sábado, 28 de julho de 2012

(DEIXA) PARA QUANDO JULHO CHEGAR


René Magritte - The Lovers. 1928. Oil on canvas. 54.2 x 73 cm. Private collection

Para Aline, pelos elos lírico-afetivo-existenciais invisíveis que tecem nossa trama amorosa para sempre.

"E você baby vai, vem, vai
E você baby vem, vai, vem
Belezas são coisas acesas por dentro
Tristezas são belezas apagadas pelo sofrimento"
(Lágrimas Negras  - Jorge  Mautner)


O céu limpo estava coalhado de estrelas. Noite quente, mesmo sendo o primeiro dia de pleno inverno de julho. Melhor para ela, que adorava verão, embora detestasse sol, praia, pouca roupa, aquela alegria carnavalesca e a luz ofuscante dos dias escaldantes ferindo sua pele. Ele, por outro lado, adorava inverno e todos os aconchegos e recolhimentos relacionados à estação, mesmo que reclamasse dos pés gelados nas noites intermináveis e solitárias dos solstícios eternos. Não discutiam sobre essas divergências, contudo. No calor buscavam refresco, no frio mantinham-se aquecidos. Programa cotidiano em noites de inverno quentes como aquela: cinema ou teatro, algum jantar não planejado para fugirem da eterna dieta e o circuito dos botecos de sempre, onde já eram conhecidos pelo nome. Mau sinal ser conhecido na portaria do bar pelo nome completo. E eles eram.

Ambos tinham o riso frouxo, na mesma medida que as lágrimas, dependendo do assunto, do dia e das unidades alcoólicas. Revezavam-se entre riso e choro, o que tornava a relação singular e, pasme, saudável. Tinham uma ou outra mágoa contida, engolida rascante goela abaixo, porque sabiam que determinadas coisas não deveriam ser ditas. Cumplicidade tácita. Alguns assuntos, pessoas e lugares foram feitos para serem esquecidos. E ser esquecido não era ruim, era apenas uma forma de colocar cada coisa em seu devido lugar, na tentativa de dar alguma ordem ao caos interior. E quando ambos lamentavam e choravam suas mazelas, sempre conseguiam rir juntos das próprias desgraças. Também das desgraças do outro, claro, prova de que existem coisas que somente a intimidade pode proporcionar.

Esperavam desde março que julho chegasse. Sem muitos motivos específicos, apenas umas superstições aqui, uns insights lá, feelings acolá, teorias e suposições traçadas milimetricamente a quatro mãos num guardanapo de papel ao som dos Beatles e com as gargantas molhadas por generosas doses de qualquer coisa, uma ou outra previsão de algum tarólogo, cartomante, pai de santo ou site de relacionamentos que fornecesse mapas astrais em seis parcelas fixas no cartão de crédito. Esperaram. E esperaram. Previsões nunca deviam falhar e a espera pela realização delas é mais angustiante que esperar o cumprimento de uma promessa feita por um quase/ex/futuro amante, daquelas bem piegas, com direito a Jane Birkin e Serge Gainsbourg gemendo “Je t’aime moi non plus” ao fundo, com voz rouca e olhos marejados, o que pessoas como eles certamente adoravam, mesmo que soubessem que não iria dar em nada porque já sabiam de cor o roteiro da trama folhetinesca.

Astrologia e ocultismos diversos eram coisas sérias. A cigana havia lido seus destinos. E aquela era a noite da profecia. Naquela fase da lua, naquele dia de julho, naquele horário cabalístico, com aquela companhia, em uma mesa num canto de algum bar. Uma previsão tão específica não poderia estar errada. Obviamente eles estariam prontos e abertos ao destino traçado nas linhas das suas mãos. E Bingo: a porta se abriria e seria possível dizer que sim, que a Pitonisa de Tebas estava certa porque quem entrava era o esperado, aquele que possuía no corpo a marca do escolhido, e todos poderiam identificá-lo. Mas não, isso nunca aconteceu. Devia haver algum erro no mapa astral, alguma imprecisão de cálculo, alguma falha no dia e hora do nascimento, uma nuvem de poeira cósmica e zodiacal - se é que existe isso - algum mau orgasmo que gerou uma nuvem de energia negríssima sobre as cabeças deles, algum “trabalho feito”. Ou então interpretaram mal as metáforas ditas pela vidente gitana com voz castelhana. Para eles, que acreditavam que algo superior às forças e às faculdades humanas sempre agia em suas vidas de forma determinante, seus corpos funcionavam como para-raios de energias negativas e sempre poderia haver algo sobrenatural agindo para impedi-los de serem felizes. Sempre! Desamarra, pai!

