sábado, 29 de setembro de 2012

POUR CHANTER EN CHOEUR: “JOYEUX ANNIVERSAIRE!”



“Den Döende Dandyn” – (The Dying Dandy): Nils Von Dardel, 1918 [*] 



“Pára, meu coração! 
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...” 

(“Aniversário” - Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)) 



[Para ler ao som de Bon Anniversaire – Charles Aznavour]



Dei uma última olhada no espelho bisotê emoldurado em ferro fundido com motivos florais em estilo rococó sobre o aparador antigo de mármore. Ainda tenho a mania de esperar que milagres aconteçam no caminho do quarto até a sala e que minha aparência milagrosamente melhore no exato instante em que certifico o feito no espelho do corredor. Não aconteceu, obviamente. Suspirei para buscar fôlego e continuar andando, arrumei uns fios rebeldes do cabelo que caíram sobre a testa já lustrosa devido ao nervosismo habitual da situação. Passei as mãos na lapela do casaco branco para retirar possíveis fios de cabelo, também brancos, caídos de minha cabeça cada vez mais calva. Vesti o sorriso mais forçado e adentrei a sala.

Todos esperavam por mim. Aplausos e abraços, risos altos e beijos estalados. Detesto esses contatos físicos próximos, principalmente quando penso que envolvem centenas de milhares de perdigotos jogados em minhas faces no final. Cumpri à risca o protocolo, que envolvia dizer a idade que estava completando e ouvir sorridente que “nem parece”, quando na verdade parecia, que eu estou “super bem para a idade...”, quando na verdade todos sabíamos que não estava, ouvir atento e interessado receitas para finalmente encontrar um bom casamento, já que a vida toda fui solitário e é inconcebível sê-lo por escolha pessoal na idade que tinha atingido, parar de fumar, porque “existem cinco minutos presos em cada cigarro”, parar de beber - porque prazeres hedonistas não são sóbrios - e de dormir até muito tarde em dias ensolarados de primavera, “porque o sol faz bem pros ossos, ainda mais depois de certa idade”, praticar exercícios e ter uma alimentação saudável. Enfim, eu deveria deixar de ser eu mesmo. Não existe coisa mais pedante que pessoas politicamente corretas. Sim, existe. São insuportavelmente pedantes as pessoas politicamente corretas que tem intimidade conosco e acham-se no direito de intervirem em nossos hábitos autodestrutivos. Agora que havia entrado nessa “nova era” dos quarenta anos deveria casar, ter filhos, uma casa com varanda e quintal, poupança, plano de aposentadoria, uma vida sem vícios. Resumidamente, queriam que eu trocasse de jaula. Uma nova prisão para um dândi de meia idade. Uma prisão mais digna do status que eu deveria ter com a idade que me alcançou, a idade da razão, que nem sei se algum dia terei. 

Aturdido, peguei uma taça de vinho branco e fui para um canto do salão. É reconfortante sentir todas as papilas serem inundadas pelas notas delicadas de um doce néctar de boa safra. Fechei os olhos e tentei me imaginar longe dali. Não funcionou. Ouvi gritarem meu nome. Acordei do breve transe nos braços de Dionísio. A realidade é pior que o sonho, sempre. Levantei-me e tentei parecer feliz. Caminhei em direção à grande mesa onde estava disposto um bolo com meu nome escrito com glacê. As pessoas não se cansam de serem cafonas com os outros e de expô-los a situações vexatórias? 

A hora do “parabéns pra você” é a pior desde que tenho três anos de idade. Tortura medieval seria menos dolorosa. Neste ano, como se não bastasse, eles aprenderam a cantar Parabéns em todas as línguas de todos os países por onde andei ao longo de alguns anos, na tentativa desesperada e frustrada de fugir de todos aqueles que naquele momento rendiam-me homenagens. Começaram a cantar em minha língua materna e terminaram gritando, “en choeur”: “JOYEUX ANNIVERSAIRE”.

Enchi os pulmões de ar, inclinei meu corpo para frente e expeli o ar vigorosamente pela boca, cuidando para fechar os olhos como se estivesse fazendo um pedido especial (que evidentemente não fiz porque meu único desejo, o de sumir dali, não seria realizado no momento em que precisava). Pronto. Apaguei as dezenas de velas brancas pequenas dispostas sobre o bolo de chocolate confeitado. Alguém entusiasmado disse que ele era feito de ganache de chocolate meio amargo, morangos e uma crosta de amêndoas caramelizadas. “Ma-ra-vi-lha!”, eu disse, com forte entonação na separação silábica. A vontade que tinha, porém, era de dizer que sempre achei o cúmulo do lugar comum à combinação de morangos e chocolate. Não consegui contar as velas, mas provavelmente o vexame completo era que elas representavam cada uma um ano da minha vida. Precisava esfregar a realidade na minha cara e fotografar para registrar para a posteridade a minha ruína? 

Eu via como um estrangeiro aquela agitação alusiva ao dia em que eu fazia anos. Não era para mim, não era comigo, não era eu. Ali havia um duplo de mim, oco e sem essência. Uma carapaça sorridente e compassiva atrás da qual o “Verdadeiro Eu” se escondia para satisfazer as necessidades alheias. Queria sentar no alto do morro mais alto, de onde podia ver todas as luzes deste povoado medieval parado no tempo acenderem, até as mais distantes, enquanto bebia meu Bourbon de qualidade duvidosa e fumava um cigarro marroquino de cravo. A vontade que sentia naquela hora, sabendo que era realmente amado por todos aqueles que festejavam a minha existência, era de dizer: “Certo, já sei que vocês me amam, agora preciso sair e ficar sozinho. Bebam e comam por mim. Somos todos bacantes!” Mas tenho crises atrozes de comiseração cristã. Eu jamais feriria essas pessoas com meu egoísmo. 

