segunda-feira, 26 de março de 2012

DIA DE SANTO ANTÔNIO

Redentora 2010 DETALHE Solange Palatnik  Brasil Rio de Janeiro 1944 Acrílica sobre tela 70 x 200 cm

"Neste lugar tenebroso, os santos brilham como as estrelas do firmamento. E como os calçados nos defendem os pés, assim os exemplos dos santos defendem as nossas almas tornando-nos capazes de esmagar as sugestões do demônio e as seduções do mundo." (Frase atribuída a Santo Antônio)
Ao longo dos anos, o ritual era o mesmo: No alvorecer do décimo terceiro dia do mês de junho ela acordava cedo, munia-se da imagem do homem franzino em vestes franciscanas, retirada do castigo de trezentos e sessenta e quatro dias no congelador de cabeça para baixo, do terço, companheiro inseparável, e peregrinava para a igreja a fim de renovar as promessas antigas - não alcançadas -, realizar novas e agradecer com devoção por-tudo-que-aconteceu-no-ano-que-passou-amém. Não porque possuísse graças alcançadas a serem agradecidas, mas foram tantas promessas não atendidas que as pagava para que não acumulassem a ponto de gerar com o Santo uma dívida impossível de ser cumprida. E fervorosa como era, entendia que ele veria seus esforços e suas súplicas nesses momentos de devotamento interessado e rogaria por ela. “Bendito Santo Antônio, amigo da penitência, alcançai-me que com voluntários sacrifícios, pague por minhas faltas.” 1
Esperava o ano inteiro pelo Dia de Santo Antônio. E tinha se tornado especialista em simpatias para saúde, dinheiro, achar objetos perdidos e principalmente para encontrar o grande e verdadeiro amor, realizadas especificamente nesse dia. Todas as simpatias, todas as rezas, todas as mandingas, todos os sacrifícios já haviam sido feitos. “Vos rogo, bendito Santo Antônio, que me faças participante das incontáveis misericórdias que concedeis a quantos vos invocam com devoção e confiança.” Mas faltava o Santo rogar por ela. Acumulou, ao longo da vida dedicada à adoração, inúmeras imagens dos mais variados tamanhos e materiais. Das barrocas às modernas estilizadas, de madeira esculpida a gesso ordinário. As imagens que se amontoavam sobre o oratório de imbuia requintadamente entalhado, herança de família, eram o retrado de sua obsessão. Em todos os aniversários, natais, páscoas ou qualquer data – religiosa ou não - recebia pelo menos uma nova imagem. Todos sabiam que era necessário ganhar as imagens, não comprá-las, para que o resultado esperado com as simpatias fossem atingidos. E presenteava, solidária, outras tantas imagens às amigas em situação eufemisticamente “delicada” como a sua. Mentalizava constantemente o aforismo, estampado na capa de seu livro de cânticos, cuja autoria é atribuída a ele: "Quem não pode fazer grandes coisas, faça ao menos o que estiver na medida de suas forças; certamente não ficará sem recompensa."
Seguia os rituais dos Santos porque não tinha outra forma de viver. Juntava as poucas esperanças que ainda restavam e depositava-as, como ex-votos num altar, naquelas imagens, nas orações e nas súplicas que tinham a cada dia menos significado. Vendo suas convicções esmaecerem, renovava suas promessas solenes nas palavras do pároco da cidade, nas confissões, na eucaristia, “no Espírito Santo, na Santa Igreja Católica, na Comunhão dos Santos, na remissão dos pecados, na ressurreição da carne, na vida eterna”2 e sobretudo em cada nova simpatia, feita sorrateiramente, esquivada dos olhares repreensivos do abade. “Santíssimo e generosíssimo Santo Antônio. Semeador de milagres, protegei-me com vossa intercessão em todo o curso de minha vida.”
