sexta-feira, 5 de outubro de 2012

COFFEE DATE

Leonid Afremov (1955, Belarus)


“Que seja presença e companhia, o relacionamento bom: pois a solidão é um campo demasiado vasto para ser atravessado a sós.”

(Lya Luft. “Pensar é Transgredir”, Ed. Record, pág. 35)


Quarta-feira, 15h. Depois de pensar muito, ponderar infinitamente todas as alternativas possíveis e me boicotar como de costume, joguei para o lado a manta de patchwork colorida com a qual cubro minhas pernas para me proteger do mundo, desliguei a TV e juntei do chão as embalagens de chocolates belgas, comprados por uma bagatela e com muito esforço no “mercado do negro”, um amigo muambeiro que contrabandeia delicadezas importadas. Eu estava em meu ninho. Esse era meu castelo secreto, meu mundo particular, o único lugar onde eu poderia ser eu mesma e esquecer as convenções sociais. Em meu mundo particular eu posso ser contraventora, receptadora, gorda, feia, não me depilar e não tomar banho um fim de semana inteiro. Posso ser neurótica, cheia de manias, desenvolver fluidamente meu transtorno obsessivo compulsivo, comer gordura saturada e beber a quantidade de unidades alcoólicas que quiser, ouvindo um bolero bem dor de cotovelo na voz rouca de Waleska ou dançando estranhamente um folk ucraniano. Meu castelo é meu lugar no mundo. Tenho minhas lembranças, minha música, minha máquina de escrever, meus livros. E mesmo assim algo sempre falta. Será que nunca terei um mundo perfeito? Que maldição é essa de desejar infinita e indefinidamente tudo aquilo que não tenho até conquistar e automaticamente eleger outro objeto obscuro de desejo?

Como sempre me falta algo, fui em busca de saciar minha sede de viver. Levantei-me e fui vestir a roupa camuflada de minha personagem. Escolhi com cuidado algo que desse aquela levantadinha no busto irremediavelmente flácido e na bunda cada dia mais precária e que não mostrasse minha barriga protuberante, resultado de madrugadas inteiras beliscando guloseimas e chorando com filmes românticos dos anos 50. Passei pelo insuportavelmente doloroso processo de depilação sem nenhuma glória. Quem inventou que precisamos de depilação devia nos odiar profundamente. Misoginia! Mesmo ficando com as virilhas cheias vergões de tão irritadas e as canelas cravejadas de pontos vermelhos, não tinha condições de bancar a feminista peluda revolucionária das Barricadas de Paris de 1968 porque corria o risco de causar a pior das impressões. Então, respirei fundo me joguei no “Dia de Mulherzinha”.

Tomei um banho demorado, cuidando para passar a esponja em todos os recônditos que nunca toco ou sequer lembro que existem. Para que lembrar dessas coisas? Até descobri que tenho um sinal bonitinho que nem sei se é de nascença ou não. Uma manchinha caramelo em formato que lembra um coração, ou uma pera, ou uma coxinha de frango, ou nada disso. Aquele banho incomummente demorado foi um carinho do tipo que há tempos eu não recebia. Tive vontade de permanecer indefinidamente sob o chuveiro morno massageando meus ombros e ficar acariciando-me delicadamente com a esponja. Como posso viver tantos anos neste corpo que não conheço? Como posso não visitar-me para me fazer feliz? Tive vontade de se generosa comigo, vestir o pijama novamente, sentar em minha poltrona de leitura e votar a ler Jane Austen depois de mais de vinte anos. Mas não, não podia, eu tinha um compromisso ao qual não poderia faltar, custasse o que custasse. Simone de Beauvoir, protegei-me! 

Depois de me besuntar de creme hidratante canforado para diminuir a irritação da pele, vesti meu roupão e fiquei um tempo vendo uma pilha de roupas sobre a cama. Bancaria a donzela vitoriana, pura e casta, com uma blusinha branca de rendas e brocados? A femme fatale, agressiva e independente, com um vestido rubro e salto alto de vinil? A urbanóide descolada de jeans estonado, T-Shirt monocromática, lenço palestino no pescoço e óculos de grau? Ou sairia na rua sendo eu mesma, de cara limpa, “cabelos brancos de melancólica Rapunzel1, como diria Lya Luft, castamente presos num coque e nenhuma graça no olhar? Bullshit! Decidi ir de cara limpa, sendo eu mesma. Não, não era uma boa alternativa ser eu mesma. Tá difícil ser eu sem reclamar de tudo2. E cadê meu estojo de maquiagens? Não sabia nem como segurar um pincel. Será que dava tempo de achar algum tutorial na internet ensinando o passo a passo do truque para ser outra?