Há anos vim parar aqui nestas longínquas e isoladas tierras de España. Nem sei bem o porquê. Só queria fugir. Não consegui. Carrego, marcada na alma, a cidadela na fronteira com o Uruguai que deixei, carrego no peito os amores que deixei, carrego na pele as cicatrizes das lutas contra o Rei. E cercado de pessoas que supunha me amarem, felizes por terem preparado uma festa especialmente para mim, mesmo eu sabendo que não merecia tamanha honraria, tal como um bolo ostentando velas na quantidade dos meus anos, um prato generoso de pisto, tortillas variadas, tapas finamente adornadas e uma sangria forte, sentia claramente que eu era uma fraude.

Ofereceram-me mais um copo de sangria, porque tinham certeza que eu adoro - mas detesto profundamente e não diria jamais porque não tenho coragem de ser sincero e correr o risco de ser rejeitado. Minha necessidade de ser amado é maior que minha necessidade de dizer o que realmente penso. E por mais que fosse opressiva essa situação que via com distanciamento e estranhamento, pior seria se estivesse sozinho em casa com meu gato, sentados à mesa comendo comida enlatada fria ou então passando horas preparando um jantar sofisticado, composto por entrada, prato principal e sobremesa, harmonizado com bom vinho tinto, somente para mim. 

É uma tradição familiar que conservo desde a mais tenra infância a de transmitir afeto através da culinária. Todos em minha família costumavam abrir as portas de suas casas e receber as pessoas calorosamente com jantares ou almoços longos e fartos, impecavelmente apresentados e com cardápio invejável. Os prazeres sensoriais da boa mesa sempre foram nossa moeda de barganha. Eu não teria me tornado chef de cozinha profissional se não tivesse esse desejo de seduzir meus convivas com a alquimia exerço na cozinha. Além disso, é a única forma autêntica que conheço de demonstrar afeto. O resto é um grande espetáculo artificial. Mesmo sem refletirem muito sobre isso, todos em minha casa materna sabiam que não existia forma mais fácil e eficaz de dar e receber carinho que através da boa mesa e que não existiria, numa família emocionalmente desestruturada, outros momentos de comunhão – embora interessada – além dos proporcionados ao redor da mesa de refeições, onde cores, sabores e cheiros traziam à mente aconchegos longínquos ou recriavam carícias inexistentes. 

Cordato, sentei-me à cabeceira da grande mesa cuidadosamente posta, como gosto e como costumo fazer quando recebo os que me são caros. A toalha alva de cambraia bordada com arabescos pendia graciosamente nas laterais da mesa, os guardanapos de linho estavam milimetricamente dobrados e presos por anéis de alpaca polidos à exaustão e pousados do lado esquerdo dos pratos de delicada porcelana branca, as taças de água, vinho branco e vinho tinto eram de cristal alemão à direita, e os talheres de prata estavam irretocavelmente lustrados e perfeitamente dispostos. Irrepreensível. Todos se acomodaram em seus lugares ao redor da mesa, aparentemente eufóricos com o momento que supus ser o ponto alto da noite. Então, ouvi uma agitação maior. Aumentando gradativamente, surgiram palmas, sapateados, castanholas e uma guitarra soando de forma envolvente. E pelas minhas costas surgiu um carrinho trazendo um opulento jantar típico da minha terra de origem, preparado especialmente por um dos meus queridos ali presente. As baixelas de prata traziam toda sorte de cortes bovinos, ovinos e suínos, assados em brasas, vísceras que eu sequer seria capaz de identificar, carnes gordas e mal passadas. Uma refeição típica de bárbaros mongóis (ou latinos). O grupo musical, composto por homens alinhados em ternos negros e dançarinas exuberantes com vestidos de renda carmim, cercou a mesa. Todos acompanharam o ritmo da música com danças e palmas, enquanto os pratos eram cuidadosamente colocados em frente aos comensais, como se fosse uma oferenda aos deuses. Fiquei lisonjeado com o carinho e com a singeleza profunda do ato, embora abomine veementemente todos aqueles pratos. O cheiro da comida e a música tomaram conta de todo o ambiente e me deixaram mareado. Disfarcei e recobrei as forças com um gole d’água. Bati palmas, sorri e agradeci por tudo aquilo que estava sendo feito por mim. Intimamente, no entanto, eu estava completamente desolado com todo aquele circo. 

