terça-feira, 29 de janeiro de 2013

SOBRE CINZAS


Fotografia de João Machado - Guarulhos- SP ( olhares.uol.com.br/joaomachadobahia)

É nas horas de vulnerabilidade que vemos nossa verdadeira face. A face feia de nossa finitude, de nossa incapacidade, de nossa impotência e de nossa limitação.

Tentei fugir de todas as formas deste assunto. Relutei o quanto pude me expor ao sofrimento de reviver minhas tristezas e meus desastres pessoais através da aproximação e do reconhecimento dos sofrimentos alheios. Tentei não mexer ainda mais numa ferida que, embora não marque minha carne propriamente, dói fundo em mim como se fosse minha.  Queria poder recobrar minhas forças em silêncio meditativo, porque acho que é o mais digno a ser feito numa hora de burburinho midiático quase histérico. Por respeito a mim e principalmente por respeito a todos os diretamente afetados. Tentei não expor ainda mais uma tragédia que ainda pulsa sangrenta em nossa memória, ampliada pela lente de minhas perdas pessoais. Não queria explorar de forma sensacionalista o sofrimento e a comoção de centenas de pessoas. Sofrimento que humildemente assumo meu neste momento.

Temia ser mais um a poluir as vidas das pessoas com relatos inflamados e empapuçados de sentimentos muito particulares. Mas não consigo deixar de falar sobre isso. Este é o assunto em todas as rodas de conversa pelas ruas, em todos os meios de comunicação, em todas as redes sociais. E o tema bate à porta da minha memória o tempo todo desde o último domingo.

Não evitei até agora falar exaustivamente sobre essas dores por covardia ou algo parecido. Nada disso. Evitei porque queria decantar minhas aflições afloradas. Porque estamos todos ainda sob efeito de intensas e recentes emoções. Porque todo mundo se sente um pouco vítima e um pouco sobrevivente, um pouco familiar de cada vítima neste momento.

Era para ser mais um domingo comum, hiperbolicamente ensolarado de Janeiro. Era para ser mais um domingo de bermudas e chinelos, de churrasco com a família, chimarrão com os amigos no calçadão, de choppinho no fim da tarde, de caminhada no parque. Era para ser um domingo de preguiça e ressaca da festa da noite anterior. Mas não foi assim que aconteceu. O domingo amanheceu com o céu manchado por nuvens negras de fumaça tóxica e um cheiro de desespero invadiu nossas casas. Um silêncio desolador pairou sobre todos nós. E esse silêncio era rasgado por sirenes frenéticas e choros desesperançados.

Fui solapado pelos telefonemas aflitos de amigos e familiares estupefatos. Minha preguiça dominical foi abruptamente rompida por uma enxurrada de informações na TV e na internet. Com a voz ainda em falsete de sono eu dizia, atabalhoado, que mal sabia o que estava acontecendo e que dormira tão profundamente que não atenderia facilmente qualquer telefonema antes das nove e meia da manhã. Parecia que La Doña Muerte havia entrado em meu quarto sem pedir licença e destruído para sempre a minha paz. Que direito ela tinha de me ceifar a tranquilidade de um domingo qualquer? Que direitos quem quer que fosse tinha de dilacerar milhares de corações, ceifar centenas de vidas, desconsolar famílias inteiras?

Esse domingo marcará injusta e violentamente nossas vidas, direta ou indiretamente, para sempre. Porque não existe forma de não nos afetarmos com o que aconteceu aqui, em nosso quintal, não importa se moramos em Santa Maria, Bogotá ou Tóquio. Nesse domingo, todos estávamos no mesmo lugar. Porque não dá para fechar os olhos para as lágrimas do vizinho, fechar os ouvidos para o choro ruidoso do amigo, do pai ou da mãe, negar a boca para uma palavra de consolo a um desconhecido devastado no meio-fio da calçada.

Tenho crenças religiosas fortes, mas não gosto de dar explicações religiosas para os fatos. Acho que Deus - quer você acredite Nele ou quer que Ele exista ou não - não tem nada a ver com isso. Não foi Ele quem condenou pessoas a morte. Nem o diabo, como muitos insistem ignorantemente em afirmar. Não foi Ele quem decidiu que haveria uma tragédia com mais de duzentas e trinta mortes. Não foi Ele quem decidiu “matear com a gurizada no céu”, como alguns dizem para amainar a dor na alma que não cessa. Não será Ele que vai consolar as vítimas, tampouco seus familiares. Entretanto, isso que digo não tem absolutamente nenhuma relação com falta de fé. Pelo contrário. Acredito firmemente que fé é fundamental. É nela que buscamos forças, é através dela que nos reconfortamos.

