sexta-feira, 8 de julho de 2011

VIAJANTE DAS ESTRELAS


Rafael Perez - "French Kiss"



“Não sei bem certo onde eu vou
Pode não dar pé
Posso me perder por aí
Eu tenho medo de tudo
Não gosto de bicho, do mato
De andar sem sapato
Mas tô indo lá
Mesmo assim eu vou”
(Monique Kessous – No Mundo da Lua)


Existia algo dentro dele que crescia a cada amanhecer. Desde o dia incerto que sua porta foi batida por alguém que não avisou que vinha. Era algo bom, bonito e brilhante essa coisa meio alaranjada e meio quente que crescia em seu peito. E não era completamente desconhecida também. Reconhecia vagamente essa sensação porque talvez, em uma longínqua juventude, já tivesse sentido esse choque na altura do plexo, esse leve formigamento nas extremidades, esse calor na nuca, como quando se sentava ao sol, num dia frio de inverno, e os raios penetravam seu corpo inteiro e proporcionavam aconchego. Ou quando, na infância, se sentava ao lado de sua avó em frente ao fogão à lenha e ouvia histórias, enquanto comia pães quentinhos com erva doce.

Sentia uma alegria leve e serena, mesmo causando um certo desconcerto e torpor. Não queria conceituar ou racionalizar essas sensações, mas tinha uma ideia do que poderiam significar. Eram, por certo, impensadas naquele exato momento em que as percebia. Impensadas porque ele não se julgava digno delas e nem preparado para vivê-las. Estava atravessando dias cinzentos. Embora tivesse consciência que era uma fase e que chegariam dias mais ensolarados, pensava que esse momento tinha um tempo certo de maturação. Havia aprendido a cultivar sentimentos respeitando o tempo de cada um. Com estes não poderia ser diferente.

O fato é que essa luz quente entrou pela porta entreaberta de sua vida quando dentro havia frio e penumbra. Vivia uma dor recente que havia se tornado conhecida, mesmo não sendo nem um pouco bem-vinda. E isto era o mais irônico de tudo: Ele conviva com uma grande dor, surgida abruptamente, e não se sentia preparado para viver uma grande alegria inesperada. E sentiu-se culpado por viver essa grande alegria logo depois dessa grande (e talvez não curada) dor. Culpa cristã, reconheceu de pronto. E tratou domá-la. Não questionava os caminhos que o fizeram chegar até aquele momento, sabia somente que era bom sentir e que queria estar de peito aberto para viver o que sentia.

Por algum tempo alimentou-se de algumas pequenas porções de carinho descompromissado, gentilmente ofertado através da porta que havia deixado entreaberta. Recebia algumas imagens, alguns sons, muitas palavras soltas. Uma colcha de retalhos foi tomando forma. Juntamente com essa alma que batera a porta, teceu fio a fio essa trama. Essas duas almas que agora se encontravam tornaram-se bons fiandeiros do tempo, talhados ao longo da vida, e aprimorados na convivência que começara.

Ele era cético e incrédulo. Já havia levado alguns tombos ao longo do caminho e precisava da certeza (ou pelo menos de uma dúvida menos atroz) de que aqueles sentimentos, num primeiro momento censurados por serem julgados prematuros, poderiam ser uma possibilidade e, em última instância, possibilidade de que. Materializava as virtualidades em busca de sentido. Tecia conceitos vagos com os fios tênues que tinha. Mas essa impalpabilidade da situação começou a incomodá-lo.

Havia decidido: sairia da penumbra e veria sob a luz do sol, e o mais completamente que pudesse, aquela alma que despertava nele aquelas emoções tão fortes e incomuns. Tinha somente um caminho. E foi esse que seguiu. Rumou ao encontro daquele (des)conhecido. Coração disparado, mãos frias, têmporas úmidas, expectativa. Na bagagem somente a certeza de que chegaria sem máscaras, sem ilusões, sem tentar demonstrar nada que não fosse exatamente o que ele era. Também não havia muito que apresentar depois de tantas batalhas perdidas e ilusões desfeitas. Restava apenas um sorriso amarelo e vastas olheiras emoldurando um brilho longínquo no olhar. Tirou a armadura, abandonou as fantasias e foi.

A viagem pareceu durar semanas. Leu um livro, ouviu músicas, fez palavras cruzadas, tentou, em vão, dormir. Então fez um roteiro. Imaginou como seria a descida no portão de desembarque frame a frame. Todas as marcações estavam definidas, todos os diálogos afinados, todos os enquadramentos estudados minuciosamente. Pensou em cada possibilidade, milimetricamente. E, na vida real, estava despreparado para todas.

[A porta automática abre. Close no chão pisado por um par de all star sujos. A câmera sobe pela calça surrada, o casaco pesado de veludo, amassado da viagem. A câmera fecha nos olhos. Corte para um plano aberto do saguão repleto. Point Of view: Imagens longínquas e difusas. Sons sem forma. A câmera volta para as mãos, em primeiríssimo plano, que mexem nervosas em papéis nos bolsos do casaco, das calças, reviram a bolsa de couro preta atravessada no peito. Encontra o bilhete da bagagem. Corte para um close up na nuca, enquanto ele caminha para a fila de despacho da bagagem. Corte para a alça da mala sendo arrastada. Em plano médio, ele pega a mala, arrasta-a entre as pessoas. Ouve-se somente o som seco dos rodízios contra o assoalho. Ele atravessa a cerca que separa a área de desembarque da área externa. A câmera permanece fixa, em plano médio, fechada somente nos pés e na mala sendo arrastada. A imagem vai ficando mais distante à medida que ele se afasta. Ele para de caminhar. Apoia a mala. Surge alguém em sua frente, identificado somente por um par de sapatos marrons de camurça. Lentamente o plano vai sendo ampliado até resultar em um longo plano aberto de todo o saguão. Vê-se um longo abraço dos dois em meio à multidão. A câmera é erguida pela grua e é feita uma tomada panorâmica do lugar.]

Não, nada disso aconteceu. Foi guiado por impulso e chegou de peito aberto, com a coragem que somente os loucos e os apaixonados tem. Não sabia em qual grupo se enquadraria. Só tinha certeza que estava meio sem graça. Era fim de tarde de um dia frio de inverno. Chovia. O portão de desembarque repleto de pessoas apressadas. Na verdade, não imaginava encontrar ninguém à sua espera. Havia planejado pegar um táxi, ir para um hotel (onde não tinha nem reserva), entrar em contato e talvez marcar um jantar em qualquer lugar. Não tinha planos, apenas vontades. No meio da multidão, porém, avistou aquele par de olhos claros que povoavam seu imaginário amoroso há algum tempo. Foi tomado por uma torrente de emoções confusas. Encontraram-se, abraçaram-se intensamente. Um abraço como o de reencontrar alguém que não viam há muito tempo. Um abraço de boas-vindas pelo retorno ao lar. E realmente foi.