Serviram-me sem parcimônia alguma, ao melhor estilo latino no qual estávamos todos imersos. Remexendo a comida no prato com a ponta da faca pensava: Que pedaços são esses sangrentos e gordurosos no meu prato? Eram as vísceras de um boi, imaginei. Engoli seco. O que é isto? Frango? Ah, não, é o coelho da paella valenciana. Salivei, nauseado. Separei todos os pedaços de carne e tentei comer o restante do que me foi servido. Alternadamente bebia generosos goles de vinho ou água para conseguir deglutir a comida. Esta foi a maior das torturas já realizadas naquele vilarejo, desde sua fundação, em meados do século XVI. Não tive coragem de dizer a eles que eu sou vegetariano macrobiótico há anos, temendo estupefação geral e desprezo indistinto. Da mesma forma que jamais diria àquele grupo de católicos fervorosos, que fez uma oração em um dialeto basco em frente aos pratos servidos, que sou muçulmano e que havia me convertido já em idade adulta, porque tive uma louca paixão por um iraniano, cujo nome e rosto deliberadamente desapareceram da minha mente no dia em que ele resolveu explodir a si mesmo e à embaixada do meu país em Jerusalém, cidade onde vivíamos. Meu amor literalmente explodiu, mas minhas crenças permaneceram. Frágeis, mas existentes. 

Consegui, na profusão de pratos, taças e talheres, me livrar de toda carne servida a mim sem chamar atenção. Continuei sorrindo e conversando cordialmente com todos, afinal era essa minha obrigação. Por dentro, no entanto, a cada sorriso, sentia uma lança atravessar meu peito destruído. Tentei sair da mesa e ir fumar em um canto qualquer, longe da confusão. Impossível. Era hora da sobremesa. Servem espumante produzido nas redondezas do vilarejo. Razoável (bem razoável!), mas não digo nada porque era uma cortesia do produtor, que estava presente. Ergo um brinde e agradeço a cada um por toda a atenção e carinho dispensados ao longo de todos os dias, em especial naquele. Salud! 

Cabia-me, como é tradicionalmente feito, a incumbência de servir e dedicar o primeiro pedaço do bolo com algumas frases de efeito. Polidamente servi e ofereci à primeira pessoa que vi, aleatoriamente. E dirigi-lhe gentilezas genéricas que diria a qualquer um ali presente. Cortez, nada além disso. Sem que pudesse dizer que estava farto e não comeria naquela hora o bolo de chocolate, serviram-me uma fatia generosa, onde era possível ver a inicial do meu nome. Não pude dizer que sou intolerante à lactose e alérgico às amêndoas da crosta crocante do recheio, tampouco teria coragem de dizer que detesto chocolate e amêndoas, ainda mais cobertos de confeitos coloridos.

Tomei, então, uma decisão radical. Era isso que eles esperavam de mim, que eu fosse grato e me deleitasse com o amor que me era ofertado até ser consumido por ele? Então, que seja. Entreguei-me. Bebi o restante do espumante da taça em minha frente em um único gole. Respirei fundo, fechei os olhos e concentrei-me na garfada do bolo, a qual levei à boca vagarosamente. Minhas papilas foram invadidas pelo doce enjoativo dos confeitos açucarados. Mastiguei a crocância das amêndoas. Engoli. Em volta todos observavam sorridentes. Sorri para acompanhar e assenti, olhando cada um dos presentes diretamente nos olhos. Ainda ouvi as risadas, os aplausos e os gritos de todos ficando cada vez mais distantes. Minha visão ficou turva, tive tonturas, sudorese, alteração da pressão arterial e perdi a tonicidade muscular dos braços e pernas. O resto foi contado a mim nos dias subsequentes pelas testemunhas dos fatos: fui carregado nos braços, cianótico e inconsciente, para o hospital da cidade. Fui medicado e muitas horas depois recobrei a consciência. Estava ainda bastante atabalhoado, mas tinha uma certeza: a de pelo menos ter conseguido sair da minha própria fiesta de cumpleaños na hora que decidi. Finalmente tive um bon anniversaire.




[*] Classificado pela história da arte como pós –impressionista, Nils Dardel é um artista sueco do começo do século XX. De família aristocrática e biografia aventureira, ele passou por, Cuba, Peru, México, Guatemala, Norte da África, Japão e Paris, antes de morrer em Nova York, em 1943. O deslocamento geográfico é semelhante ao estilístico, Dardel adotou o Cubismo, o Fauvismo, a abstração e volta e meia aportava no realismo tradicional. É fato que em algumas obras ele antecipou o Surrealismo. Era em vários sentidos um dândi, conhecido pela elegância pessoal, pelas opiniões afiadas e excêntricas e pelo gosto por morbidez e decadência. A obra mais conhecida que ele deixou se chama justamente A morte de um dândi (de 1918, acima) até recentemente o quadro sueco vendido pelo maior valor no mercado da arte global.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

ENCRUZILHADAS DA RAZÃO


Alberto Pancorbo: “Poblada Soledad”. (Acrilic on canvas)


[Para ler ao som de “Perfect Day” (Lou Reed), interpretado por Antony & The Johnsons]


"Oh, such a perfect day
You just keep me hanging on
You're going to reap just what you sow" [*]

(Lou Reed)


Meu peito estava apertado. Mas não era angústia. Era como se eu tivesse sido acometido por alguma daquelas enfermidades cardíacas que fazem o coração da gente crescer, inchar, entupido de qualquer coisa podre que não é amor, até entrar em colapso e explodir necrosado em todas as sete direções galácticas. A sensação que eu tinha, porém, era que a qualquer momento meu coração implodiria e abriria um buraco negro bem no meio do peito e sugaria para dentro de si tudo ao seu redor, e a mim mesmo, para o mais profundo esquecimento. Eu estava vazio de tudo e dentro de mim algo crescia de forma incontrolável. Silêncio e inércia sufocam a gente. Poderia ser apenas o anúncio de um enfarte. Poderia ser algo pior e irremediável. Poderia ser o colapso da razão. Colapso porque não dava mais para segurar tantas urgências simultâneas gritando por dentro. Pavor. Um escuro silencioso e frio crescia, duro, como uma estrela que chega ao fim da existência, minguando gradativamente até transforma-se em uma anã branca, sem luz e sem condições de abrigar qualquer manifestação de vida. Eu sentia como se tivesse me tornado um expatriado porque dentro de mim não havia mais possibilidade de existir vida.