Previsões astrológicas à parte, estatisticamente era necessário que eles estivessem em determinados lugares ou expostos a determinadas situações. Porque leram em alguma revista de alguma sala de espera de algum consultório de dentista que em lugares como aqueles que frequentavam tinham dez vezes mais chances de conhecer alguém para um relacionamento sério em potencial. Não eram eles que diziam, eram as estatísticas. Era comprovado. E iam sempre aos mesmos lugares e viam as mesmas pessoas. Não que quisessem desesperadamente conhecer alguém. E não que não quisessem. Não que fossem solitários. Não que não fossem. Mas não, não era bem esse o ponto. Tinham um ao outro e viviam bem sozinhos. Talvez não tão bem, mas não chegava a ser um tormento aparente. Por fora eram bem resolvidos e independentes. Ele fazia o gênero cool-analisado-equilibrado-vegano-transcendental, ela a linha femme-fatale-super-moderna-senhora-soberana-de-sua-libido. Porém, o que queriam, bem lá no fundo, não era apenas comprovar as estatísticas, colocar à prova a lei das probabilidades e ver se o destino que as ciganas haviam lido em suas mãos estava certo, mas comprovar que todas essas coisas ditas e sonhadas, todas essas crenças no invisível e no intangível, poderiam se tornar realidade. Porque eles tinham desejos secretos de ter uma vidinha comum, das oito às dezoito, com cadeiras preguiçosas na varanda, jardim, cachorro, cerca branca, churrasco no domingo e férias em família na praia. O encontro podia acontecer em qualquer lugar, numa fila de supermercado (um sonho antigo e antiquado dele) ou numa manhã qualquer de sábado, quando a campainha inesperadamente tocasse e fosse o rapaz da TV a cabo que por engano chegou ao seu endereço (sonho fetichista dela). Não importava onde, não importava quando, importava que o universo devolvesse tudo aquilo que eles entregavam-lhe entre goles de vodca e fumaça de cigarro.

Sentados no meio fio da calçada, vendo o céu estrelado e uma lua tão imensa, clara e próxima que parecia estar prestes a se chocar contra eles, contemplaram o julho que não passaria despercebido, mesmo que não fosse o marco de qualquer mudança.

- Mas por que diabos tu não quer que ele de volta? - perguntou ele entre um gole e outro de cerveja já meio morna.

- Porque cansei - disse ela seca, soltando a fumaça do cigarro e batendo a cinza com desdém.

- Cansaço de que? – ele continuou, meio atônito.

- De mim, dos outros, de tudo - completou, amarga.

- Só que as pessoas nos surpreendem - continuou ele com olhos baixos, sem muita convicção.

- É, mas gente nunca sabe o que elas são capazes de dizer quando querem levar-nos para a cama. Muitas vezes esses discursos amorosos funcionam, apesar de sabermos, lá no fundo, que tudo é uma grande e deliciosa falácia. Seria tão mais simples se fosse tudo nítido, claro. Assim: Eu estou aqui e do outro lado da rua passaria “Ele”, lindo, luminoso, cabelos desgrenhados, barba por fazer. E eu saberia quem ele era porque meu coração ou meus hormônios diriam. Trocaríamos um longo olhar de reconhecimento e desejo e saberíamos mutuamente que nos reconhecíamos. Não diríamos nada, porque não seria necessário, apenas nos olharíamos profundamente e saberíamos – disse ela com olhos brilhantes perdidos no vazio e a mão erguida como se estivesse prestes a apanhar uma fruta madura. Ele interrompe, cortante como uma lança samurai:

- Tá, e em câmera lenta tu jogaria os cabelos contra o vento e tocaria uma música do Kenny G, daí tu atravessaria a rua, abraçaria esse “Ele”, que provavelmente seria uma espécie de hipster escabelado e barbudo, que não usaria a camisa branca de cambraia, aberta mostrando o dorso bem desenhado e alguns pelos cobrindo uma pele lisa e dourada que povoa nosso imaginário erótico por toda a vida, mas seria uma camisa xadrez sobre uma camiseta de banda indie escondendo uma pele lisa e muito branca de falta de sol e vitaminas, e vocês viveriam felizes para sempre, rodando, rodando, rodando abraçados enquanto subissem os créditos. Me passa o cigarro?

- Quanta amargura! Isso foi maldade! Me deixa sonhar, por favor. Posso ter uma ilusão romântica sem ser usurpada pela TUA realidade sensata, madura e fria? Não me rouba mais isso, por Dios! - resmunga ela, chorosa.

- Como assim roubar “mais isso”? Alguma vez te roubei algo? Darling, as tuas perdas são só tuas, não são minhas. Eu nunca te tirei nada. Aliás, te ajudo a recuperar o que tu perdeu sozinha, de brincos a amantes. E nem precisa me fazer uma oferenda para te trazer a pessoa amada em três dias, basta me pagar uma ou duas doses de tequila.

- Tu nunca me trouxe de volta a pessoa amada! - ela retruca rancorosa.

- Mas tu nunca perdeu a pessoa amada, Coração - ele complementa ácido. Como vou trazer de volta o que tu nunca teve?

- E tu fala isso porque tu já perdeu o teu hipster dourado, lembra? “O Rapto do Hipster Dourado”, dá um bom nome para um filme. As férias acabaram e acabou o sonho, antes mesmo do verão acabar. Tu piscou e toda a magia se desfez num passe de mágica. Tu tem razão, honey, a realidade é mesmo bem dura e a vida tem sido bem madrasta contigo.

- Não lembro dessa pequena perda, não vivo do passado - ele desconversa. E não tenho sonhos de uma noite de verão. Mentira... vivo sim, mas não tem importância. Eu sobrevivo aos meus sonhos naufragados. Me guardei para quando o Carnaval chegasse e não sobrevivi à quarta-feira de cinzas. Fatal, né? E plagiar nomes de filmes dos anos 80 é super over. Tá, não tocou Kenny G para mim no último verão e talvez nunca os créditos subam, enquanto rodopio em câmera lenta, feliz e completo. É isso que tu quer dizer? Que eu não terei finais felizes? É, talvez eu nunca tenha finais felizes. No fim das contas, meu hipster era um grunge tardio numa Terça-Feira Gorda, era um junkie vivendo ao sabor do vento aonde não venta mais, uma alma de menino perdida num corpo bem feito de homem maduro, um neurótico cosmopolita com complexo incurável de Peter Pan, esperando Sininho desembarcar no aeroporto porque ela também não sabe voar - conclui reflexivo.

- Terça-Feira Gorda...que vintage falar como nossas avós! Não, honey, hoje é o dia da profecia. Hoje a roda da fortuna vai girar. Vamos jogar para o universo, vamos entregar para ele que sempre volta - disse ela, jogando as mãos para cima como se fizesse uma saudação, com esperança nada convincente.

- Decretar para o universo que ele devolve? Olha, Cherry, toda vez que joguei algo para o universo, ele se mostrou um grande bumerangue do mal, me devolvendo tudo que desejei direto na cara, sem piedade – disse ele corrosivo.

E riram quase dolorosos porque ninguém precisa procurar o que não perdeu. Ninguém precisa se preocupar em manter o que não teve. Eles tinham posições cômodas. Ninguém dá o que não tem e ninguém perde o que nunca possuiu. Empate técnico. E empate era a encruzilhada em que eles viviam.

