sábado, 30 de março de 2013

BATE OUTRA VEZ


Goni Montes - ilustração



Não foi a esperança em meu coração, como na música, que bateu outra vez. Pela fresta eu vi que era ela quem batia novamente à minha porta. Depois de tanto tempo, só não esqueci seu rosto porque ainda guardava um retrato seu na carteira. Essa imagem eu capturei no primeiro e único encontro que tivemos, até esse momento em que ela invadiu novamente minha vida sem ser convidada. Queria levar comigo uma lembrança dela, como se fosse uma parte de sua alma que me acompanhasse para sempre. Por isso roubei-lhe aquele segundo e congelei-o em minhas retinas com auxílio da minha Carl Zeiss. Como na música, fotografei-a com minha rolleiflex e revelou-se sua enorme ingratidão. Não foi assim romântico como cantado por Tom Jobim. Estava com minha máquina fotográfica, que não é rolleiflex e quando ela não percebia, registrei-a num momento de distração. Ela nem deve ter percebido. Ou se percebeu, para ela tanto fez.

Revelei em casa mesmo essa fotografia. Era como se precisasse dar à luz aquele ser que criei. E pensei que poderia ser meio mórbido ou bizarro, meio como aquele “hábito” pessoas tinham de fotografar seus mortos, lá no início da fotografia, por volta do século XIX. Para aquelas pessoas era, entre outros motivos, uma forma de negar a morte e guardar recordação de seus entes queridos. Acho que queria guardá-la comigo porque no fundo sabia que ela iria embora logo depois. E ela realmente foi. Fiz várias cópias da imagem, com vários tratamentos diferentes. Nunca confessei esse meu “segredinho” a ninguém porque temia ser considerado um psicopata. E tinha mais medo de ter que concordar com as pessoas que dissessem isso. Uma das cópias era grande, coloridíssima. Pensei em colocá-la numa moldura bonita e entregar a ela de presente. As outras eram todas menores. A menor é a que carregava na carteira. Em tamanho 5 cm x 7 cm. Mas ainda assim era possível ver seus olhos tristes e aquele quase sorriso. Ela nunca sorriu abertamente. Esboçava quase-sorrisos, meio de lado, espremendo os cantos da boca. Talvez tivesse medo de ser descoberta na alegria, talvez não se sentisse digna da felicidade. Talvez nem achasse graça mesmo das minhas piadas infames sobre banalidades. Ela sempre foi séria, sisuda, preocupada, reflexiva, corroída por dúvidas existenciais neuróticas. Não era austera (adoro esse termo), era simplesmente sem senso de humor, quem sabe. Meio ríspida, beirando a agressividade, às vezes. Simples assim: Ela era seca no limiar da grosseria. 

Mas essa foto que carrego na carteira era sua marca em minha memória. De tempos em tempos eu revisitava essa imagem e as lembranças irreais que criei dela, quando procurava trocados para pagar o estacionamento, ou um café, ou para comprar chicletes ou preservativos, de madrugada, em uma loja de conveniências 24h qualquer, num dos infindáveis e infrutíferos encontros fortuitos que tive para esquecer ausências e solidões. Ela inundava minha memória nessas horas como uma onda. E depois recuava novamente, fluída e evasiva, para o esquecimento. Quase sentia remorso por não tentar mais uma vez procurá-la, por não ligar ou não mandar uma mensagem qualquer, mesmo que lá no fundo eu soubesse que ela nunca atendeu aos meus chamados porque não estava interessada em mim como eu estava interessado em nós. Eu olhava a foto para não esquecer os detalhes do seu rosto: os olhos muito escuros, pequenos, meio juntos e levemente estrábicos, o nariz que te tão pequeno parecia impossível, a boca miúda, reta, de lábios finos, incompatível com o maxilar quadrado. Seus detalhes - tão pequenos - não eram propriamente um grande feito estético. Ela não era uma mulher de close up. Devia ser vista de longe e em conjunto. Na totalidade, inacessível e distante, ela era uma mulher interessante. 

