnes e pêlos. Encostava meu corpo todo no seu e farejava seus recônditos, buscando conquistar e manter sua essência em meus poros. Sentia cócegas na ponta do nariz quando o encostava nos fios mais finos do seu cabelo, perto da nuca. Eu lhe desejava tanto nesses momentos que se pudesse entrava em você e não saia nunca mais. Eu apertava você contra meu peito e tentava reter ao máximo na minha memória esse cheiro que você exalava. Não era um cheiro específico de nada. Talvez um pouco adocicado, floral. Cheiro de pele, de jasmim, de lar, de almíscar, de lavanda, de desejo, tanto fazia, era o seu cheiro. E eu ficava lhe observando, enquanto você cochilava após o jantar, sentado em sua poltrona Charles Eames favorita, em frente à lareira, envolto até a cabeça em nossa manta de retalhos, parecendo uma obra de Gustav Klimt. Enquanto eu preparava uma xícara fumegante de chá de ervas ou um café bem forte, você colocava mais lenha no fogo. Você sempre teve um fascínio por fogo, lembro bem. E luz fraca e irregular das chamas iluminava ainda mais seu rosto em tons de dourado.

Nos primeiros tempos foi mais difícil viver sem você, sabe. Tudo me doía. A casa vazia, a cidade a cada dia mais aterradora, as pessoas conhecidas – e principalmente as desconhecidas -, as lembranças, a falta da presença, a falta da ausência, a falta até mesmo de ter do que lembrar ou esquecer. Porque você foi embora e me roubou o futuro, me deixou um baú de memórias vazio que eu tive que preencher sozinho. Agora não dói tanto. Consigo falar em você sem aquela vontade desesperadora de chorar e sem ficar marejado. Não sou mais obsessivo com tudo que é relacionado a você. Deixei de sentir saudade de coisas que não vivemos. Deixei de mitificar você.


Durante muito tempo tratei sua memória como se você tivesse saído da minha vida para entrar na história. Na verdade foi isso que aconteceu. Mas você nunca foi um mito, nunca foi nada além do que sempre foi, com suas falhas (assim como eu tenho muitas), suas posturas às vezes covardes, sua doçura quase infantil, sua nobreza de valores e sentimentos, sua vileza frente a algumas situações cotidianas, seus dramas existenciais, suas superações diárias. Sempre admirei sua dignidade, principalmente frente a todas as adversidades.

Você foi embora por exclusiva responsabilidade sua. Porque às vezes você era soberbo. Talvez tenha ido sem vontade de ir, mas você fez uma escolha sem volta. E eu tentei transformar as lembranças que tenho de você para sentir menos dor, para conseguir suportar o fato de estar vivo sem você. Acho que hoje estou mais tranquilo. Estou mais desiludido, confesso. Parece contraditório estar desiludido e ter esperanças, não é? Mas é o que sinto. E posso explicar: eu tenho esperanças que a vida pode ser melhor, mas não tenho aquelas ilusões românticas de estar caminhando pela rua ou na fila do supermercado e esbarrar em alguém igual a você (ou alguém melhor que você?), que seja capaz de preencher um vazio existencial que você nunca preencheu. E eu reconheceria essa pessoa como sendo a mais importante e saberia, olhando em seus olhos, que seria para sempre. Não, não tenho mais essas ilusões. Penso que poderei conviver com meu passado doloroso, com meu presente sem ilusões e com meu futuro cheio de esperanças.

Sinto uma leve dor no peito. Dor física. Talvez um pouco de medo, cansaço, angústia, solidão, mas também esperanças contidas e um carinho reprimido imenso. Falo sempre sobre as mesmas coisas. Eu já disse isso em outros momentos, não disse? Acho que hoje essas memórias vêm mais fortes, como a lembrança do cheiro do seu pescoço, porque hoje completa um ano que você se foi. E por isso me repito e digo de novo coisas que tenho pensado e dito ao longo desses meses todos. Exatamente nesta hora, 15h30min, há exatos doze meses, eu soube que você não voltaria nunca mais.

E tenho mantido uns rituais estranhos e compreensíveis durante todos os meses que se seguiram à sua partida. “Que é pra ver se você volta, que é pra ver se você vem”, como na música. Vez ou outra (como agora) visto o casaco verde, estilo militar, com detalhes nos ombros que lembram insígnias, que você esqueceu aqui no último dia em que nos vimos. Ele não tem mais seu cheiro, porque já o lavei propositalmente num daqueles momentos de fúria. Esfreguei tanto sabão e sal grosso neste casaco que minhas mãos ficaram ardendo. Depois o coloquei no sol para absorver energias novas, borrifei doses inebriantes do seu perfume predileto e vesti-o. Assim me senti abraçado por você.

Não, não chamo você para perto de mim. Você nunca saiu daqui. Porque na realidade aqui em mim você ficou. E o cheiro do seu pescoço está marcado em cada esquina da minha pele. Arrumo a casa, queimo incensos, abro todas as janelas para renovar o ar, compro flores para você e enfeito a casa, como se fosse recebê-lo a qualquer momento, do mesmo modo que você fazia quando alguém lhe visitava, rezo para que você tenha paz e encontre luz em seus caminhos e acendo mais uma vela em frente à sua fotografia. Assim, ambos encontraremos a paz.