- Eu preciso sentar aqui um pouco, ao ar livre, respirar e fumar um cigarro, pode ser? To com um aperto aqui na boca do estômago - disse ela meio melancólica.

- Por quê? Foi o filme? Sim, foi. Te achei meio tristonha no fim da sessão. Tu anda com uma arzinho meio Camille Claudel sem Rodin. A vida é triste, Coração - disse ele, tentando em vão consolá-la. Eu gosto dessas pequenas amarguras, sabe? Solidões, desencontros, desamores, separações, reencontros mornos, tristezas infinitas... Sinto que sou menos miserável, que tem alguém que sofre tanto quanto eu ou mais. É uma espécie de comunhão na dor, no vazio, no nada. Estamos juntos formando um monte de nada. Bonita a comunhão, né? Todo mundo numa grande massa amorfa, sendo um monte de absoluto silêncio estéril e vazio escuro.

- O mundo é o que circunda teu umbigo, meu bem, mesmo com essas teorias new age integracionistas que tu inventou ultimamente. – retrucou ela. Mas ele não ouviu e continuou:

- Ou posso me sentir ainda mais miserável, posso ter mais uma crise de autocomiseração, chegar ao fundo do poço e voltar. Porque eu sempre posso voltar, também completamente sozinho.

- Autopiedade a uma hora dessas não, por favor, baby - cortou ela novamente como navalha. E eu to falando sério. O filme é mesmo muito triste, mexeu com meus hormônios e não é porque ando uma louca paranóica como Camille Claudel, enganada e abandonada pelo canalha do Rodin!

- ¡Pero, qué enredo te has puesto, muchachita! Super projeção histérica com Rodin. A gente tem uma chamada telefônica em espera diretamente do divã? Tudo mexe com teus hormônios, baby, não há novidade. Terminou o cigarro? Tá, levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima. Segura o turbante e vamos - disse ele, rindo copiosamente.

- Tá ouvindo? It's been a hard day's night…I should be sleepin' like a log” – cantarolou ela empolgada. É aquela banda, sabe? Como é mesmo o nome? Alguma coisa de baralho, né?

- The Beatles. E não sou crupiê - respondeu ele, desdenhoso. Essa música é a tua cara, sabia?

- Não subestima minhas parcas faculdades mentais, Darling. Sei de quem é a música, quero saber quem tá cantando agora - ela retrucou. E por que tu acha a minha cara? Acha que tenho dias e noites difíceis?

- Sei de que banda tu fala, é a mesma da semana passada. E será a mesma da semana que vem - ele disse sem paciência, jogando com os dedos polegar e mediano a ponta do cigarro aceso na rua e soltando o restante da fumaça dos pulmões.

- Sem ar blasé, please, na tua idade não cai bem - cuspiu ela.

- Na NOSSA idade, cairia bem uma sopa quente, umas torradas e uma manta sobre nossos ossos cansados. It's been a hard day's night…I should be sleepin' like a log” – cantarolou ele em falsete, sarcástico.

- Não - rebateu ela - na nossa idade cairia bem um conhaque, um charuto e um amante quente (e burro) sobre nossos ossos.A noite nunca tem fim, por que que a gente é assim?” -  cantou em tom irônico.

- Mas não seremos canibais de nós mesmos antes que a terra nos coma. “Cem gramas, sem dramas”... Entre, ma chérie - ele concluiu, reverenciando-a, enquanto abria a porta de vidro do bar.

A noite mal havia começado e quando percebessem julho teria passado, chegaria agosto e depois setembro, os dias virariam semanas e meses. E a grande roda gigante continuaria a girar, num processo eterno que inicia e finda e finda e inicia. E vice-versa. Os longos e os curtos ciclos que constituíam suas vidas transcorreriam com mais ou menos dor até que a profecia finalmente se cumprisse ou caísse no vale escuro do esquecimento, en el ultimo trago, como quase tudo aquilo que não tinha importância para eles. 

sexta-feira, 6 de julho de 2012

HABILITAÇÃO PARA ENAMORAR-SE



Se viver ao lado de outras pessoas fosse submetido a regras práticas, como as de guiar um veículo, a vida seria mais descomplicada. Que regras, afinal, são essas de viver – se é que existem - que não encontramos descritas em roteiros?