Somente depois percebi que a foto em minha carteira era uma memória distorcida da realidade. Descobri isso quando ela bateu novamente à minha porta. As pessoas mudam, eu sempre soube, mas achei que ela não mudaria. Na verdade, eu não queria que ela mudasse. Ou melhor, eu queria que ela realmente fosse aquilo que eu imaginava dela, aquilo que eu queria que ela fosse. Claro que jamais confessaria que eu queria que ela fosse o que eu imaginava dela. Apenas queria que ela fosse, espontaneamente, tudo o que eu imaginava. E ela era outra. Talvez eu também tenha me tornado outro, quando vi que ela não era nada daquilo que eu criei. E nessas horas não há nada a fazer. Ninguém é vítima, ninguém é culpado. 

Meio atabalhoado, abri a porta. Naqueles olhos negros eu ainda via a mesma moça da fotografia. Ela chegou como uma mensagem cifrada, convidando-me para jantar, como se pouca coisa ou nada tivesse acontecido. E nada aconteceu mesmo. Somente meses de absoluto silêncio, telefonemas não atendidos e mensagens não respondidas. Eu não tinha nada a perder. E suspeitava que não tinha nada a ganhar também. Entretanto, nunca dei tratos à minha intuição. Sem hesitar, aceitei o convite. Ficou sob minha responsabilidade decidir a que lugar iríamos. Acho que ela fez isso por cordialidade. Talvez por preguiça. Talvez por desinteresse, o que era mais provável, depois percebi. Pensei em um lugar neutro, nem muito impessoal, nem intimista demais, com boa comida que agradasse a todos os paladares. Gosto de culinária sofisticada, exótica, mas gosto de comidas aconchegantes e familiares. Depois de muito ponderar decidi: uma cantina italiana, minha zona de conforto. Sou inseguro e pouco criativo. Dificilmente ela não gostaria desse tipo de cozinha e eu tinha a desconfortável sensação de não poder errar em nada, de forma alguma. 

Marcado o dia, o local e o horário, esperei que o momento chegasse. Nas horas que antecederam o encontro, fiquei um pouco ansioso. Nada demais. Procurei pela casa algo para fazer, a fim de aliviar a tensão pré-encontro. Procurei nas palavras de Jack Kerouac sobre a vida de Buda algo que distraísse minha mente. Servi uma dose dupla de whisky sem gelo, mais para dispersar a atenção da expectativa - que eu criara psicoticamente - com a sensação do líquido descendo rascante pela garganta do que o efeito relaxante do álcool. Coloquei uma música, um Chico Buarque melancólico cantando Olhos nos Olhos me ardendo por dentro mais que o whisky. Sentei-me próximo à janela, esperando o tempo passar, como se ela estivesse prestes a chegar. Claro que ela não chegaria. O combinado não foi esse. Quando acertamos os detalhes de nosso encontro, dispus-me a ir buscá-la em casa, em tom cavalheiresco. Ela não aceitou. Preferiu que nos encontrássemos no restaurante no horário marcado. Disse ainda que iria em seu carro, em tom contestador como se queimasse sutiã em praça pública. Embora não seja ecológico irmos sozinhos em dois carros, não insisti. Talvez fizesse parte de sua mise-en-scène fazer a linha independente. 

Cheguei dez minutos antes do horário marcado. Cabelo penteado, barba feita, encharcado de loção, camisa alinhada, sapatos perfeitamente lustrados. Robótico e detestando tudo em mim. Como no primeiro encontro eu esperei por ela dois chopps, achei que teria uma tolerância de alguns minutos. Talvez se eu chegasse antes pareceria que sou ansioso (e eu sou!). Então, resolvi estacionar e esperar no carro ela chegar, uma vez que ainda não tinha visto seu carro estacionado em frente ao restaurante. Liguei o rádio. Olhos nos Olhos novamente. Não muito apropriado, mas deixei a música mesmo assim, batucando no volante para dispensar a tensão, que a uma hora dessas me causava taquicardia e suores frios. Fiquei pensando sobre a situação que estava vivendo naquele exato momento. E no fundo eu queria ver como ela suportaria me ver tão feliz, como na música, mesmo que eu precisasse dissimular com uma felicidade de Prozac. 