Em dias em o sino da igreja ressoava, anunciando mais um casamento, não mais de suas amigas de infância e adolescência, pois todas já haviam casado, mas das filhas delas, seu corpo todo entrava em frêmito, misto de esperanças renovadas e desesperos reavivados. Não deixava de disputar os buquês nas festas, tampouco deixava de escrever seu nome, com caligrafia esmerada, e pregá-lo na barra do vestido da noiva pouco antes desta subir ao altar. “Oh! Santo Antônio, rogai por nós, para que sejamos dignos das promessas de Cristo”. Mas sabia que algo dentro dela estava minguando pouco a pouco, reflexo dos longos anos completamente sozinha no mundo, e que sua juventude estava se tornando uma vaga lembrança, somente vista no fundo dos seus olhos amendoados e fugidios, de íris cor de mel, emoldurados por longos cílios negros.
Naquele dia de santo, no mês em que completaria quarenta anos de idade, ela não mudou os ritos. Já era habitual nessa época do ano debruçar-se sobre sua própria vida para lamentar seu presente, amargar seu passado e idealizar seu futuro. Iniciaria mais uma novena, como tradicionalmente fazia com seu grupo de orações. Idílica, atravessou a praça, arrastando as sandálias de couro de tiras largas pelo calçamento de pedras seculares das ruas da pequena cidade onde viveu a vida inteira, seguindo o som das badaladas do sino que chamava os fiéis para a primeira missa do dia. Carregava nos braços a imagem de “Toninho”, apelido dado carinhosamente ao Santo, como se levasse uma relíquia preciosa ou um ente muito querido. O livro de orações ia firmemente segurado em uma das mãos. Na outra, carregava o terço enrolado em três voltas no pulso e o véu, com o qual cobriria os longos cabelos opacos e grisalhos, amarrados com esmero em um sisudo coque na nuca. Seus passos eram rápidos e determinados. E apenas nesses momentos era visível um resquício de remota determinação. Na maioria das situações seus passos não eram assim firmes, o que era condizente com sua estrutura franzina, frágil, retraída e insegura. Caminhava com graça, apesar da austeridade e amargura que não conseguia mais esconder nas faces opacas e envelhecidas. Seu rosto tinha traços delicados e bem marcados, o que conferia altivez ao semblante. Seu corpo era bem desenhado. Era possível ver levemente os traços de sua boa compleição através do vestido preto desbotado, longo até abaixo dos joelhos, sem qualquer decote ou adorno.  Vez ou outra a barra rendada da anágua surgia reveladora sob o vestido, quando ela caminhava ou sentava com os joelhos juntos e os pés cruzados firmemente debaixo da cadeira. Existia uma vaga luminosidade, talvez atávica, naquela figura encoberta pela aura acinzentada dos cabelos e do vestido.
Chegou à igreja repleta das mesmas pessoas de sempre, benzeu-se na pia de mármore fazendo o sinal da cruz, prostrou-se de joelhos diante do altar com as mãos postas em oração sobre o rosto e aguardou o início da cerimônia. Esperava que o mesmo pároco sexagenário chegasse, proferindo o mesmo sermão, como fazia há quase vinte anos. As palavras dele já confortaram em algum tempo remoto. Porém, depois de tanto ouvir o mesmo discurso carregado de dor e resignação, o conforto que devia proporcionar havia se perdido na poeira. Ainda assim insistia, porque era proibido desistir, mesmo que em pensamento. A velha culpa cristã. Não era concebível não crer. Ela precisava crer para ver, obviamente. Mas não conseguia ver nada. Mesmo assim rezou um sem-número de pai-nossos, ave-marias, Glória a Deus nas alturas, Creio em Deus Pai e Salve Rainha, segurando o terço com tanta força como se ele fosse sua única salvação.
Enquanto rezava, ainda de olhos fechados, ouviu a movimentação na grande nave, ornada com afrescos do século XVIII e imagens barrocas do século XVI, trazidas de Portugal pelos fundadores da cidade. Ergueu os olhos em direção ao imponente altar de mármore e ouro. Seus olhos cansados custaram a acostumar-se com a luz. Lentamente foi conseguindo identificar a silhueta no centro do altar. Para sua surpresa, não era o antigo padre que conduziria o Sacramento da Eucaristia. Era um jovem alto, forte, pele resplandecente de ébano, sorriso largo, olhos negros, grandes e vívidos, nariz fino e lábios rosados. Aquela presença tirou-a de sua zona de conforto. Acostumara-se a viver todos os dias seguindo a mesma sequência de eventos conhecidos e não estava preparada para algo tão inusitado. Ele saudou os presentes e convidou-os para que em pé iniciassem juntos a cerimônia. Sua voz mansa causou nela um calafrio desconfortável e despropositado. Tentou recalcar todas as sensações. Medo. Culpa. Contrição.