Eu adoraria ser acompanhado e guiado por um instrutor, pelo menos em algumas das manobras que realizo em minha vida afetiva, como se eu fosse um aprendiz em uma autoescola. A pessoa ao meu lado, o “instrutor de vida”, por mais austero que fosse, teria em seu poder dois pedais mágicos que poderiam me frear quando necessário, acelerar quando fosse preciso, e estaria sempre (ou quase) atento ao que eu estivesse fazendo na direção. Se eu errasse, levaria uma bronca, aprenderia o (único) jeito correto de agir e não erraria mais nas mesmas coisas. Consequentemente, eu aprenderia a conduzir com perfeição.

Ter alguém ao lado nos orientando pelos caminhos tortuosos que escolhemos seguir pode ser constrangedor, principalmente quando erramos pela quinta vez a mesma manobra no mesmo ponto do mesmo cruzamento. Pode ser como ter um censor com uma palmatória a postos ou um oficial do Führer com uma chibata em riste. Mas não ter ninguém acompanhando pode ser muito mais traumático. Quando menos esperarmos, podemos estar com a caixa de correio cheia de infrações que sequer sabemos que cometemos e perdemos o direito de dirigir. Certo, a vida é um jogo de tentativa e erro e viver com alguém é como jogar xadrez no escuro. Aprendemos através dos erros e não temos um grilo falante para nos dizer qual a jogada seguinte a fazer. Dramático? Não, pragmático, baby.

Quando estamos sozinhos não conseguimos, e nem precisamos, enfrentar nossas falhas de frente. Ou se as reconhecemos quase ninguém mais as reconhece, a não ser quem foi vítima de nossas barbeiragens. É confortável pensar que podemos viver nesse quase anonimato de nossas mancadas. Só que é impossível viver dessa forma. Nossas infrações não são fiscalizadas por guardas de trânsito. Porém, as regras são compulsórias e as penalidades autoaplicáveis. Quando erramos, sabemos que temos que pagar. E invariavelmente pagamos.

Num mundo perfeito, todos teriam tempo de aprender previamente as regras de comportamento e condução de um relacionamento e somente poderiam se relacionar com outras pessoas, em qualquer nível, quando tivessem passado pelas provas, cumprido a carga horária total de treinamentos e estivessem devidamente habilitados. E seriam obrigados a manter relacionamentos submetidos a essas regras e a cumprir todos os ritos de passagem que culminariam nesse objetivo.

Bem que podia ser mais fácil. Um instrutor ensinaria a fórmula de amar da mesma forma que ensinaria aquelas regrinhas para estacionar. Haveria gente que nem precisaria delas e estacionaria super bem. Existiriam outros, no entanto, que nem com todas as regras do universo conseguiriam. O procedimento seria mais ou menos assim: Sinalizaríamos para estacionar quando víssemos a “vaga-pessoa” certa disponível; pararíamos alinhados ao lado dessa “vaga”, manobrando para ver se existem afinidades preliminares, voltando todas as nossas papilas e pupilas para essa pessoa, a fim de verificarmos se podemos ocupar o espaço disponível; no primeiro contato, visualizaríamos o primeiro ponto, não podendo em hipótese alguma perdê-lo de foco, sob pena de precisarmos manobrar muito para finalizarmos a operação e correndo o risco de transformarmos toda a manobra num grande desastre. Pausa para respiração e avaliação: Funcionou o primeiro movimento de ocupação? Certo, mas ainda não seria suficiente. Engataríamos, então, a marcha para entrarmos nesse espaço, com cuidado para não encostarmos em nenhum ponto proibido, o que poderia ser fatal; então, giraríamos a direção de nossos pensamentos no sentido da “vaga” desejada e iríamos guiando cuidadosamente até que visualizássemos, pelo espelho retrovisor de nossa razão, o próximo ponto desse roteiro; quando conseguíssemos acertar o primeiro ponto e fizéssemos corretamente a primeira manobra, frearíamos nossas ações impensadas, giraríamos a direção para o lado oposto para alinharmos melhor ao espaço; nesse momento visualizaríamos o terceiro ponto, sendo necessária mais uma manobra sutil, girando novamente nossa atenção para o outro lado, mudando a marcha com palavras mais adequadas. Alinharíamo-nos, assim, perfeitamente à vaga. Quando alinhados, operaríamos o ponto neutro de nossa fala retórica e infrutífera, puxaríamos o freio de mão de nossos corações, finalizando. Pronto. E todos seriam felizes para sempre. Seria bonito e fácil, não é mesmo? Tenho certeza que os programas matinais de variedades passariam sempre essa receita. Mas a vida não é assim, Dear. Sorry...