Desci do carro e acendi um cigarro. Há tempos parei de fumar, mas ainda insisto em usá-lo como bengala de determinadas situações. Na primeira tragada funda que dei senti uma leve tontura. Então vi o quão ridículo estava sendo. Apaguei-o com a ponta do sapato de couro reluzente. Acho que nunca havia lustrado tão bem um par de sapatos. Decidi entrar, para poder escolher uma mesa razoável, em local estratégico, e beber algo, como já era costumeiro, enquanto esperava ela chegar. O restaurante era pequeno, acolhedor e estava lotado. Da porta dei uma olhada geral para me certificar que ela não estaria. Então a vejo acenando para mim. Eu estava atrasado. 

Cumprimentamo-nos formalmente. A formalidade típica de quem algum dia teve alguma intimidade. Éramos dois velhos conhecidos que não se viam há muito tempo, nada mais que isso. Desculpei-me pelo atraso, mas não disse que havia chegado há quase vinte minutos. Pedi uma bebida para acompanhá-la. O que aconteceu desse momento em diante foi uma sucessão de estranhamentos e equívocos que me causaram algo entre a estupefação e a decepção, tendendo mais à segunda. É como diz uma amiga minha, citando Mario Quintana: “A esperança é um urubu pintado de verde”.

Nossa conversa esteve longe de ser fluida. Se fosse transcrita, formaria no máximo quatro laudas de frases meio desconexas que davam a impressão de serem dois monólogos distantes e ecoados. Se esses diálogos transcritos fossem o roteiro um filme, resultariam em aproximadamente cinco minutos de filmagem. Um curta-metragem. Mas na prática era como se eu fosse protagonista de um longa-metragem experimental de dezesseis horas, rodado em uma única tomada, sem cortes. Ela contou-me sem entusiasmo de seus dias, de seu trabalho, das viagens que aparentemente tinha feito sozinha, dos desencontros e da falta de comunicação e contato mais próximo com as pessoas. Engraçado que ela reclamava das outras pessoas exatamente uma postura que ela estava tendo comigo até aquele momento. Enquanto ela falava, eu pensava em outras coisas. Queria saber o que existia por trás daquele discurso que ela fazia, onde ela estava naquilo tudo, onde, detrás daqueles olhos escuros e opacos, estava aquela mulher que criei. Onde ela queria chegar com aqueles pensamentos desencontrados e incompletos?

Localizado exatamente à minha frente havia um relógio enorme, decorado em ébano e cobre. Um pêndulo dourado imponente quase me hipnotizava durante os longos silêncios que pontuaram nossa conversa, quando eu não tinha coragem de olhar para ela porque temia que saltassem da minha boca que tudo estava sendo um grande erro e que eu iria embora. Perdia-me em pensamentos, enquanto olhava os detalhes entalhados do relógio. Eram flores, pássaros, folhas e umas formas que eu não identificara se eram cobras ou dragões porque para impressioná-la havia decidido deixar os óculos no console do carro (e pouco enxergo sem eles). 

Contei-lhe também sobre meus dias, sem muito entusiasmo, por mera formalidade e para romper o silêncio constrangedor que insistia em se instaurar entre nós. Além de não haver nada muito interessante a ser contato, não tinha muito interesse em dividir minha intimidade com aquela que a cada minuto que passava se tornava mais desconhecida. Tentei dar um ar mais interessante às banalidades de minha vida mediana, sem parecer que estava querendo enaltecer meus feitos, nem tampouco desmerecê-los. Acho que não consegui. Minha máscara sempre cai antes do fim do primeiro ato e acho que não sustentei o personagem. Sentia o suor escorrendo pelas minhas costas sufocadas numa camisa xadrez azul justa demais. Tinha vontade de tirar os sapatos, de desabotoar a camisa e afrouxar o cinto. Não que me sentisse tão confortável perto dela, pelo contrário, era ainda mais constrangedor estar vestindo uma camisa de força em frente à moça de rosto lavado, cabelos amarrados, sapatilhas de pano e camiseta branca em minha frente. Na chegada, quando escorreguei no ladrilho úmido do salão, brinquei que estava desacostumando a caminhar com sapatos porque só usava tênis e ela ainda se achou no direito de criticar meu esforço em arrumar-me com cuidado para encontrá-la. 