Aos poucos aquela voz suave e terna invadiu seu ser e ela sentiu um conforto que há muito não sentia. Era como estar nos braços de um ser que envolvia e protegia. Era como se estivesse deitada em uma cama de plumas coberta por um manto de pura seda. Era como estar aconchegada no seio materno. Era como estar nos braços do Pai. Esse conforto, no entanto, foi se transformando em uma torrente que causava um formigamento nas extremidades e um calor que subia dos tornozelos à nuca, semelhante ao que sentia quando lia os romances de folhetim na juventude, onde as cenas tórridas de amor entre os protagonistas povoavam seu imaginário erótico. Ela sempre sonhou em ser arrebatada por um sentimento que incendiasse todo seu ser causado por um daqueles homens sedutores, viris e apaixonados dos romances. Ela começou a suar frio e os calafrios percorriam seu corpo inteiro. Suas mãos ficaram tão úmidas que mal conseguia segurar a imagem de Santo Antônio e o terço. Um suor frio percorreu-lhe as costas, da nuca ao coxis. Faltou-lhe o ar. A visão ficou turva. Sentiu-se como se todas as pessoas presentes pudessem ver sua reação, ler seus pensamentos e compreender o que estava acontecendo. Ergueu-se da cadeira abruptamente, sem pedir licença aos que estavam sentados ao seu lado, e saiu correndo em direção à rua, deixando para trás a igreja repleta de fiéis.
Atravessou a praça correndo, sob o sol morno de junho. Sem fôlego, sentou-se em um banco e desenrolou o terço freneticamente. “Poderosíssimo Santo Antônio que livrais dos ataques do espírito maligno a quantos vos invocam, obtende-me a graça de que jamais consinta nas tentações dos inimigos de minha alma. Amém.” Tentou desfazer-se desses pensamentos que julgava impuros e abrandar essas sensações desprezíveis. Não conseguiu. Quando recuperou o fôlego foi para casa o mais rápido que pode, sem falar com ninguém no caminho, como costumava fazer, e trancou-se no quarto. Precisava banir aqueles pensamentos de sua mente. Do escuro do quarto completamente fechado conseguia ouvir a procissão na praça. Cobria ou ouvidos com as mãos e entoava os cânticos religiosos em voz alta, buscando desviar a atenção do que acontecia fora e dentro de si. Mas os sons da rua invadiam o quarto e a voz do padre conduzindo o cortejo a invadia. “Inocente Santo Antônio, zelador da justiça, livrai-me das tentações do demônio, e de todo mal.” A noite caiu e a cidade ficou em silêncio. Vencida pelo cansaço adormeceu, abraçada à imagem do Santo e ao terço.
No dia seguinte não saiu de casa. Amanheceu com o corpo dolorido como se tivesse cometido excessos com alguma substância entorpecente. E talvez fosse. Era ressaca causada pela embriaguez de si mesma. Corroída pela culpa e pelo desespero, não quis ver ninguém. Permaneceu trancafiada no claustro criado por ela própria. Mas seus pensamentos estavam cada vez mais revoltos e insistiam em se libertar. Não comeu, não tomou banho, não viu a luz do dia. Apenas rezava em voz baixa e chorava até a exaustão. Vez ou outra adormecia sentada sobre os joelhos, vencida pelo cansaço e pela fome. Nesses momentos, a imagem do jovem e atlético padre, vestido de branco, mostrando o peito desnudo e vindo em sua direção com o sorriso largo e os fortes braços abertos invadia-lhe os sonhos. Ela acordava sobressaltada, rogava a Deus por clemência, pedia perdão a todos os santos, contorcia-se em cólicas, rasgando suas roupas enquanto rolava pelo chão. “Bendito Santo Antônio, amigo da penitência, alcançai-me que com voluntários sacrifícios, pague por minhas faltas.”