Maldita hora que passei meu número de telefone a um ilustre desconhecido que me abordou em público. Na verdade eu só queria contrariar todas as estatísticas e superstições que dizem que não seria na fila do supermercado, numa tarde chuvosa de sábado, quando eu estava com o pior moletom, a pior cara e o pior humor, que aconteceria algo como “uma possibilidade”. Além disso, porque essa abordagem mexeu com minha vaidade. E admito que depois de tanto tempo sozinha, pensar que poderia ter um encontro me soou atraente. Agora, porém, amargo a séria possibilidade de ver o processo de rejeição longo e doloroso do passado se repetir mais uma vez.

Quando recebi a ligação, inesperadamente, no domingo após o encontro casual no supermercado, fui invadida por uma breve alegria. Que bonitinho ele me ligar, pensei. Logo depois bateu o pavor. O que ele vai pensar de mim se eu aceitar? O que ele vai pensar de mim se eu não aceitar? Mas se ele ligou é porque deve estar pensando que eu sou fácil, e eu sou mesmo. Se eu não aceitar, ele vai pensar que eu sou fácil e me faço de difícil, o que também seria verdade, porque eu estaria fazendo gênero. Não estou em condições emocionais de dizer não a um encontro que nem precisei batalhar muito para conseguir. Não que eu batalhe por encontros normalmente. E não que me venham facilmente, por outro lado. Encontros simplesmente não acontecem comigo. Fáceis ou difíceis, eu nunca estou muito disposta, mesmo que esteja eternamente disponível.

Enquanto me vestia ritualisticamente pensava no ritual do encontro. Eu já conheço os passos dessa estrada, sei que não vai dar em nada3. Eu chegaria, sentaria, esperaria. Ou ele chegaria, sentaria, esperaria. No primeiro caso eu estaria com a cara de tédio que me é peculiar em casos de esperas ásperas. No segundo caso, chegaria ofegante, escabelada e com o rosto suado, falando sem parar e me desculpando histericamente por ter me atrasado. Não sei o que causaria a pior impressão. Eu sempre acho que estou causando a pior das impressões. Mas tudo bem, era melhor não estar suando como um operário de senegalês de minas de carvão. Por isso apurei o passo para terminar logo de vestir meu paramento e, bélica, ir para o local marcado.

Aceitei o convite e escolhi o dia e o local onde nos encontraríamos. Queria um local público, neutro e que não me tirasse de minha zona de conforto. Que outro lugar poderia ser? Claro que foi em uma confeitaria. Só açúcar e café forte me reconfortariam e me acalmariam, já que eu não podia fumar mais em locais fechados, e mesmo que pudesse não o faria para não causar uma impressão ainda mais negativa. Aliás, odeio essas campanhas antitabagistas. Não porque sou fumante, mas porque sou livre. Tenho o direito de escolher o que fazer da minha própria vida e se escolher morrer um pouco a cada tragada, a escolha é minha. Suicídio é um ato de liberdade. Mas querem que sejamos boas moças, puras e castas vitorianas. Fucking’s health moralists!

Cheguei e procurei uma mesa de canto, próxima a uma grande janela que dava a um parque com ipês impressionantemente coloridos. Sentei-me de frente para o parque, pedi um cappuccino grande, uma generosa fatia de cheese cake e tentei me acalmar. Mas dei-me conta que estava de costas para a entrada e assim não veria o rapaz do supermercado chegar. Espero que ele me reconheça facilmente, pensei. Eu estava sem óculos e sem lentes de contato naquele dia no supermercado e não vi direito o rosto dele. Também não faria diferença, eu aceitaria de qualquer forma a abordagem, porque meu narcisismo sempre me faz cometer esse tipo de loucura de dar abertura às pessoas só porque elas olharam para mim. Ou talvez não seja meu narcisismo, mas minha profunda baixa autoestima.  Mas não queria pensar nisso. Mudei de lugar e sentei de frente para a porta. Mas não era um bom lugar. Eu pareceria muito desesperada e ansiosa, espreitando a entrada. Além disso, a luz que vinha de fora era péssima para minha pele, porque mostrava todas as manchas e rugas que eu já tinha tentado esconder com base líquida e pó compacto. Sentei em outra mesa, onde a luz era mais fraca. Puxei uma cadeira lateral, onde poderia ver a entrada e o parque colorido no fim da tarde e de onde poderia fingir distração e tranquilidade vendo as pessoas praticarem esportes (que me cansavam só de vê-los de longe), enquanto folhava uma revista de fofocas sem lê-la. Finalmente o lugar escolhido estava bom. Ajeitei o cabelo atrás da orelha, alinhei a coluna e joguei os ombros para trás (ando arqueada como uma camponesa eslovena sexagenária), cruzei as pernas, meio sexy, mas contida. Posicionei o café na diagonal à minha esquerda, a fatia de torta na diagonal à minha direita, a revista bem à minha frente, acima dela o açucareiro, o adoçante, os guardanapos e a placa com o número da mesa, milimetricamente alinhados.