Não existem instrutores que nos ensinem a guiar a vida “de forma correta”, embora vários já tenham tentado, inclusive e principalmente nesses programas matinais de variedades. Muito menos escolas especializadas nesses assuntos. Isso porque não existem regras fixas e essas coisas não podem ser ensinadas verbalmente, são aprendidas quando e se sentidas. Mente quem promove receitas e fórmulas prontas para viver a dois ou em comunidade. No que depender de mim, os autores de livros de autoajuda (que ajudam somente a eles próprios) poderiam mudar de profissão ou escrever compêndios sobre futebol. Nesses casos sim, existem mais regras que talentos atualmente.

Para viver é necessário certo dom, algum talento e o árduo desenvolvimento de aptidões naturais. E falo em “aptidão natural” porque existem pessoas que simplesmente não nasceram para conviver com outras. Da mesma forma que existem pessoas que jamais estarão aptas a conduzir veículos, sejam fuscas ou jatos supersônicos, existem aquelas que não conseguirão jamais relacionar-se com outros seres de forma saudável. Algumas nasceram para ser passageiras de táxi, bastando entrarem, dizerem o destino desejado em poucas palavras e deixarem-se ser guiadas. Para essas pessoas os relacionamentos são funcionais e verticais. Logicamente elas estão no topo do vértice. Outras existem com a função de taxistas, vivendo apenas para atender às ordens e coordenadas alheias e somente tendo destino quando ordenado do banco traseiro. Para essas pessoas tanto faz para onde ir e colocam-se na confortável passividade de serem dirigidas sem qualquer necessidade de autonomia. Para outras, ainda, somente ônibus, onde não é necessário quase nenhum contato com o motorista ou cobrador, a não ser dois gestos: o de entregar o dinheiro ao cobrador e o de soar a campainha ao motorista quando quiserem descer. Qualquer contato mais próximo com elas seria um ultraje. Todos exercem funcionalidades bem específicas em suas vidas e that’s all, folks. Mas isso é outro assunto.

Observando mais detidamente é possível ver que existem semelhanças entre a condução de um veículo, seja qual for, e a de um relacionamento afetivo, seja também qual for. Em todos os casos é necessário treino, habilidade, calma, coragem e paciência. É preciso controlar a ansiedade, imprimir uma boa dose de prazer, leveza e vigilância. É preciso reconhecer quem somos nós e qual o nosso papel na relação. Precisamos saber das nossas responsabilidades, seja como condutores ou como conduzidos, além de sabermos se temos condições de nos lançarmos em possibilidades. Mais que uma questão de respeito àqueles que nos são por ventura caros é uma questão de respeito por nós próprios. Pena que não sabemos de antemão se a pessoa que queremos para nos acompanhar nessa viagem possui habilitação. Mas não aflijamo-nos, isso é possível descobrir logo depois da arrancada, antes mesmo de engatar a segunda marcha. Portanto, verifique se o seu brevê está válido e é de categoria adequada e caso seja conduzido, observe se o condutor está habilitado. Daí, a decisão de continuar essa super trip é sua.