Lembro que em nosso primeiro encontro, o outro além desse, dividimos alegremente uma porção medíocre de iscas de carne com torradas num boteco qualquer, ao som de blues envolventes. Trocamos gentilezas acerca da última torrada, cristãmente partida ao meio. E rimos descontraidamente da jocosa porção servida, como rimos do chopp morno e do atendimento ruim. O que importava naquela hora era a companhia. 

De semelhante com o primeiro encontro, o segundo tinha a nossa incapacidade de nos envolvermos. Na verdade eu me envolvi depois do primeiro encontro, mas não foi recíproco. Ainda consegui manter meu equilíbrio, mesmo cortejando a insanidade. Nossa segunda noite terminaria como a primeira, talvez. Iríamos para minha casa, beberíamos um vinho ou algo assim, eu colocaria uma música, diminuiria a luz, nos aproximaríamos, eu finalmente poderia tirar os sapatos, que a essa altura pareciam instrumentos medievais de tortura, e dormiríamos juntos. Provavelmente haveria uma distância abissal entre nós. Trocaríamos carícias mornas, ela seria fria e eu mocho. No dia seguinte, recobraríamos a consciência, sentiríamos um constrangimento disfarçável, pularíamos o romântico café na cama e eu chamaria um táxi para que ela fosse embora da minha casa o mais rápido possível. Então, trocaria os lençóis, abriria todas as janelas e apagaria os vestígios dela em minha vida, sentindo algo entre solidão e repulsa. 

A cada cinco minutos eu olhava a hora que o relógio marcava. O tempo se arrastava torturantemente. Pensei em encurtar o encontro comendo mais rápido, pois assim poderia dizer que era hora de ir embora. Ainda estávamos no couvert e ela não parecia muito inclinada a pedir o prato principal. Acenei para que fizéssemos o pedido o mais breve possível, insinuando que estava famélico, quando na verdade estava até com uma leve indisposição. Até que pedíssemos a entrada, o prato principal, a sobremesa e o café já haveria passado a noite toda e enquanto isso eu imploraria para que a chave da minha cadeira elétrica fosse girada. 

Finalmente o primeiro prato chegou. Tratei de servi-la, gentilmente, e depois servi uma porção para mim. No fim, ela reclamou que eu havia comido a última bruschetta de mussarela de búfala tomate e manjericão, deixando somente a de presunto de Parma, que ela detesta enfaticamente. E tive uma revelação através daquela última bruschetta: Se com a entrada ela fez isso, o que restaria quando fosse servido o prato principal? Nessa altura, eu já havia desistido de pedir sobremesa, mesmo sabendo que aquele lugar servia uma torta tiramissu deliciosa. Não havia clima e isso estenderia demasiadamente o jantar. 

O problema naquela hora era a companhia. Foi então que vi que ela não existia. E que eu não existia para ela. E que a reclamação não era por causa da maldita bruschetta. Era eu o problema. Porém, aquele pãozinho torrado com queijo, azeite e ervas revelou minha absoluta miséria existencial. Depois que ela me tratou como um assassino de sonhos por haver maculado a última infame bruschetta, que ela achava-se no direito de reivindicar como sua, fiquei tão consternado e sem ação que tudo o que queria voltar para minha casa, vestir meu pijama e assistir a reprise de algum filme antigo na TV, protegido do mundo, protegido dela, protegido de mim mesmo. Nossas vidas, que se uniram através de uma torradinha com molho de maionese dividida em duas partes iguais, se afastaram derradeiramente por causa de uma fatia de pão italiano coberto com mussarela de búfala. A única lembrança que fica dela em mim é a certeza de, na próxima vez, lembrar de pedir porções individuais e escolher melhor minhas companhias.