Dezesseis era o número da mesa. A soma dava sete. Sete é o número da perfeição, dizem. Eu nasci no dia dezesseis, que é o número da mesa, e cuja soma com mês e ano de nascimento também dá sete. A soma dos quatro últimos números do telefone do rapaz do supermercado dá trinta e quatro, portanto, sete. Moro num prédio cujo número é 2500, que também dá sete. Serão sinais? Tenho que parar com essas paranoias obsessivas com numerologia. Isso já me rendeu sete anos de azar, catorze anos de análise e sete meses numa clínica para dependentes químicos.

16h27min. Ele estava atrasado. E novamente a soma dos números dava sete, mierda! Eu acho que ele não vem, ele não vem não, ou será que virá?4 Eu já havia bebido o cappuccino, já havia folhado duas mil setecentas e vinte e cinco vezes a mesma revista, tamborilava na mesa as unhas recém-pintadas de rosa bem clarinho.  Já tinha perdido a pose e segurava o queixo com a outra mão, com a coluna virada num “U”, olhando para o nada no parque lá longe e os pés cruzados sob a cadeira, prova que estava louca para sair correndo dali. Então, ele entrou. Abriu um sorriso franco e me desarmou. Estendi a mão, polida e pudica, e ele inclinou-se para beijar-me. Sua barba roçou levemente o lóbulo da minha orelha e tive um arrepio. Oh, Deus, pensei, te segura. Talvez ele tenha pedido desculpas pelo atraso, mas eu estava tão desconcertada com a barba dele roçando em mim e com aquele sorriso branco no meio daqueles pelos negros que fiquei surda por alguns momentos.

Ele não é um homem bonito. Seus olhos são juntos demais, sobrancelhas negras bem marcadas, nariz adunco, pele meio macerada, cabelos finos, desgrenhados e ressecados. As mãos são bonitas, fortes e com juntas salientes. Ele é alto, magro, meio desengonçado. Pareceu-me ser até meio manco, mas talvez fosse constrangimento de atravessar o longo salão sendo observado detidamente por mim, sentada na mesa do fundo. Acho que ele chegou a pensar que eu olharia para ele quando chegasse à beira da mesa e diria: “Certo, vire-se. Ok, sente-se.” Confesso que pensei em fazer isso, lançando um olhar analítico-megera, meio Anna Wintour, mordendo a ponta dos óculos, erguendo uma das sobrancelhas e acariciando o queixo. Obviamente não fiz, embora tenha realmente realizado uma avaliação preliminar do rapaz, da mesma forma que certamente fui analisada - rogo que positivamente.

Conversamos longamente e nem percebemos a hora passar. Ele contou-me sobre suas andanças pelo mundo, seu cotidiano, família, amigos, gostos diversos. Chegou a fazer certa autopromoção, supervalorizando seus feitos mais simples, mas tentei exercitar minha condescendência em primeiros encontros. Ele é tímido, comedido, mas bem articulado. Parecia que estávamos compassados, cumprindo a dança da conquista, respondendo mutuamente ao questionário básico da entrevista para ocupar a vaga disponível. Tentei falar brandamente o que penso, sem me mostrar muito e sem me boicotar. Sempre falo bobagens quando estou tensa e primeiros encontros são polos de tensão. Acho que por isso que não tenho segundos encontros. Ponto para mim. Comportei-me perfeitamente, acho. Sem piadas de humor negro, politicamente incorretas, preconceituosas e principalmente autodestrutivas.

Entardeceu, o sol se pôs, a confeitaria fechou. Quando olhamos para o lado, todas as mesas estavam vazias e as cadeiras começavam a ser empilhadas sobre elas para que a limpeza do salão começasse. Levantamos e nos dirigimos à porta. Momento constrangedor. Eu não sabia o que dizer, o que sugerir, nem sei se queria fazer algo depois. Um café no fim da tarde nem é propriamente um encontro. É um café no fim da tarde. Encontro seria se ele me levasse para jantar a luz de velas em um restaurante francês ou se fizéssemos um passeio em algum parque no domingo, com direito a piquenique com vinho e frutas. Mas era apenas um café. No fim da tarde. E eu estava preparada para a constrangedora despedida na beira da calçada. Eu vou para um lado e ele diz que tem que ir para outro, mesmo que fosse para o mesmo lado, só para não me acompanhar. Eu estava acostumada e havia me tornado expert em me desvencilhar de despedidas constrangedoras no fim de encontros desastrosos.