[*] A Bela Vida  
Eu conheci, por um tempo tão curto, / Alguma coisa que parece com o amor. / Uma voz, doce como o mel, / Que me segue até o meu sono. / Uma promessa e um piscar de olhos / E nos acreditamos quase indivisíveis. / É, talvez, porque é efêmero / Que nos prendamos a esses pedaços de sonho. / Penso nisso como respiro / Talvez até mesmo pior. / Mesmo mil vezes maldita / Penso nisso como respiro. / E, sobretudo, é bom sentir / Que somos feitos para esse mundo intangível. / Por um pouco, quase nos diríamos / Que temos a bela vida mesmo assim.




terça-feira, 12 de junho de 2012

DO SILÊNCIO


Photoallegory of Sarolta Bán

“Assim
Pouco a pouco
Escolhi
O presente silêncio
Silêncio
Tão pouco querido
Oh, derradeiro momento
Silêncio
Momento
Silêncio"

(Silêncio - Madredeus)

Existe um tempo de calar. Às vezes é preciso criar um espaço (objetivo?) para observar com distanciamento a tempestade, a fim de que se possa ter sobre ela uma dimensão mais ampla e para perceber que talvez ela não seja assim tão grande. E caso seja imensa e impossível de ser atravessada sem marcas, que ao menos seja com o menor número de arranhões possível. É preciso dar um passo atrás para conseguir o impulso necessário para pular o precipício. Para essa tomada de fôlego, acredito profundamente no poder do silêncio reflexivo. Por isso sumo às vezes.
Não sei se me recolher em meu bunker é uma atitude que denota prudência. Às vezes, tenho a impressão que é por absoluta incapacidade de seguir adiante. É catatonia, imobilização, paralisia. “Na dúvida, não ultrapasse”, alerta o luminoso neon em minha mente, quando estou parado sobre um cruzamento escuro da linha de trens e não ouço a composição que se aproxima. Por outro lado, temo que avançando demais nos escuros de mim possa desencadear a fuga de todos os fantasmas trancados no fundo dos enormes baús que guardo, fazendo com que voltem para assombrar meus sonhos. Eles são muitos cá dentro do meu peito - tanto sonhos quanto fantasmas. E alguns deles – dos sonhos e dos fantasmas - são violentos e destrutivos. Normalmente vivem – os fantasmas, não os sonhos - sob controle. Volta e meia um ou outro – dos sonhos, não dos fantasmas - foge e tenta me roubar a paz. Quase sempre consigo domá-los e fazer com que retornem para seus lugares. Mas temo que nessas jornadas de introspecção, quando ando por lugares que nem eu mesmo conheço, possa ficar desatento ou vulnerável e ser tomado de assalto por esses pensamentos obsessivos.  
Calei. Não quero oferecer uma explicação ou uma justificativa. É apenas um desabafo, talvez sem propósito específico. Paralisei, exauri. Não soube como olhar nos olhos dos poucos (e cada vez em menor número) que me são caros e dizer o que sentia. Ou mais: não só não sabia o que sentia como não sabia o que sentir. Não sabia nem ao menos se sentia algo. Claro que sentia, percebi depois de passado o tempo e o torpor. Sempre sentimos algo, seja bom, neutro ou ruim.
A dúvida essencial de não saber-me e o temor de talvez não ser nada me alertaram para algo que estava por vir. A imagem da lagarta que entra no casulo para tornar-se borboleta é apropriada nessa hora. Porém, entrei e saí do casulo uma inefável lagarta. Alguns não nasceram para ser borboleta. Já ouvi de bocas otimistas que seria necessário eu fechar a concha para formar uma pérola. Não consegui, porém, usar minhas mágoas para transformar em pérolas os corpos estranhos que entraram em minha concha. Queria transformar, alquimicamente, cinzas em ouro. Queria sim poder fazer das minhas enzimas que produzo no interior de minha concha um pingente para ornar o pescoço de quem se abriga em meu regaço. Não foi possível. Queria juntar todas as marcas acumuladas pelo caminho e transformá-las em retalhos multi coloridos, com eles costurar uma colcha, pedaço a pedaço, e jogá-la sobre o corpo de quem gostaria que ela aconchegasse e aquecesse nas madrugadas frias. Tampouco isso foi possível. Por isso parei. Por isso voltei. Por isso dei três passos atrás.
Eu tinha um emblemático hematoma na unha do polegar direito – e isto não é uma alegoria -, adquirido no dia que foi o marco do fim de um grande, profícuo e doloroso ciclo. Essa marca, de tom entre o negro e o violáceo, localizada junto à raiz da unha, acompanhou-me por muitos meses. Ao longo do tempo foi transformando-se e movendo-se, passando do negro intenso para o roxo acinzentado, até tornar-se uma mancha levemente esverdeada na ponta do dedo que eu observo diariamente, como faço agora. Cortei a unha cuidadosa e pacientemente, lasca a lasca. Hoje foi cortado o último resquício daquele estigma negro, fazendo-o desaparecer definitivamente. Esse foi o sinal que me fez pensar em tudo o que estava relacionado àquela marca e a todas as outras que existem em mim. Algumas não são visíveis, a maioria é possível de ser identificada em poucos instantes de observação detida sobre mim. Algumas são permanentes, outras transitórias. Algumas guardo com carinho e orgulho, outras tento esconder. Com algumas consigo conviver, outras prefiro nem ver. Mas todas elas fazem parte do que sou.
O jato de água da torneira leva consigo, pragmática, os resquícios do passado que estavam sob as unhas que acabei de cortar. Vejo cada pedaço ir ralo abaixo, rumo ao esquecimento eterno, que é como acredito que as lembranças do passado devem ser guardadas. Retiro a mecha de cabelos grisalhos da face para poder olhar novamente e com mais nitidez meus olhos no espelho embaçado do pequeno banheiro de azulejos úmidos. Mas por enquanto já basta tentar ver o que não tem certeza nem nunca terá, o que não tem conserto nem nunca terá, o que não tem juízo nem nunca terá, o que não tem tamanho. É chegada a hora de tentar ao menos brincar de viver, mesmo que calado.