segunda-feira, 18 de março de 2013

ISSO QUE SE CHAMA AMOR



Solidão, compaixão e dignidade: os ingredientes do amor de Haneke

Michael Haneke mexe com o que tenho de mais profundo. E não é uma sensação boa. Acho que é comparável a um exame invasivo, como uma endoscopia. Ou pior. É algo comparado a uma sessão pesada de análise. Daquelas que fazem a gente sair sem saber para que lado correr. Ele me deixa atabalhoado como um bom analista deixaria. Saio do cinema destroçado e grato, tal qual aquele bom analista que me manda embora da sessão sem saber se conseguirei caminhar até o elevador. Bons cineastas, assim como bons terapeutas, são aqueles que nos tiram de nossa zona de conforto. Obviamente que isso não é bom o tempo todo. A bem da verdade, quase nunca é. Principalmente porque me refugio do divã na poltrona do cinema. Às vezes prefiro ver filmes bonitinhos e levinhos, que me fazem ver o mundo mais colorido, da mesma forma que troco uma sessão de análise por uma boa conversa num boteco com meus queridos. Quem gosta de mexer em feridas profundas o tempo todo? Quem gosta de sentir constantemente um soco no estômago? Quem gosta de ver que o mundo (Nota: o nosso mundo interior) é meio feio, meio cinza?

Ele me chegou numa tarde cinzenta e fria de sábado, embora sendo março. (Nota: dia apropriado para um café fumegante e uma fatia generosa de torta com abundante calda de chocolate. Chocolate conforta em dias cinzentos). Desde o lançamento do filme eu esperava o momento certo de assisti-lo. Sabia da badalação que o cercava e vivia um misto de receio e indisposição em relação à obra. Confesso que não sei se esse dia foi o mais acertado. Achei o início do filme lento, arrastado, em vários momentos meu pensamento voou longe, tentei me acomodar melhor para vencer o sono e a dispersão. Queria parar na metade e ir tomar um cappuccino. Foi aí que vi que esse era o objetivo do diretor, como sempre. Assim como fujo de sessões pesadas de terapia, fujo de filmes que reviram minhas vísceras existenciais. Mesmo querendo sempre ser arrebatado e surpreendido por tudo e por todos, acho que comecei a assistir ao filme esperando ver algo mais “amoroso”, em sentido vulgar e corriqueiro mesmo. Fui surpreendido por uma visão da vida que me deixou, no fim da sessão, um tempo não contado olhando para o teto, tentando recobrar o fôlego e emergir. Estava esvaziado. Sentia-me como se minha vida toda e minha visão romântica do amor tivessem sido tomadas de assalto e eu tivesse recebido um choque elétrico nas pálpebras. Ver outras vidas (im?)possíveis - mesmo sendo pela janela que Haneke abriu - e ter contato com um outro olhar sobre o mundo (interior e exterior) é assim, tira a gente do eixo. E é aí que ele me pegou de jeito: gosto da obra do cineasta austríaco justamente por seu jeito amargo de mostrar um mundo duro. Ou da crueza como mostra um mundo amargo. Sem rodeios, sem ufanismos, sem eufemismos.

Por isso alerto: Haneke não é para Sessão da Tarde. A exemplo de outros filmes inquietantes, como Caché (2005) e A Professora de Piano (La Pianiste, 2001), Amor (Amour, 2012) não é uma obra que trata de questões como velhice, compaixão, solidão e companheirismo de forma complacente. Amour é um filme que fala sobre o que é o verdadeiro amor (quando há amor). Sobre os limites da vida a dois. Sobre o fim da vida. E embora seja um filme sombrio e arrastado, principalmente para os padrões hollywoodianos, foi o vencedor do Oscar de melhor filme em língua estrangeira, tendo sido indicado também para melhor filme, cenário, direção e atriz (Emmanuelle Riva). Amour venceu, ainda, a Palma de Ouro no Festival de Cannes e os Cesares de melhor filme, ator, atriz e diretor.

A obra, escrita e dirigida por Haneke, é um tratado sobre a vida, sobre o lado amargo dela. E embora envolva sempre a sombra da morte, não é um filme que trata diretamente sobre o tema. Não é por acaso, penso, que a cena inicial mostra um cadáver em decomposição sendo encontrado pela polícia e toda a trama se desenrola em feedback. A trama gira em torno da vida cotidiana de um casal de idosos, Anne (Emmanuelle Riva) e Georges (Jean-Louis Trintignant), que vivem sozinhos em um amplo apartamento parisiense. A partir de um acidente vascular cerebral que paralisa um lado do corpo de Anne, vê-se a decrepitude dos protagonistas, o limite da devoção de Georges e a luta de ambos para manterem sua dignidade. O elenco ainda conta com a participação de Isabelle Huppert, como Eva, a filha do casal, que aparece em alguns momentos para lamentar e choramingar a situação da mãe.