E foi o que aconteceu. Meio desajeitados - ele muito mais que eu – nos despedimos próximos ao meio-fio. Deixei cair no chão os óculos de grau quando tentava colocá-los na bolsa. Gentilmente ele curvou-se para juntá-los. Cena clássica: eu também me curvei e dei-lhe um encontrão fazendo com que derrubasse o livro que estava lendo. Fausto, de Goethe. Comentei que meu gato chama-se Fausto em homenagem à Goethe. Que queria chamá-lo de Mefistófeles, mas ele tem mais cara de Fausto mesmo. Ele riu. Não sei se foi positivo ou negativo o riso. Hesitei. Senti-me ridícula. Ele deve ter pensado que nunca li nada de Goethe. Para evitar prolongar o momento constrangedor, tratei de estender a mão para despedir-me com um sorriso amarelo e um “até mais, então”. Ele pareceu surpreso com minha reação. Despediu-se e perguntou se poderia ligar “um dia desses” para marcarmos um jantar. Sei, um dia desses é nunca mais, ainda pensei na hora. Vontade de dizer: “Ok, sem prêmios de consolação. I will survive.” Mesmo assim disse a ele que sim, que ele poderia ligar quando quisesse, e poderíamos combinar uma noite em que eu estivesse livre e que meu único dependente é Fausto e que ele é mais independente que eu. Ele insistiu perguntando se poderia ligar QUANDO quisesse. Franzi a testa, meio esquiva, e novamente disse que sim, que poderia ligar.

Como eu já esperava, ele foi para um lado e eu para outro. Mas fui eu quem perguntou para que lado ele seguiria. Coincidentemente ele ia para o lado que eu deveria ir e, sendo assim, a regra mandava que eu dissesse obrigatoriamente que ia para o lado oposto ao da minha casa. Dobrei a esquina e uma chuva fina chegou para lavar minha alma de mais um encontro frustrado. Minhas sapatilhas vermelhas de pano ficaram pontilhadas de chuva e contra o calçamento cinzento do passeio formavam uma composição bonita, meio melancólica, como eu estava. Apurei o passo me protegendo sob as marquises. Parei numa esquina para atravessar a rua e ouvi o celular tocando dentro da bolsa. Remexi seu interior procurando-o. Eu nunca conseguia encontrá-lo a tempo de atender da primeira vez. Quando o encontrei a ligação já havia sido encerrada. Guardei-o sem ver quem ligou. Pouca coisa me interessava àquela hora. O telefone tocou novamente. Eu estava no meio da travessia da rua e atendi às pressas.

- Alô? Oi? Sou eu...
- Oi...É...Tudo...Tudo bem? Que surpresa...
- Você disse que eu poderia ligar QUANDO quisesse, então liguei.
- Pois é...Rápido, né?
- É...Se você estiver ocupada tudo bem...
- Não, não...Estou somente mexendo no rabo e fazendo um castelo de areia. Mas com essa chuva acho que vou pegar meu cubo mágico da bolsa...
- O quê?
- Nada não, nada não...Então...Fala aí...
- Eu liguei porque você disse que eu podia ligar quando quisesse para convidá-la para jantar. Pensei que um encontro só é de verdade quando é um jantar ou algo assim tipo um piquenique no parque com direito a vinho e frutas. Mas com essa chuva...Café no fim da tarde não é um encontro e não dá para fazer um piquenique agora. É...O que quero dizer é...quero saber se você está ocupada para o jantar hoje, agora. E quero saber se Fausto sobreviverá mais alguma horas sem você?
- Não...Quer dizer, sim...Sim e não. Eu estou livre para o jantar, sim. E não, não estou ocupada. E fausto sobreviverá melhor sem mim que comigo. Onde te encontro?
- Vire-se e olhe atrás de você.

Eu virei. Uma mão segurando a bolsa, a outra puxando a barra molhada da calça e o celular preso entre a orelha e o ombro. No movimento brusco de virar-me derrubei o celular, que se partiu em três partes numa poça d’água.  Sorrimos, nos ajoelhamos e juntamos os pedaços do aparelho. Peguei o exemplar de Fausto que ele carregava e coloquei-o na bolsa para não molhar ainda mais. Continuamos nos esgueirando da chuva sem rumo certo. Vez ou outra ele me abraçava para me proteger e me puxava contra si para evitar que eu pisasse em alguma poça. 

Naquela noite eu tirei a barriga da miséria.

Imagem gentilmente cedida por Leonardo Cassimiro. Arquivo pessoal.

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1 Pensar é Transgredir. Lya Luft, pág. 30.
2 “Nuvem Negra”, Gal Costa.
3 “Retrato em Branco e Preto”, Chico Buarque.
4 “Tudo Pode Mudar”, Metrô.