Meu coração estava querendo chamar atenção? Provavelmente. Mas para que? Acho que ele só queria dizer que estava ali, vivo, além de involuntariamente pulsante. Eu já o havia relegado ao devido lugar de um órgão que não funciona bem e que tem um defeito congênito e incurável. E já havia realizado o único tratamento ao qual poderia me submeter em casos como esse: re-sig-na-ção. Eu já havia me resignado e tentava aprender a sobreviver com um coração que não funcionava como deveria e que jamais seria curado, porque não havia salvação para um órgão que não cumpria somente sua função principal de bombear sangue para o restante do corpo. Para completar, além de incapaz de cumprir suas funções essenciais, meu coração tinha rompantes de independência dentro de mim. Ora, um coração com vontades! Que disparate! Meu cérebro sempre foi senhor de minhas ações e um coração que ama errado - aliás, um coração que “ama” - só poderia ser fruto de uma mente fértil, romântica e irascível.

Minha mente e meu coração, de fato, não estavam no mesmo compasso. E eu estava perdido entre os dois. Sentia uma dor física que era uma dor de secura, como se acontecesse um processo de desertificação em mim. Fui ficando infértil, árido. Eu sabia, conscientemente, que um coração personificado era fruto de alguma coisa que não funcionava bem em minha cabeça. Sempre fui razoavelmente autoconsciente e sabia que aquilo que estava acontecendo não era indício de sanidade. Mas eram mais fortes que minhas faculdades mentais esses impulsos involuntários.

Meu coração parecia crescer cada vez mais de tanto vazio e minha mente parecia cada vez mais empenhada em certificar esse movimento. E eu atônito, amordaçado e imobilizado, vendo minha própria vida ser tomada de assalto por uma mente ilógica e um coração insano, assistindo pela pequena janela da cela escura de minha alma os vultos de uma vida interior inteira serem refletidos através sombras difusas, sem minha participação.

Foi então que resolvi ir até lá e bater à porta novamente, mesmo sem avisar, mesmo sem ser convidado, mesmo parecendo um completo paspalho. E pareci realmente. Tinha a consciência que era alta madrugada. Chovia e eu andava sem guarda-chuva. Sabia que poderia adoecer fisicamente ainda mais, mas isso me importava menos que a impressão que eu causaria, chegando no meio da noite, todo encharcado e sem avisar. Não importava mais minha saúde física, não importava mais a impressão que eu causaria, não importava mais minha sanidade mental. Bati. Bati novamente. Na terceira e mais vigorosa vez que bati à porta ela se abriu. Por dois segundo quis sair correndo porque sabia o que poderia parecer eu estar ali, assim despido de todos panos coloridos com os quais cobria minha face da verdade.  Uma luz fraca iluminou meu rosto molhado. Senti-me mais uma vez um miserável. Mas era tarde demais para voltar atrás.