Compreendo que para muitos “Deus” é a representação de sua fé. E digo que tudo bem se acreditarem que “foi Deus que quis assim”. Cada um encontra sua forma particular de dar sentido ao seu mundo. Porém, ainda prefiro acreditar que Deus não “existe” para isso. A função dele em nossas vidas é outra. Mas gostaria de falar sobre o que entendo por fé e sobre a fé que vejo pelas ruas nestes dias estranhamente silenciosos. Uma fé fundamental para que continuemos existindo neste mundo de forma subjetiva, porque para existirmos de forma objetiva não precisamos de quase nada além de um pouco de água e alguma comida. A fé a que me refiro é uma fé pura e simples nos atributos de humanidade que os seres humanos - suspeito que nem todos - possuem. Uma fé que nos conforta quando enfrentamos duramente a realidade de não termos mais nossos queridos entre nós. É a fé mais humana e sincera no próximo e em nossa capacidade se superarmos a nós próprios. Não é uma fé metafísica, mística, mágica ou espiritual. É sim aquela fé na existência de alguém que estenda a mão quando estamos sofrendo, aquela fé que nos impele a oferecer um copo d’água, um ombro, um abraço, cinco minutos de nosso tempo escasso para ouvir em silêncio o outro chorar. É a fé naquelas pessoas que arriscaram suas próprias vidas para salvar as vidas de desconhecidos. É a fé no amparo fraterno, no acolhimento sincero, na solidariedade sem qualquer retorno ou recompensa.

Acalma meu coração ver a união das pessoas nesses momentos de sofrimento. Vi diversas manifestações de solidariedade e de humanidade, em meio a tanta violência e atrocidade, em meio a tanta negligência e omissão. Porque é nessas horas de vulnerabilidade que vemos nossa verdadeira face. A face feia de nossa finitude, de nossa incapacidade, de nossa impotência e de nossa limitação. É quando o outro sofre que vemos nossa própria imagem refletida. E muitas vezes é nossa pior face. Vendo o sofrimento alheio, nos deparamos com os nossos e vemos que também podemos sofrer tanto quanto o outro ou mais.

É quando sofremos extremamente, e achamos que não vamos ter forças para superar a dor incrustada em nossos corações, que emerge nossa verdadeira essência humana. Mostramo-nos mais verdadeiros quando emergimos de nossos escombros. Não tal qual Fênix, a deusa pássaro da mitologia grega que morria e renascia de suas próprias cinzas, porque não renascemos. Apenas continuamos vivos, com todas as cicatrizes que nos competem. E de uma forma ou de outra, seguimos em frente. E que bom que às vezes surgem outros seres que nos estendem a mão para que juntos sobrevivamos aos nossos desastres. 

Montagem com Fotografias de João Machado - Guarulhos- SP ( olhares.uol.com.br/joaomachadobahia

sábado, 5 de janeiro de 2013

O PALHAÇO MAIS TRISTE DO MUNDO



 Andrew Salgado, “If One Man’s Joy is Another Man’s Sadness” (2012). Courtesy Beers.Lambert


“Voltei pra me certificar
Que nunca mais vais voltar
Vais voltar, vais voltar”
(Bastidores – Chico Buarque)



Tu sabes como é quando ficamos exauridos? É, exauri. Por isso estou aqui, olhando minha cara no espelho mais uma vez. Esfrego um lenço úmido para tirar a maquiagem, mas ela não sai, apenas desenha manchas disformes e coloridas em minhas faces sem expressão alguma. Minha cara é um grande borrão agora. Todas as cores misturadas, sem qualquer lógica, mas com todo sentido. Somente agora vejo que o verdadeiro sentido de minha existência está expresso nesses borrões que desenhei querendo apagar minha própria história de palhaço tatuada para sempre em mim.

Na verdade não vejo sentido no que tenho sentido. E nem sei se deveria ter algum sentido. Talvez não haja sentido no que não é sentido. Ou talvez todo sentido da vida esteja em analisa-la sem procurar sentido. O que eu estou dizendo agora? Deveria suspender o gim. Não! Somente ele me compreende. Por isso ergo o gim! Um brinde, respeitável público! Um brinde ao mais infeliz de todos os palhaços! Não estou referindo-me a ti. Tampouco falo contigo. Estou falando sobre este palhaço besta que vejo no espelho agora. Sim, sou eu mesmo. São para mim os aplausos. São para ti as lágrimas que luto para não derramar cada vez que te vais. Pode ser para nós o brinde? Não, nunca poderá. O brinde é também todo meu.

