sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

O BARQUINHO VAI, A TARDINHA CAI

Série Mar de Homens, 2001. Roberto Linsker. Gelatina/prata tonalizada. 30,1 x 44,9 cm. Redonda, CE. 

 [Para ler ao som de Maysa, O Barquinho]

Qual é mesmo a palavra? Estéril! ES-TÉ-RIL, soletrava ritmado, enquanto mergulhava as meias de algodão em uma espessa espuma branca. O que significa mesmo a palavra “estéril”? Aquele que não tem capacidade de procriar; quem ou aquilo que não pode produzir o resultado esperado; infecundado; vão; inútil; ineficaz; quem não possui criatividade; sem valor; escasso. Há algum tempo ele sentia algo secar por dentro, uma vastidão inominada que somente naquele momento teve uma definição: Estéril. Vontades, essas tinha muitas. Mas nada que o movesse para algo que pudesse designar “producente”. Palavrinha mais academicista, pensava com rancor. Parecia que a vida era a busca exaustiva por resultados quantificáveis, palatáveis, tabuláveis métrica e cientificamente. E esses resultados palpáveis deveriam ser divulgados nas rodas sociais para que os sujeitos pudessem ser reconhecidos como bem-sucedidos. O reconhecimento alheio é a outorga do status íntimo. Além disso, era necessário o sentimento de ser guardado por forças misteriosas superiores. Dessa forma, o sucesso seria necessário para que os bem-sucedidos pudessem agradecer-a-deus-por-tudo-de-bom-amém e encontrassem a paz interior. Ou para que desejassem outras coisas e dessem continuidade ao ciclo infinito.

Se “producente” pudesse ser considerado o contrário de “estéril”, este seria o resultado científico negativo de uma vida que não deu certo. Então, “estéril” seria um conceito tão academicista quanto “producente”. Qualificando uma existência como “estéril” ou “producente”, resulta disso uma vida bovina? Seguindo essa lógica sim. Porque uma vida bovina é aquela em que existir resume-se a pastar-defecar-dormir-pastar. “Resulta”? Que resultado poderá ser esperado ou validado do mistério de existir? Será que são necessários resultados? E se viver for a exata ausência de resultados? E se o que a vida quer de nós é que vivamos simplesmente, sem interrogá-la e sem interrogarmo-nos? Fernando Pessoa, nas Odes de Ricardo Reis, já dizia: “Vê de longe a vida. / Nunca a interrogues. / Ela nada pode / Dizer-te. / A resposta / Está além dos deuses”. E provavelmente por isso que há esterilidade, porque pensamos demais ao invés de vivermos. “Os deuses são deuses / Porque não se pensam”. Porque não se pensam. Enxotou de sua mente esses questionamentos espiralados e os pensamentos intrusos que insistiam em habitá-la e voltou a concentrar-se em suas atividades.

A vida sempre tinha sido uma cama de pregos na qual ele recostava-se todas as noites. Mas naqueles novos tempos, sentia que algo estava mudando. Em alguns momentos até parecia que a vida era uma nuvenzinha mansa, branca e fofinha. Ou uma rede sob palmeiras, embalada pela brisa e pelo som do mar. Ou, então, um quarto de hotel no décimo sexto andar de um arranha-céu em uma grande metrópole, seguro e confortável, acarpetado, com cama macia, travesseiros de plumas, lençóis de linho e temperatura constante controlada por computador, que era mais a cara dele.

Não importavam os espinhos do passado. Ele vivia tampos de doce letargia. Parecia que tudo estava finalmente em seu devido lugar. Havia uma serenidade quase búdica, coroada com uma calma de ansiolítico. Parecia, apenas parecia, que todas as energias cósmicas e psicológicas estavam alinhadas. Sua consciência alertava-o que isso era apenas uma sensação ilusória. Sabia que estava deixando de ver algumas coisas simplesmente porque havia voltado o rosto para outra direção. E talvez seu maior ato de sabedoria tenha sido simplesmente mudar de direção. Não necessariamente buscar o caminho mais fácil, mas o que tivesse mais coração, que quase sempre é o mais difícil. O segredo aparentemente era dar as costas ao passado, ou pelo menos guardá-lo em seu devido lugar; um baú empoeirado que fosse. Em alguns momentos pensava que isso não era “fazer as pazes com o passado”. Entretanto, foi o único caminho viável para serenar seu coração.