Amour trata de maneira seca e dolorosa, pungente e compassiva, das formas que encontramos de sobreviver a nós mesmos e aos nossos desastres. É um filme que esmiúça dos sentimentos mais profundos e mais humanos como se trilhasse o curso das águas de um rio através de um leito repleto de pedras. É um filme que fala sobre como sobreviver quando chegamos ao limite inevitável. É impossível acompanhar Haneke nessa viagem e permanecer o mesmo. É impossível sair do cinema do jeito que entramos. Se você está pronto para embarcar nessa incursão, respire fundo, abra os olhos e experimente-se.


sexta-feira, 8 de março de 2013

PARA A PAGU QUE EXISTE EM CADA UM MANDO UM BEIJO



Hoje é dia de render homenagens. Pululam flores, mensagens, frases de efeito que enaltecem a condição feminina. O problema é que, para muitos(as?), é somente hoje. E eu queria apenas que isso não fosse necessário.


Hoje cedo fui interpelado por uma moça, uma conhecida, no elevador. Ela me perguntou o que eu faria para homenageá-la. Perguntou, à queima-roupa, o que eu daria de presente a ela. Não entendi. Era muito cedo e eu ainda estava sonolento, “operava por instrumentos”, sem óculos de sol, sem fone de ouvido e sem café preto na veia. Perguntei se era seu aniversário. E ela lascou que obviamente não, mas que hoje é o dia dela, porque é o Dia Internacional da Mulher. Não me contive e respondi: “Acho que eu mereço flores. Meu lado feminino clama por homenagens no dia de hoje. Graças a vocês, me tornei Pagu. Um beijo.” Se fosse possível comandar a trilha sonora do elevador naquela hora, eu colocaria, ao invés do tradicional Kenny G, Caetano cantando “Super-Homem (A Canção)”. Porque o que eu queria dizer a ela é justamente isso: Que minha porção mulher que até então se resguardara é a porção melhor que trago em mim agora.

Tenho certo ranço dessas datas que lembram as lutas das “minorias”. Dia internacional da mulher, Dia da Consciência Negra, Dia do Orgulho Gay, Dia do Índio. Acho tudo meio alegórico e quase folclórico. Compreendo que são movimentos que objetivam maior visibilidade e servem como um grito de grupos oprimidos, não necessariamente minoritários. Servem para criar um espaço de reflexão e crítica, para lembrarmos eventos violentos e dolorosos, para essas marcas que carregamos na memória não sejam apagadas e principalmente para que as situações do passado não se repitam. Porque todos temos lutas diárias, todos matamos um leão por dia para conquistarmos nosso espaço. Mas fico incomodado com essa necessidade feroz de bramir quem somos e a que viemos. Acho humilhante ter que me agregar aos meus pares e gritar em coro para ser respeitado pelo que sou. Acho doloroso ser considerado minoria. Acho triste ser oprimido por outra minoria mais forte que quer solapar minha condição, seja ela qual for.

Sei que tenho uma visão um tanto romântica e idealista da vida. Sei que é ilusão pensar que um dia nada disso será necessário. No meu mundo ideal, todo dia é dia de todo mundo. E a gente vive junto e a gente se dá bem, como cantaria Lulu Santos. Entretanto, no elevador hoje cedo, fui trazido à realidade pela moça que queria ser reconhecida em sua condição primordial. Tive vontade de perguntar: “Mas afinal, o que você fez para merecer esse presente que reivindica?” Mal sabe ela que eu a reconheço e a valorizo todos dias, não somente hoje. Ela não tem ideia do que as gerações anteriores à sua precisaram fazer, neste mesmo dia 08 de março, para que ela pudesse pedir presentes descuidadamente no elevador. Mal sabe essa pobre moça, que a data de hoje talvez não tenha despertado nela um sentimento de valorização de si mesma pelo que realmente é.