Ao longo dos dias seguintes travou, diuturnamente, batalhas quixotescas contra seus desejos. A tensão entre seus valores e juízos morais, de um lado,  e seus desejos mais íntimos, de outro, estava consumindo-a. Seu desaparecimento causou comentários e alvoroçou a cidade. As pessoas revezavam-se em frente ao pequeno sobrado de pedras onde ela vivia, chamando seu nome e batendo à porta. Ela não abria, tampouco fazia qualquer movimento, a fim de não ser descoberta. O delegado local foi informado do desaparecimento. O repórter da única rádio da região noticiava o curioso e intrigante caso da moça que havia desaparecido sem deixar rastros. Todos se perguntavam sobre o que teria acontecido a ela, que sempre foi previsível, amável, bem relacionada, caridosa e prestativa. As companheiras do grupo de oração fizeram vigílias em frente à sua casa e na igreja. Munidas de boa vontade e enormes velas, rezaram para que ela reaparecesse, pondo fim ao mistério. Os homens da comunidade reuniram-se em grupos para realizar buscas nos bosques e cachoeiras das redondezas, além da distribuição de cartazes com fotos pedindo qualquer tipo de informação sobre seu paradeiro.
No fim do nono dia, após ter realizado todo tipo de penitência, ela estava novamente ajoelhada em frente ao oratório, perante as dezenas de imagens de Santo Antônio, Nossa Senhora, São Sebastião, Santo Expedito, Menino Jesus de Praga, Nossa Senhora de Fátima, uma reprodução em resina da Santa Ceia e um esplendor com o Divino Espírito Santo, a fim de concluir a novena em honra a Santo Antônio. “Vos rogo bendito Santo Antônio, que me faças participante das incontáveis misericórdias que concedeis a quantos vos invocam com devoção e confiança.” A palidez de seu rosto e as olheiras fundas eram o retrato do limiar entre loucura e sanidade. Debilitada, ainda mais magra que o habitual, cabelos que nem de longe lembravam o característico coque na nuca. Suas roupas tornaram-se apenas farrapos imundos que mal lhe cobriam o corpo, sua pele estava arranhada, coberta de hematomas e alguns cortes onde o sangue havia coagulado, deixando marcas semelhantes às representações das chagas de Cristo no calvário. As unhas roídas, curtíssimas, estavam cobertas com uma camada escura de poeira do assoalho arranhado, pele dos braços, pernas e rosto e sangue dos ferimentos que havia causado ao longo dos dias de intensa penitência.
Rezou novamente o terço. Quando estava concluindo Salve Rainha pela última vez, os sinos da igreja anunciaram o início da missa. Os sons invadiam seu corpo como um tufão. Ela caiu sobre o chão, contorcida em espasmos avassaladores. A cada nova badalada seu corpo todo se fechava mais sobre si mesmo. Suas mãos brancas, de dedos finos e longos, percorreram, ávidas e trêmulas, a nuca, os seios flácidos e desceram pelo ventre árido até pousarem crispadas entre as coxas alvas. No ultimo toque do sino, seu corpo todo se contraiu e ela soltou um bramido, misto de dor e prazer. As imagens de sua juventude, dos ensinamentos da eucaristia, do padre paramentado no altar de braços abertos como se fosse um Cristo negro, dos livros de romance da adolescência, dos sonhos perdidos e das ilusões desfeitas misturavam-se em sua mente.  “Ainda não vos havíeis procurado a vós mesmos: então, me achastes. Assim fazem todos os crentes; por isso, valem tão pouco todas as crenças. Agora, eu vos mando perder-vos e achar-vos a vós mesmos; e somente depois que todos me tiverdes renegado, eu voltarei a vós.”3 Então, depois de cessados os espasmos, todos os seus músculos relaxaram, seu rosto foi tomado por uma expressão serena e, exaurida, pode finalmente descansar.
Amém.
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1 Este e todos os demais trechos de orações aqui inseridos foram retirados do site http://www.oracoes.info/,  dedicado à Santíssima Trindade e fazem parte das Novenas ou Trezenas em honra a Santo Antônio.
2  Trecho da oração Creio em Deus Pai.
3 NIETZSCHE, F. W. Assim falou Zaratustra. Tradução de Mário da Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. 14ª edição.