- Sei que você deve estar estranhando eu estar aqui. Na verdade eu também estranho, porque quase não me reconheço nesta atitude impensada. Sinto-me meio ridículo vindo aqui a uma hora dessas, sem avisar, numa noite como esta, sem nem ao menos saber exatamente o que esperar ou o que dizer ou se você me receberia.  Mas vim porque sinto que existem coisas que quero dizer e preciso dizer agora. Sei que estou com hálito de álcool. Apenas tive energia e coragem para vir depois de algumas doses. Mas não quero importunar você com meus sofrimentos. Só vim... na verdade nem sei direito porque vim... Certo, tentarei formular claramente... eu vim porque queria dizer umas coisas que estão me atormentando a razão desde aquele dia que você chegou e me disse aquelas coisas bonitas naquele bar, me olhou daquele jeito tão terno e gentil, bem dentro dos olhos como se pudesse ver minha alma e me despiu de todas as defesas com seus olhos amendoados meio umedecidos, negros e brilhantes, e me trouxe aqui para sua casa. Não, não acho que você me usou para satisfazer seus impulsos básicos. Bem, acho que sim, acho que você queria de mim naquele dia menos que eu quis de você nos dias seguintes. Não vim cobrar minha pureza perdida. Eu não sou puro há muito tempo e não tinha nada perder. Tampouco tinha algo a oferecer a você de puro, raro ou intocado. Ambos há muito perdemos a inocência. Ambos não chegamos – e talvez nunca cheguemos - à idade da razão. E ambos sabíamos exatamente o que estava acontecendo e no que aquilo poderia resultar. Afinal, somos adultos e maduros e conscientes e práticos e perfeitamente capazes de suportar ausências ou negativas. Mas no caminho entre minha cabeça, meu coração e minha pélvis algo que eu sentia fugiu do meu controle. Eu sempre fui aparentemente seguro, você sabe, e sempre soube lidar bem com situações como a que vivemos. Atração física sempre foi um assunto que distingui completamente de qualquer afetividade. Não, não é isso. Não vim aqui para falar de especulações acerca de qualquer espécie de afetividade entre nós. O que estou dizendo? Não vim aqui para falar sobre o que você pensa do que aconteceu entre nós. Vim aqui somente para falar uma coisa. Espera, eu vou conseguir... É que meu coração mandou meu cérebro calar-se. E ele obedeceu, fugindo completamente de qualquer racionalidade. E é por isso que estou aqui, porque não é racional.  Acho que estou aqui porque meu pensamento fugiu a toda lógica, porque sou apenas desejo agora neste momento, desejo errante e selvagem, molhado de chuva, de suor e de algumas lágrimas que não consegui conter, meio zonzo de tantos pensamentos fragmentados e sentimentos arrebentados, talvez um torpor causado pela combinação de álcool e café preto depois de muitas horas de estômago - e alma - vazios. Vou dizer uma coisa correndo o risco de ser ridicularizado ou de você sentir medo de mim. Várias vezes eu passei aqui pela frente da sua casa e olhei para a janela, de madrugada, e vi a luz do nosso, quer dizer, do SEU...do seu quarto acesa, e via dois vultos distintos caminhando ao redor da cama. Você tem todo o direito e reconstruir a sua vida, e eu a minha... na verdade não é uma reconstrução, porque não tivemos vidas destruídas. A bem da verdade, nem construímos uma vida juntos. Nossa história se resumiu a alguns filmes juntos, com roçares acidentais de mãos no escuro, enquanto lhe oferecia pipoca, mesmo sabendo que você detesta, no máximo meia dúzia de beijos roubados quando subiam os créditos e alguns poucos jantares, regados a gentilezas frias, como eu lhe passar a cesta de pães provavelmente dormidos do couvert ou você servir vinho na minha taça sempre vazia. Mas me doeu ver você com sua vida distante da minha, me doeu a possibilidade de alguém deitar sobre os travesseiros onde revelei meus sonhos secretos a você, enquanto você acariciava minha testa, e senti-me meio miserável por não poder ao menos dizer o que estou sentindo agora, porque só restou de você em mim uma saudade de algo que nem sei se foi ou poderia ter sido, uma promessa esmaecida de Polaroid e seu cheiro adocicado e meio agreste impresso em minha pele tatuada de ausências e ressecada de amarguras. O que quero dizer é que eu tenho sentido coisas que nem sei ao certo nominar... Por favor, não feche a porta ainda, deixe eu terminar de falar o que tenho para dizer. Espere! Não me deixe aqui neste escuro novamente! Abra a porta, por favor, abra! Eu só queria dizer que...




[*] “Ah, um dia tão perfeito / Você segura a minha barra / Você vai colher só o que plantou”



terça-feira, 11 de setembro de 2012

A GRANDE MUDANÇA



Alberto Pancorbo: "Laberintos del Alma"

“Já conheço os passos dessa estrada
Sei que não vai dar em nada
Seus segredos sei de cor
Já conheço as pedras do caminho
E sei também que ali sozinho
Eu vou ficar, tanto pior”
(Retrato em Branco e Preto – Chico Buarque)

Olhou para seu rosto refletido no pequeno espelho do banheiro como se fosse a primeira vez. E talvez realmente fosse. Pela primeira vez conseguia ver a si mesmo daquela forma crua e fria. Sentia uma dor seca no estômago. Angústia. Fome. Medo. Ou somente desilusão, sem máscaras, exposta como as vísceras de um cervo devorado por chacais. Não era a primeira vez que olhava para seu rosto tão detidamente, mas era a primeira em que não havia admiração, não havia vaidade, não havia orgulho. Houve um tempo em que ele foi muito bonito e exageradamente vaidoso. Mas Narciso definhou de tanto admirar sua própria imagem refletida no espelho d’água do lago. E exatamente naquele momento, em frente ao espelho, tentava achar algum resquício escondido atrás das marcas fundas em suas faces. O tempo havia passado e ele estava inexoravelmente condenado, como todos os vivos, a não poder voltar atrás e a carregar as marcas de suas escolhas equivocadas pela vida afora.

No momento em que percebeu nitidamente todos os equívocos do passado e tomou consciência de que sua realidade atual era fruto de escolhas anteriores o que restou foi uma amargura infinita e a sensação de que a vida passou em um piscar de olhos. De tal forma que dos pouco mais de quinze anos de idade subitamente foi jogado diretamente para os mais de quarenta, talvez porque tenha passado tempo demais forasteiro de tudo e alheio a todos – inclusive a si mesmo. E seu rosto de mais de quarenta anos, com as rugas dos de mais de quarenta anos, as olheiras negras e fundas e a amargura de mais de quarenta anos, faziam de seu olhar sem sonhos um mar de tristezas impossíveis de serem ocultadas com sorrisos falsos. Decorrência do tempo perdido, das noites insones, dos uísques falsificados, dos beijos vazios, do sexo ordinário e de tantas outras epifanias cotidianas que são infinitamente mais sentidas quando se tem mais de quarenta anos.