Se o mecanismo social é de pregar a igualdade, não é estabelecendo diferenças que seremos iguais. Saliento que não acho que devemos ser tratados como iguais, mas devemos ser respeitados em nossas idiossincrasias. Igualdade é tratar o semelhante como semelhante em suas particularidades e o dessemelhante como dessemelhante em suas peculiaridades. Mas semelhantes e dessemelhantes não são outra coisa senão o mesmo barro. Eu me construo, o outro me constrói, eu construo o outro, o outro constrói a si mesmo. Explico: Não sou mulher e objetivamente nunca serei. Mas bem no fundo, tem coisas femininas com as quais me identifico. E me torno mais mulher a cada dia. Aprendi a, femininamente, me sensibilizar com o é digno e me dessensibilizar com o que é descartável. As mulheres que lêem este texto agora, se lançarem um olhar apurado sobre si mesmas, tenho certeza que também identificarão traços masculinos. E nem por isso serão homens.


Não acredito, sinceramente, que valoriza e enaltece a condição feminina, castrada desde sempre, definirmos papéis. Não é porque somos mulheres que merecemos ser reverenciadas, tampouco porque somos homens que devemos reverenciar. Não é estabelecendo a diferença entre “coisas de mulher”, e “coisas de homens” que seremos tratados com o respeito que merecemos. Não nascemos homens ou mulheres, mas nos tornamos. E é por isso que hoje rendo homenagens a todas as mulheres que me fizeram ser um pouco mulher. Então, meninas, hoje é também meu dia. Vamos trocar flores?
 

sexta-feira, 1 de março de 2013

HOCUS POCUS: E UM AMOR NOVINHO SALTA DO CHAPÉU DE UM LOUCO!



“Antes de declarar sua preferência por alguém, espera-se que você venha a conhecê-la gradualmente e por meio de palavras; não devemos cair de amores (ou de tesão) à primeira vista.”
(Alain de Botton: “Como Pensar Mais Sobre Sexo”. Ed. Objetiva. Pág. 42)

Com a citação de Allain de Botton já começo este texto de forma um tanto amarga. Saliento, entretanto, que amargura pode ser boa. Vide um espesso, aromático e forte café preto. Cafés assim devem ser sorvidos com parcimônia, permitindo que seu sabor inunde cada papila. E sem açúcar. Adoçar um café de qualidade deveria ser crime passível de proibição perpétua de bebê-lo por profanar seu Santo Corpo Negro. Ou ainda a referência a um “bom veneno”, que como canta Nina Becker, “é amargo e os melhores vêm em pequenos frascos”. A amargura nos alerta sobre os perigos do mundo, objetivos ou não. Temos instintivamente a noção primitiva de que o que é amargo é nocivo e pode nos matar e o que é doce é benéfico e nos nutrirá. Diabéticos, porém, são o exemplo de que venenos podem ser doces também.

Não quero falar sobre amarguras. Na verdade quero sim. Mas vou falar das doces amarguras. Ou das doçuras amargas. Quero falar das doces e amargas ilusões que perdemos e nunca mais encontramos. E vagamos erráticos desde então, querendo recobrar nossa insanidade infantil e ingênua primordial. A busca de Parsifal pelo Santo Graal perde!

É confortável viver iludido. A gente vive melhor. As ilusões nos mantêm vivos e esperançosos. São elas que alicerçam as religiões, os casamentos, as instituições familiares e as sociedades corporativas. Sem ilusão, o mundo talvez fosse um caos completo. A vida que chamamos de real – mesmo sem saber se é porque não sabemos mais o que não é real – é mais dura. E mais amarga, obviamente. Por mais tentados a iludir-nos que vivamos, sempre sopra aquela voz no ouvido (esquizofrenia?) dizendo que não adianta fechar os olhos porque o sonho morreu. But I have a dream, embora meu sonho seja mais egoísta que o de Luther King.


Percebo, andando pelas ruas e principalmente pelos bares da vida, que as pessoas andam ávidas, cansadas e impacientes. Desejosas de algo que nem sabem o que é porque nunca viveram. Todos nós temos a ilusão midiática e mercantil de Amor, assim mesmo com letra maiúscula, e buscamos essa satisfação imediatamente. O Amor é algo intangível tratado como produto, é um bem que esperamos encontrar nas prateleiras de lojas de departamentos ou sites de compras (leia-se sites de relacionamentos). Não vemos o outro, vemos através dele nossa própria imagem refletida em suas pupilas. Bem Narciso. O outro não passa da possibilidade de ser o puzzle encaixado na lacuna que temos em nossas existências. Ele não precisa existir de verdade, basta não reclamar de ficar encaixado no espaço diminuto que destinado a ele, mesmo que ele seja um octógono enfiado em um triângulo. E isso é urgente. Tem que ser agora. Porque qualquer um pode ser potencialmente “o grande amor para a vida toda da semana”.