sexta-feira, 16 de março de 2012

PARA DEPOIS DA TEMPESTADE

“A tempestade” (1913), por Oskar Kokoschka

“Aquele gosto amargo do teu corpo
Ficou na minha boca por mais tempo.
De amargo, então salgado ficou doce,
Assim que o teu cheiro forte e lento
Fez casa nos meus braços e ainda leve,
Forte, cego e tenso, fez saber
Que ainda era muito e muito pouco.”

(Legião Urbana – Daniel na Cova dos Leões)


Algum lugar ao sul do Equador, dia qualquer de março de dois mil e pouco ou dois mil e muito.

Depois que você foi embora pela última vez, tomei banho novamente para apagar as marcas do seu corpo no meu. Nem com toda água e com todo sabonete de lavanda conseguirei me desfazer do seu cheiro em minha pele. Tentei todos os tipos de banhos aromáticos possíveis: alecrim, arruda, alfazema, perfume barato. Tentei incensos, meditação, terço e novena. Tentei outros corpos e o meu próprio. Tentei banho de sol para energizar, de chuva para refrescar, de mar para purificar, de sete ervas para descarregar. Tentei quarto escuro para desabar. Tentei sacristia, bar e divã para confessar. Tentei vodca, gim, tequila e cachaça para desabafar. Mas você não é solúvel em álcool. Tampouco em crenças vãs. Pelo contrário, sua presença é potencializada pelo álcool, pelos blues ácidos, pela voz melancólica quase em falsete de Holiday e pelos sussurros do trompete de Baker. 

Suas marcas permanecerão em minhas entranhas para sempre, talvez. E carregarei essas marcas sem orgulho, sem saudade e sem glória. Desejo – e ao mesmo tempo não desejo - que você se torne apenas uma lembrança remota no meu peito incapaz de amar direito. Quem sabe um dia eu acorde, kafkiano, um inseto e deixe de sentir o que sinto neste momento. Ou ainda, de uma forma mais romântica, cafona e piegas – ao meu melhor estilo – eu saia do casulo onde voluntariamente entrei para lhe esperar e descubra, depois de não ter me tornado uma borboleta e sim uma lagarta mais disforme e mais antiquada, que o que sinto foi uma criação minha e não havia nada a ser esperado. O que sei é que agora você está cada vez mais vivo em mim. Dolorosamente vivo. Queria lhe apagar da minha vida como fui apagado da sua, se é que algum dia estive vivo em você.

Sob a luz do fim de mais um dia inglório, deitado no chão da sala que já abrigou seu corpo envolvido pelos meus braços, fumo mais um cigarro, brindo com mais um gole de café forte e sem açúcar, como você gosta, preparado na mesma cafeteira que nos confortou nas pouquíssimas manhãs sem volta que tivemos. Na vitrola antiga, coloquei o disco que tem aquela música que cantamos juntos, bêbados, lembrando nossa longínqua adolescência, numa das madrugadas insólitas e deliciosamente amorosas que tive ao seu lado, mesmo que você não percebesse isso. Nas paredes agora reverberam os versos: “E o teu medo de ter medo de ter medo / Não faz da minha força confusão.”.  Acho que é isso que queria lhe dizer agora, se pudesse olhar nos seus olhos. Mas o máximo que consigo fazer é tamborilar os dedos na borda da xícara, meio marejado e distante de tudo, enquanto as cinzas do cigarro entre meus dedos maculam nosso chão.

Eu sabia, desde sempre, que viveríamos uma espécie de crônica de uma morte anunciada. E você seria meu Santiago, errático e louco. E eu, não menos louco, contido em mim mesmo, para não explodir em mil pedaços. Sei que você chegou querendo partir. Partir assim sempre fez parte da sua mise-en-scène. E eu querendo que você ficasse aqui. Para sempre. Ou até o dia em que o gigantesco planeta se chocasse contra o mundo precário que criei para você habitar, como no filme do Von Trier que assisti há algum tempo. No dia do anunciado fim, tudo viraria nada e nada seria tudo o que nos restaria.  Ainda assim eu queria que existisse algo forte que nos ligasse, mesmo que isso fosse destruído no dia seguinte. Mas estava escrito no seu roteiro partir dessa forma violenta e dolorosa para todos, principalmente para você.