Se sua vida tivesse sido diferente, se tivesse escolhido outros caminhos, se tivesse aproveitado outras oportunidades, se tivesse tido consciência de si, todas essas marcas, essas ausências e essa amargura não existiriam, pensou pragmático, enquanto estivava a pele seca e vincada do rosto com as mãos ásperas e procurava obsessivamente no fundo dos olhos negros o menino bonito que um dia foi. Tentando resgatar uma leve sombra de euforia adolescente, pensou que ainda poderia ser infinitas coisas na vida. Poderia ser o que quisesse. Quando tinha vinte anos. Mas com mais de quarenta desaprendera o ofício de sonhar. Não desenvolveu a habilidade de projetar desejos na realidade. Era inábil em viver. E deixou inúmeras situações inconclusas, planos inacabados, portas abertas, mantidas assim para que fossem fechadas ou deixadas entreabertas sem qualquer razão.

Naquele dia, quando se deparava com quarenta anos mal vividos, barba de uma semana, umas dores estranhas no peito e na alma, reconhecia-se com um intermédio, como um esboço, como uma construção abandonada que mal saiu dos frágeis alicerces, como um “quase”.  Quase feliz, quase realizado, quase vivo.  Quase se casou com Denise, moça de palidez e magreza de sobrevivente de Auschwitz, estudante de arquitetura. Ela possuía um ar altivo e independente, lia revistas especializadas em arte e filosofia, tinha a soberba que cegou Édipo estampada nas faces bem desenhadas de vinte e bem poucos anos. Óculos de sol, modelo tartaruga de diva do cinema dos anos cinquenta, que escondia perfeitamente a mediocridade, óculos de grau, seguindo as tendências da moda em design italiano, para aparentar ainda mais o que não era. Vagava pelos botequins, cafeterias e salas de cinema vomitando comentários sobre os filmes de Pasolini ou Godard que jamais assistiu e sobre os quais assumia como seus comentários alheios (e não menos vazios de sentido), bradando que para ela as obras “eram manifestos pelo amor livre, que davam a exata noção da finitude humana, ao passo que faziam emergir um humano superior, capaz de superar a própria finitude em favor de um sentimento universalizante, possibilitando o surgimento de uma subjetividade que permeia o verdadeiro Eu universal, mesmo em ambientes opressivos”.  

Aliás, nisso Denise e ele eram parecidos. Ambos gostavam de discursos grandiloquentes, preferencialmente com platéias atentas e burras. Era nessas situações que realmente surgia esse tal “verdadeiro Eu” de cada um. Um dos palcos prediletos dela era a cantina da faculdade. Lá se deleitava numa retórica vazia. E fazia parte do seu show ostentar coques com pincéis (porque pincéis só lhe serviam para ornar a vasta cabeleira cor de mel, já que pintar não sabia nem o mais trivial sol com montanhas), mantas coloridas sobre os ombros esquálidos, enquanto as mãos alvas e finas dançavam no ar, com dedos longos e finos de pianista sueca que lembravam Liv Ulman em um filme de Bergman. Será que Denise também tinha um espelho no banheiro onde observava a si mesma? Ele nunca saberá. Isto porque ela abandonou-o e decidiu dividir seu banheiro, assim como toda sua vida, com uma alemã de nome impronunciável, misândrica ativista feminista, que conhecera numa manifestação qualquer pela libertação de algum grupo oprimido de mulheres sabe-se lá de onde. Também não importava se eram curdas, palestinas, israelenses ou cubanas. O importante era estar engajada em uma causa da moda. Ele sabia que ela era incapaz de sair em praça pública com cartazes em punho, mas acionava todas as suas redes sociais em favor da libertação das cadelas-bomba iranianas, se isso fosse conferir um certo ar vanguardista. No dia em que ela conheceu a tal alemã não foi diferente. Saiu para comprar cigarros e foi engolida pela passeata, embora não fosse simpatizante dessas inserções em manifestações públicas onde fosse inevitável o contato físico com pessoas, conhecidas ou desconhecidas, da mesma forma que não era fumante.

Ele e Denise eram duplo um do outro. Ele lá, entre os latinos, ela entre os alemães, curdos ou paquistaneses. Chegaram a ter planos juntos. Sonhos insólitos, como tornarem-se vegetarianos macrobióticos após retornarem do Tibete, Índia ou Compostela, abrirem um restaurante krishna no bairro judeu da cidade, ou viver de gorjetas tocando sax numa estação qualquer do metrô em Nova Iorque. Eram apenas sonhos e sonhos era tudo o que tinham. E no fim nem os sonhos compartilhados restaram. “Os ratos são os primeiros a abandonar o barco”, cuspia de lado, logo após ser abandonado, entre um conhaque e outro, no bar onde tinha cadeira cativa num canto do grande balcão de imbuia. Passava noites inteiras ouvindo boleros, bebendo, choramingando sua própria miséria e contando ladrilhos coloridos nas paredes e no chão. “O beijo, amigo, é a véspera do escarro, / A mão que afaga é a mesma que apedreja”, lamuriava rua afora, após ser expulso do bar pelo adiantado da hora, nas intermináveis madrugadas sem Denise.