O “Grande amor” foi submetido à outra lógica nestes tempos difíceis para sonhadores. Antes era envolto em uma aura de perenidade e constância. E era uma quimera, convenhamos, mas isso é outro assunto. Agora, o amor eterno dura vinte e quatro horas e durante esse período é para sempre. Tudo é chama. Nada é imortal, portanto. Mas há a obrigatoriedade, velada e tácita, de ser infinito enquanto dure. Será uma maldição de Vinícius de Morais para as gerações futuras? Se comparado com o passado, amar hoje é menos ilusório. Mas gera muito mais frustração. Amor de fast food neurotiza o coração. E se o sujeito choramingar reclamando, tudo desmorona. Assim: CLIC! Libertamo-nos de amarras sociais e vivemos um amor tão livre, mas tão livre, que se tornou soberbo, arbitrário, intransigente e intolerante com tudo que é diferente de si. Egomaníacos, queremos um duplo de nós mesmos. Buscamos neuroticamente alguma coisa que nos falta. Queremos vestir uma calça tamanho 36 quando nossa cintura é 42. E tem que caber! Duela a quien duela. E tem que ser perfeito e incrível no espaço de um estalar de dedos. Ou somos todos condenados à escuridão e ao ostracismo eternos.

Sistematicamente, incautos vendedores de ilusões batem à porta oferecendo-nos, envoltas em tecidos brilhantes, promessas de felicidade eterna. Com elas chegam-nos certificados de satisfação garantida ou devolução de nosso tempo perdido. Eles aparecem meio Vanessa da Mata, cantando ao pé do ouvido: “Se você quiser eu vou te dar um amor desses de cinema”. Faz parte da mise-en-scène do canastrão caricato. E volta e meia caímos nessas teias. Por mais desconfiados e desencantados que estejamos, uma mentira almofadada bem vivida pode ser melhor que a realidade fria de mármore. Pelo menos precária e provisoriamente. Saída pela esquerda, Leão da Montanha. Bons encontros spinozianos são bem-vindos. Bons orgasmos freudianos - se que é existem - são necessários. Bons passatempos para dias chuvosos, para tardes sonolentas, para noites friorentas. Para ir ao cinema, para jantar fora vez ou outra. Para satisfazer necessidades físicas e psicológicas, objetivas e subjetivas. Não há mal algum na precariedade, desde que honesta.

Entretanto, até aquilo que é provisório, precário, ilusório e fronteiriço tem que ser maturado. Existe certo ritmo e determinado rito que lhe são próprios. Como um vinho precisa de tempo para chegar ao ponto ideal, uma boa refeição demanda de rituais e tempo precisos para ser apurada, uma relação fast também precisa. E não é porque é “fast relationship” que devemos quebrar todas as regras sociais (?) que dão sabor a ela. O fato é que, assim como para um bom apreciador de gastronomia macarrão instantâneo não tem vez, para um bom amante, amor instantâneo é miojo. Se café instantâneo não satisfaz o paladar de um bom barista, não vai ser uma paixão instantânea que vai satisfazer o coração. Contudo, a título de exercício livre da ludicidade, ser iludido conscientemente, tendo um olho a pestanejar e outro que agita, pode dar uma cor a dias nublados.


Ilusionista que se preze, engana-nos e aplaudimos, entusiasmados com o frio na barriga que sentimos. E parafraseando Caio F. Abreu, digo: que nem seja assim tão doce! Não importa. Desde que seja intenso sem medida certa, no tempo que for necessário, sem toque exato, mas que ainda assim seja um tiro certeiro. Doce ou amargo, tanto faz, mas autêntico e honesto. Que não seja febril e histérico, mas que seja lúcido. E que não queira nos fazer parecer um hambúrguer do McDonald’s no Drive Thru em dia de McLanche Feliz.