Você foi uma promessa de algo que nunca será. E eu serei aquilo que jamais deveria ser. Serei o equívoco, o engano, a condenação. Eu poderia usar neste momento um clichê meio Roberto Carlos, que é definitivamente a minha cara, dizendo que você foi o melhor dos meus erros. Não direi. Porque não é verdade também. Não é racional o que sinto. Sei que algo brilhava em mim quando estava ao seu lado, uma força estranha resplandecia no meu peito, embora essa força estranha não me levasse a cantar. Mesmo quando perambulávamos perdidos numa noite suja qualquer de uma cidade incerta que não era nossa. Não tivemos uma cidade, não tivemos um mundo, não tivemos uma vida. Tivemos fragmentos de promessas veladas de uma existência que você negou, porque é um menino acuado, escondido no quarto escuro, vendo a vida pelo buraco da fechadura.

As paredes caiadas do pequeno quarto onde tento (em vão) encontrar uma remota e ilusória paz possuem as marcas do pouco que fomos nós. A cama ainda está quente do seu corpo morno, os travesseiros guardam os fios dourados dos seus cabelos revoltos e os lençóis guardam as marcas do que jamais poderei chamar de “Amor”. Porém não sinto raiva.  E não deixo esses sentimentos de lado numa atitude búdica. Pelo contrário, sou o pior dos humanos. Sou raivoso, vingativo, egoísta. Mas agora simplesmente não sinto raiva. E talvez nem saiba ao certo o que sinto. Resignação, talvez. Pela vida desperdiçada, pelo amor que não aconteceu, pela inevitável dor e pela inexorável perda.

Estou ainda sob efeito dos excessos de ontem, que serão os mesmos de hoje e talvez os de amanhã. Não consigo saber até quando essas falhas de minha personalidade perdurarão. E lhe confesso isso porque você sabe melhor que eu que abandonar velhos hábitos é difícil para pessoas como nós. Eu fui a prova, na sua vida, de que você só sabe sucumbir aos seus desejos verdes, primários e egoístas. Não estou longe disso também. Por isso não lhe julgo, apenas comungo da dor que sei que, lá no fundo, você sente.

Resta-me agora fazer o que sempre faço, após minhas catástrofes pessoais: juntar, não sem dor, os poucos pedaços que reconheço e reinventar minha própria vida. Não lhe digo isso para que sinta pena, nem para servir como exemplo para você. Pelo contrário. Não acho nem muito digno o que decidi fazer. Faço isso porque é só o que me resta. E nem sei por que digo isso agora. Seguirei em frente, errando como de costume, mas tentando errar melhor. Não há como voltar atrás e não vejo outro caminho a não ser seguir em frente.

Quero lhe desejar uma existência feliz, onde quer que esteja, e da forma que escolher. Quero que tenha caminhos serenos e que suas escolhas sejam acertadas. Queria poder lhe abraçar com força descomunal, como se pudesse arrebentar com os braços toda defesa que existisse e que pudesse nos afastar. Queria poder lhe querer sempre e muito. E bem do fundo, desejo que você queira a si próprio da mesma forma.

Carinho imenso,
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* P.S.: Coloquei esta carta num envelope, lacrei, selei e não postei. Abri, reli e decidi não enviá-la. Um dia, quem sabe, você saiba da minha própria boca o que senti, quando nada disso fizer mais sentido algum ou quando eu encontrar um sentido real para tudo. Quem sabe encontre esta carta, amarelada pelo tempo, perdida no meio de um livro velho de Tolstói, porque ando meio Greta Garbo, a Ana Karenina no filme de 1935. E numa grande associação livre, lhe vejo agora um tanto Fredrich March, o Conde Vronski do mesmo filme. Além disso, as frases “as famílias felizes são todas iguais; as infelizes são infelizes cada uma a sua maneira", que iniciam o livro, não me saem da cabeça. Quem sabe você encontre o envelope já meio amassado, como se fosse uma garrafa jogada ao mar contendo um bilhete, para quem sabe ninguém e quem sabe nunca mais. Ou a quem possa interessar.