“O pensamento é atemporal”, ouviu uma vez de sua analista, porque é cult fazer análise, além de usar os óculos da moda ou ler a literatura da moda, mesmo que sejam assuntos sofisticados e inacessíveis para pessoas medianas como ele. Não importava. O que ele sabia bem sobre o tempo é que ele passara e sustentar essas personagens torna-se cada vez mais pesado. Ele sentia como se vestisse uma fantasia que se avolumava até tornar-se imensa e capaz de sufocá-lo até a morte. O mundo que ele criou já não era mais sustentável. Entrara em colapso porque era uma quimera. E aquele era o dia do juízo final. Percebera que à medida que o tempo passava, além de ser impossível suportar as doses diárias de ilusões, as pílulas douradas e os placebos cotidianos, tornaram-se impossíveis outras coisas também, como passar uma noite inteira com um desconhecido em um quarto incerto de hotel, com vista para o nada, em lençóis sujos. Ele tinha chegado à sombria conclusão que a vida havia sido implacável, colocando-o em xeque, e a autoconsciência acabou sendo inevitável. Quando a consciência emerge, potente e imponente como o muro de Berlim, é necessário derrubá-la em silêncio, sem qualquer alarde e sem câmeras de TV, se quisermos permanecer os mesmos e se empreendermos a hercúlea tarefa de mentirmos para nós mesmos por toda a vida.

Ele sabia que não podia ser guiado por um chakra de frequência energética tão baixa. Só que do chakra básico ao da coroa havia um mundo inteiro de coisas a serem enfrentadas, uma batalha contra tudo, contra todos e contra si mesmo, sobretudo. A consciência é uma maldição, é um caminho sem volta. O processo foi começando devagar, com pequenos indícios, com anúncios quase imperceptíveis. Com o tempo, porém, isso foi se intensificando até tornar-se insuportável. Os momentos de lucidez aconteciam nas ocasiões mais impróprias, como nas fugas corriqueiras da realidade que ele fazia mecânica e providencialmente desde sempre. Por exemplo, logo após os oito maravilhosos segundos do orgasmo, quando a vida toda fica cor-de-rosa, tão caros e necessários a compulsivos e hedonistas como ele. A grande lança da lucidez caía sobre sua cabeça no exato instante em que o colorido vira cinza novamente, escorrendo viscoso entre as coxas, quando as roupas estavam amontoadas no canto do quarto e as cuecas já pelos joelhos e ao seu lado (ou sobre ele, ou embaixo dele) havia outro corpo em igual situação. Como num estalar de dedos, a magia se desfazia e ele era chamado à responsabilidade por seus equívocos. Porém, era hábil em sair pela porta dos fundos da lucidez.

Era impossível criar vínculos, embora fosse mais fácil isentar-se de responsabilidades em relação aos outros. Quando se tem pouca idade esses relacionamentos prêt-à-porter são mais fáceis. É mais fácil protocolarmente olhar, gostar, saciar-se e dispensar. É mais fácil erguer-se da cama, vestir-se e ir embora, sem dramas, sem passado e sem futuro. É mais fácil esquecer. Debruçar-se sobre si mesmo era insuportável para ele. Porém, os pensamentos e as sensações relacionadas a esses pensamentos não cessavam, enquanto olhava fixamente bem dentro de seus grandes e assustados olhos escuros refletidos no pequeno espelho do banheiro.

Como supostamente acontece com pessoas à beira da morte, ele viu sua vida toda passar como num filme noir diante de si. Relembrou dos inúmeros relacionamentos fugazes e fortuitos que teve ao longo da vida, dos tantos corpos que já partilharam de sua mais profunda intimidade e que ao mesmo tempo não partilharam intimidade alguma, porque ele sempre conseguiu esconder-se atrás de seus personagens e sempre conseguiu entrar e sair das vidas sem qualquer remorso ou culpa. Na grande tela que se abria em sua mente via desfilarem os mais variados tipos que já estiveram sob seus lençóis e percebia que em suas relações havia um padrão funesto de repetição, mudavam os atores, mas a trama era a mesma: trocas de olhares, umas frases de efeito soltas e certo charme superficial para seduzir, alguns toques sem carinho, carícias frias, suspiros torpes, espasmos fracos e a saída silenciosa sem olhar para trás. O resto era apenas vazio. Não havia nada antes e a regra era não haver nada depois. Era seguro assim. Riscos ele nunca quis correr. Não esses de ordem afetiva ou sentimental. Corria outros, talvez piores. E era doloroso perceber isso da forma como percebia naquele momento, parado e desprotegido em frente ao espelho.

Embora errático, tornara-se menos inconsequente com o passar dos anos. Havia ficado mais seletivo, mais exigente e mais emocionalmente incompetente também. Incompetente para uma porção de coisas que foram simples e claras, provavelmente porque irrefletidas e porque a juventude traz consigo um sabor um tanto soberbo de saber-se onde, quando e quem. Isso confere grande dose coragem e capacidades de enfrentamento, ao ponto dos sujeitos acreditarem que são capazes de tudo. Ou quase. Talvez seja por isso que realmente consigam, porque não tem consciência de suas limitações. A maior condenação para aquele homem em frente ao espelho era essa: ele era consciente de suas incapacidades. Para ele não eram mais permitidos esses pequenos luxos e não lhe era mais concedido o direito de não saber. Havia sido expulso para sempre do paraíso por haver mordido a maçã proibida do conhecimento. E com essa nova realidade lhe foi imputada toda a carga de ser adulto, o que ele havia tentado negar a vida toda.