Enquanto esfregava as meias brancas buscava palavras que o definissem existencialmente. Era seu maior passatempo solitário, e de solidão ele entendia bem. A brancura das meias enxaguadas, imersas na água cristalina, trouxe à consciência um momento esquecido no passado. As lembranças eram vagas. E reminiscências, quanto mais difusas, mais insuportáveis para ele. O tecido branco atoalhado mergulhado na água fria lembrava a metáfora que escreveu (ou leu) em algum momento. A imagem era a de velas branquíssimas do veleiro deslizando calmamente sobre o mar, reluzindo contra o céu quase turquesa, o qual no horizonte se confundia com o mar, de tão azuis, deixando a sensação de formarem uma imensa bolha líquida azul-resplandecente. Por que lembrar desse maldito barco no mar? O bilhete! É isso, o bilhete que escreveu e não mandou. Ou mandou sem ler. Ou que recebeu de alguém, não tinha mais certeza. Com sorte esse bilhete estaria em uma caixa no fundo de um baú. O pedaço de papel instantaneamente tornou-se uma obsessão e encontrá-lo virou uma meta de vida.

Fechou a torneira, largou a bacia com roupas, enxugou as mãos na barra da camiseta e arrastou os chinelos pela casa até a saleta onde ficava um baú antigo, uma arca de memórias que nem sempre faziam sentido individualmente, mas que juntas reconstruíam sua própria história. Retirou os objetos que estavam sobre o móvel e ergueu a pesada tampa. Uma golfada de um cheiro morno de mofo, poeira e amarguras chegou como um tapa em sua cara suada de janeiro. Num canto no fundo do baú estava ela.

Limpou mais uma vez as mãos na camiseta e segurou a pequena caixa envernizada, ornada com arabescos em marchetaria. Essa caixa havia sido um presente de um amor antigo que se foi. Originalmente, vinham trufas delicadas e perfumadas. O cheiro do chocolate ainda permanecia vívido, assim como algumas manchas de licor no fundo, resultado de sua incurável falta de jeito. Sentou-se sobre os pés e abriu a caixa de pandora. Pôs-se, então, a vasculhar seu conteúdo. Nela eram guardadas outras memórias, de outras pessoas, algumas fotos, uns cartões postais de Paris, Praga e Roma – lugares que ele nunca conheceu - uns bilhetinhos coloridos deixados sobre o travesseiro ou no meio de um livro, propositalmente esquecidos. As memórias dentro das memórias, e essas dentro de outras memórias, como uma Matrioshka, as bonecas russas.

Não sabia ao certo porque revisitar essas lembranças depois de tanto tempo. Abrir o baú era sempre um misto de saudades infindas, dores pontiagudas e emoções recalcadas por durezas da vida que retornavam com intensidade. Bravamente covarde - ou covardemente bravo - ele enfrentava o baú de tempos em tempos. Talvez para lembrar que ele era constituído por essas dores também. Ao melhor estilo cristão, açoitando com flagelo a própria carne para que sentisse as dores de Jesus na cruz e mantivesse viva a consciência que Ele sofreu por todos nós, enfrentava seu passado para lembrar que ele próprio havia sofrido para se tornar o que era naquele momento. Mas também porque vez ou outra ele queria rever algum de seus mortos para que não ficassem para sempre esquecidos.

Tentou não olhar detidamente todo o conteúdo da caixa. Algumas coisas não deveriam ser lembradas naquela hora. Mas não adiantava. Seu coração palpitava a cada retrato, a cada bilhete, a cada cartão postal e a cada carta de (des)amor. Seu objetivo era outro: queria simplesmente lembrar das palavras em um pedaço de papel que falavam sobre as velas de um barco. Era como lembrar um samba antigo, do qual sabia o ritmo tamborilando os dedos, mas a letra fugia à lembrança. Curiosidade obsessiva. Ele não gostava de esquecer quando era necessário lembrar. Da mesma forma que não gostava de lembrar quando era inevitável esquecer. Achou o bilhete no fundo da pequena caixa. Estava com uma mancha marrom de calda licorosa das trufas. Pela caligrafia e pela amargura das palavras havia sido escrito por ele. Era um rascunho coalhado de rasuras. Ele sempre titubeou para escrever, reescrevendo exaustivamente sem nunca dar-se por satisfeito. Não sabia se havia enviado. E se enviou, não saberia jamais se o bilhete foi lido. Talvez triste, talvez providencial. As palavras eram as seguintes:

“Deixei que a vida se encarregasse de traçar um curso para minha caminhada, seguir o meu destino, regar minhas plantas e amar as minhas rosas. Porque o resto é sombra de árvores alheias, já dizia Pessoa, docemente interpretado por Bethânia. Pelo pouco que lembro, a partir do teu silêncio, desde o dia em que te convidei para um jantar e não recebi mais que a resposta evasiva habitual, decidi ajustar as velas no sentido do vento. Não tenho escrito para ti desde então porque escrever era um processo psicoterápico. Catarse, sabe? Como voltei para a análise, não tenho sentido tanta falta de escrever, tento somente viver. E tem funcionado. De resto, tudo anda no mesmo ritmo. Mas é um passo bom, sereno e perto da tranquilidade. Existem ausências, existem faltas e lonjuras, mas existem recompensas doces também. Espero que a vida não ande sendo madrasta contigo.”

Ele reconhecia que poderia ser amargo e rancoroso, bastando um pequeno estímulo. Sabendo desse monstro prestes a sair de dentro de si e espargir fel, exercitava todas as manhãs seu silêncio. Será que essas palavras tiveram um destinatário? Evidente que sim. O mais provável é que fosse ele mesmo. Mais que ser ouvido, ele queria dizer para ouvir sua própria voz. Falar com as paredes, esmurrá-las quiçá, poderia libertar de todo o mal. Se existia algo muito maior em sua alma era sua capacidade de espargir amor. E ele sabia que seu fel era a face oculta de seu amor, o lado escuro que deveria ser neutralizado ou banido, embora tivesse a mesma essência e a mesma origem do amor.

Firmara um contrato, um pacto tácito selado com Buda, com Jung, com Jesus, com Freud e com as forças do universo de não falar tudo o que pensava, especialmente quando iria ferir alguém ou prejudicar a si próprio. Nem Iluminado, nem anticristo, tão somente um ser errático tentando não pisar as flores do jardim. Era a velha metáfora do caminho do meio, tão difícil de encontrar no escuro em meio à tempestade. Esse bilhete era uma resposta a uma provocação ou era uma provocação à espera de resposta? Não fazia diferença. As palavras eram duras, eram amargas, mas eram verdadeiras. Porque para que as flores do jardim sobrevivam é preciso arrancar as ervas daninhas. E esse poderia ser o caminho do meio.

Depois desse bilhete outros foram escritos. Não do mesmo remetente e não para o mesmo destinatário, provavelmente. Ou quem sabe sim. Afinal, se era um processo catártico, narcisista e egomaníaco, o que ele queria escrevendo não era ferir o outro, mas expurgar o que do outro feria as camadas mais profundas da sua epiderme. Escrevia como se falasse em frente ao espelho, para que visse a si próprio através do outro. Não importava, em última instância, em que consistia o outro ou quais eram suas ações, importava o que ele fazia daquilo que o outro era de diferente de suas projeções.

Ainda sentado sobre o tapete de juta da diminuta saleta, foi transportado para o pequeno barco de velas brancas, navegando calmamente sobre o mar. Sentia o calor brando do sol. Deitado no convés, tentava olhar para o sol, como fazia na infância, na tentativa de desafiá-lo, como se pudesse ser maior e mais forte que a natureza. A luminosidade cegava-o e essa cegueira momentânea assustava e divertia porque era o limite: Temia ficar cego para sempre, mas divertia-se com a retomada paulatina da visão, como num milagre. Subverter a ordem natural do universo sempre foi seu maior desafio, mesmo que fosse através de milagres. Ajustou as velas no sentido do vento e deixou o barco levá-lo ao seu destino.

Abriu os olhos, como se saído do estado meditativo. Já era quase noite. Ele precisava correr contra o tempo. Havia muito a ser feito. Deveria colocar o vinho branco para resfriar, terminar de preparar o jantar e arrumar a mesa com o esmero que a ocasião merecia, separando a louça e a prataria polida previamente, as taças cristalinas e reluzentes de tão limpas, acendendo velas aromáticas nos castiçais de bronze, diminuindo a luz ambiente e colocando na vitrola um samba-canção sereno e alegre, como era alegre a ocasião. Precisava ainda escolher cuidadosamente a roupa e o perfume que usaria. Era imprescindível causar uma boa primeira impressão. Pelo brilho da lua cheia de São Jorge, lua deslumbrante, que entrava pela janela e inundava a sala, aquela pressagiava ser uma noite especial. E foi.

"Apanhei-te". Acrilico sobre tela - Teresa Gil