Tranquei a porta do camarim, fechei as janelas e chorei, chorei, até ficar com dó de mim*. Quero que os aplausos cessem. Quero que as vozes cessem. Quero que as palavras cessem. Quero que os ruídos, interiores e exteriores, silenciem. Existem muitos ruídos aqui dentro de mim. Desejei (e como desejei!) ter junto a ti silêncios povoados de significados indizíveis, aqueles momentos em que os silêncios seriam maculados por palavras. Ficaríamos quietos em nós mesmos e um no outro, enquanto veríamos o tempo rasgar vagarosamente nossas vidas, delegando ao justo esquecimento nossos passados.

Mas silêncios são complexos. Para distinguirmos os férteis dos inférteis é necessário que conheçamos ao outro intimamente. Quanto a nós, nunca chegamos a nos conhecer. Como diz a música, “existe um preconceito muito forte separando você de mim**. Mas não me vitimizo. A culpa foi minha também. Nunca consegui ultrapassar o abismo dos teus olhos esverdeados e brilhantes. Da mesma forma, nunca compreendeste o que calou minha boca seca.

Não esperei grandes demonstrações tuas. Queria as “minimalezas”, as sutilezas, as gentilezas e as cotidianidades. Queria anoitecer e amanhecer contigo. E quando anoitecesse, queria apenas garantias de que amanheceríamos juntos. Queria que tivesses para onde voltar das tuas longas jornadas. Queria a certeza de que eu poderia ir e teria um porto para atracar quando voltasse. Mas sempre voltei para a casa vazia e para a cama fria.

O que precisei a vida toda - e nunca tive de ti - é presença. Nunca foi companhia o que te pedi em todos os momentos de mendicância extrema e indigna. Tampouco me satisfaziam os presentes raros que trazias de além-mar. Tu saías antes do sol nascer porque o cais é apenas uma parada provisória. E deixavas tuas migalhas sobre o criado-mudo esperando calar-me. Quanto a mim, navegar não é preciso. Viver é preciso. Mas exigir isso de ti é muito, não é mesmo? Teu espírito é elevado demais para satisfazer meus desejos tão primitivos e egomaníacos.

Disparatado da minha parte desejar que me quisesses quando estavas aqui olhando-me nos olhos, como dizias querer-me nas cartas, escritas com caligrafia impecável, que mandavas dos portos onde chegavas. Tuas cartas tinham o cheiro dos lugares por onde passavas e se eu inspirasse profundamente o papel conseguia sentir o cheiro acre das tuas mãos hábeis em iludir-me. Sabes, teve um tempo no qual eu seria capaz de identificar de onde o sujeito vinha pelo cheiro de sua bagagem. Os lugares tem cheiros característicos. Este lugar, por exemplo, cheira a mofo. Este é o seu cheiro, por mais que limpem e perfumem com flores, essências e incensos. E a casa que eu queria que fosse nossa cheira a morte, principalmente agora.

Soou a primeira campainha, preciso terminar de vestir-me. Mas não é isso que queria dizer. Minha teoria é que as cidades têm cheiros característicos e que eu consigo identificá-los porque sempre fui um andarilho atento. Pretensão minha? Talvez. Assim como foi pretensão minha achar que serias capaz de transformar nossas vidas ou que eu seria capaz de manter-te junto a mim por vontade tua. Assim como sou um astuto em identificar aromas, sou persuasivo para satisfazer minhas vontades. Eu quis que ficasses porque cansei de ser um cavaleiro andante. Talvez agora tenha conseguido fazer-te permanecer, não? Mas agora não quero que fiques. Acho que teu lugar é o mundo, tua casa são os sete mares. Por isso quero despedir-me definitiva e dignamente de ti.

Defendo-me de ti mostrando-me a ti. Soou a segunda campainha. Hora de entrar no palco mais uma vez. Preciso da peruca colorida, do meu nariz e do sorriso falso. É triste ser reduzido a um personagem, porém esses elementos são minha marca e jamais serei alguém sem eles. Agora eu sou o personagem, a máscara grudou definitivamente em minha cara e devo aceitá-la. Logo precisarei retornar ao que chamamos precariamente de lar para encontrar-te, meu querido. Preciso limpar as marcas do nosso último encontro, recolher os cacos espalhados pelos cantos, arejar e incensar todos os cômodos para as boas energias entrarem, dar-te um beijo de despedida na testa e após carregar até o porto a arca onde o teu corpo que um dia quis meu e jogá-la ao mar.


* Trecho da música Bastidores – Chico Buarque de Holanda
** Trecho da música Preconceiro – Antonio Maria e Fernando Lobo