Entrara numa espiral de fumaça, vertiginosa e sem volta. Algo incerto e profundo estava acontecendo. Tivera um sonho na noite anterior. Acordara suado e sobressaltado. Nesse sonho, um homem elegante, alto, trajando um terno de linho branco e um chapéu panamá, pele morena, barba clara, olhos de um azul celestial e cabelos cacheados suavemente caídos sobre a nuca conduzia-o pela mão por um túnel. O homem mostrava-lhe o futuro em imagens holográficas gigantescas e alertava para os perigos das armadilhas que ele mesmo criou. Mesmo em sonhos ele era cético. Há tempos perdera a ingenuidade em relação ao seu destino e desaprendera essas coisas simples e cotidianas, como crer no desconhecido, acreditar em sonhos sem explicação psicanalítica, rogar aos deuses antes de dormir, ancorar seu anjo, prostrar-se frente a um altar, ou mesmo aos pés da cama, à noite, vestindo pijama de flanela xadrez, e oferecer seu corpo, sua alma e sua oração a um Deus. E vivera bem dessa forma. Até passar dos quarenta anos e após uma noite mal dormida sentir-se um miserável em frente ao espelho. Pensou em ajoelhar-se e rezar, pensou em preparar um banho com sal grosso e sete ervas, pensou em calmantes, pensou em ligar para seu analista. Mas tudo seria em vão. Sua mente era povoada pela lembrança do homem do sonho dizendo, com ar profético e hálito fresco de anis, palavras que ele não conseguia assimilar porque se detivera nos sapatos reluzentes de bicos finos que usava. Não eram dele ainda as palavras do homem de grandes e brilhantes olhos azuis da noite anterior.

A imagem mais marcante que surgia era a de uma ampulheta colossal no fim do grande túnel de hologramas, cuja areia esgotando grão a grão chegava perto do fim. A sensação de proximidade do fim trazia um caótico encadeamento de imagens dissociadas: o ponteiro lento dos segundos do relógio na parede da repartição cinzenta onde passava oito angustiantes horas de seus dias, o relógio de corda de seu avô tiquetaqueando em seu pulso no ritmo de seu coração arfante, o relógio cuco na parede, herança de sua avó, esganiçado avisando a hora avançada, as doze badaladas do relógio de pêndulo sinistro no canto do grande salão com vitrais iguais aos da Catedral de Notre Dame, seu rosto cansado em frente ao espelho, a garrafa de gim quase vazia da noite anterior, a voz de Piazzolla ainda retumbando na vitrola desligada “¡Loco! ¡Loco! ¡Loco! / Como un acróbata demente saltaré, / sobre el abismo de tu escote hasta sentir  / que enloquecí tu corazón de libertad”. Ressaca existencial como se tivesse bebido tantas doses de tantas vidas diferentes que seu organismo entrou em colapso catártico.

O homem do sonho dizia-lhe, olhando-o profundamente nos olhos, que havia pedido ao “Juiz” que seu tempo fosse dilatado, mas que ele havia desperdiçado sua vida e que talvez ninguém pudesse salvá-lo. O homem fazia as terríveis revelações caminhando ao redor dele, com os braços cruzados para trás, enigmático, sereno e luminoso como a lua. De repente ambos estavam caminhando lado a lado por uma avenida movimentada, em meio aos carros e pessoas apressadas. Ele estava descalço e sem camisa e parecia que não era visto por ninguém. Enquanto isso, o homem continuava a fazer-lhe revelações, mas ele não conseguia ouvir por causa do barulho dos carros e máquinas. Sabia somente que ele dizia que seu tempo era curto e que ele tinha que operar mudanças radicais. Assustado e atordoado, ele olhou para o céu, buscando fôlego e quando se voltou para o lado, não viu mais o homem. Ele estava sozinho e perdido em uma avenida movimentada qualquer de uma cidade que desconhecia e que poderia ser qualquer lugar. Nada o ajudava a identificar onde estava. As pessoas eram todas iguais, não conseguia ver rosto algum, os carros rasgavam velozes a avenida, via as fachadas dos prédios, mas não conseguia identificar nada nitidamente.  Olhou para o chão e percebeu seus pés brancos nus contra o asfalto, subiu os olhos e viu sua pernas nuas, seu tórax nu, seu sexo descoberto. Mas não sentiu vergonha ou frio, apenas desamparo. Tentava gritar, pedir ajuda, porém sua voz não saia da garganta. Desesperado começou a correr entre as pessoas que iam e vinham e pareciam não ver ou não se importarem com o homem nu que corria. Foi nesse momento que acordou.

Suado, sobressaltado e sentindo a presença do homem do sonho, com seu cheiro incensado e hálito fresco, sentou-se na cama. Foi então que levantou, bebeu alguns goles de gim que restaram no fundo da garrafa e tentou recobrar o fôlego em frente ao espelho, apoiando-se na pia. Sua vida passava como um filme do qual ele não participara. Lembrou-se de sua infância. Fechou os olhos e espirou profundamente três vezes. Quando tornou a abri-los percebeu que sua infância era algo longínquo e inatingível, da mesma forma que seu futuro. Quanto mais olhava para si, mais percebia o quanto era tarde. Sabia que precisava agir, que não era mais possível ficar inerte e lamentar. E sabia que a decisão precisava ser tomada naquele momento, naquele minúsculo e úmido cubículo azulejado, daquela imagem amargurada refletida no espelho. Foi então que decidiu: a partir daquele dia, retiraria da casa para sempre qualquer objeto que refletisse sua imagem. E num soco repleto de toda raiva e pavor que sentia quebrou o pequeno espelho que tinha diante de si.