sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

DOS RITOS DE PASSAGEM

Photoallegory of Sarolta Bán 

“E é hoje o dia da faxina mental. Jogue fora tudo que te prende ao passado, ao mundinho de coisas tristes. Fotos, peças de roupa, papel de bala, ingressos de cinema, bilhetes de viagens e toda aquela tranqueira que guardamos quando nos julgamos apaixonados.
Jogue tudo fora, mas principalmente esvazie seu coração. Fique pronto para a vida, para um novo amor.”
(Carlos Drummond de Andrade – Faxina na Alma) 

“Amar é mudar a alma de casa”. Esta frase de Mário Quintana tem me perseguido nos últimos dias. Perseguição boa, diga-se. Tenho sido perseguido por memórias, afetos, lembranças de um passado distante e de um passado recente, enquanto remexo baús e reencontro coisas bonitas, que foram guardadas com carinho e acabaram esquecidas, porque esquecer é tão necessário quanto relembrar.

A frase está impressa em uma caneca de louça amarela, onde também está estampada uma caricatura do autor. Foi um presente recebido há muito tempo, de uma pessoa que foi muito importante no passado, com quem vivi durante alguns anos, mas que hoje não existe mais em minha vida. Encontrei-a guardada no fundo de um armário, quando fazia a chatíssima e sempre necessária limpeza de final de ano. Encontrá-la me fez pensar nos significados que dou às coisas. 

No início, a caneca tornou-se um objeto de decoração na “nossa casa”. Mudei minha alma de casa e a antiga morada deixou de ser “nossa”. Tempos depois, na morada seguinte, minha e da minha alma, a caneca virou um porta canetas sobre minha escrivaninha, que ficava de frente para uma janela ampla, por onde entrava toda a luz que na casa anterior eu não tinha. Um dia a luz dessa casa se foi e mais uma vez mudei-me.

Em meu novo lar, esse porta canetas virou simplesmente uma xícara. Quando recebia visitas, oferecia nela bebidas quentes aos meus visitantes. Eu mesmo usei-a pouquíssimas vezes para beber algo. Não sei conscientemente por qual razão nunca a utilizei no meu dia a dia. Vez ou outra alguém comentava algo sobre o objeto, mas para mim não passava mais de uma bonita caneca amarela com a cara do Quintana estampada num sorriso meio irônico.

Como tudo é impermanente, mudei novamente de casa. A caneca me acompanhou, por questões de necessidade, porque eu precisava do utensílio. Mais uma vez acabei substituindo-a por outras xícaras, copos e canecas, comprados ou presenteados por outras pessoas que habitaram o meu mundo. E ela foi ficando de lado, indo cada vez mais para o fundo do armário onde guardava louças, encoberta por novas lembranças.

É por isso que gosto de fazer uma faxina no fim de cada ano. Aproveito esse momento de me desfazer de coisas que não servem mais para fazer meus balanços e reavaliar todo o ano que vivi. Repenso meus erros e meus acertos e vejo no que progredi e no que regredi. Separo três caixas: na primeira aquilo que realmente necessário; na segunda, o que talvez seja; e na terceira, tudo aquilo que não me serve mais que deverá ser descartado para me libertar de toda a energia estagnada ao longo do ano. Guardo o conteúdo da primeira e os das duas outras me desfaço, dispenso, doo, coloco no lixo. Faço essas reflexões sobre minhas posturas e minhas atitudes o tempo todo, em qualquer época do ano, mas costumo esvaziar armários nesta época. Essa materialidade de separar coisas que não servem mais dá outro clima à reflexão.

Percebo que a vida tem sido um devir cada vez mais intenso. Mudei de cara e cabelos, mudei de olhos e riso, mudei de casa e de tempo, mudei de roupas e vícios, mudei minha alma de morada. Tive também minha casa abandonada por outras almas em outras situações. Mas percebi que tenho mais experiências acumuladas na primeira caixa que nas duas seguintes. Minha caixa das coisas necessárias ao coração e ao espírito está muito mais cheia neste ano que as caixas com as coisas que devem ser abandonadas.

Mais uma vez refaço trajetos e ressignifico experiências. É neste momento que me reencontro com essa caneca. Fiquei um tempo com ela nas mãos, como se fosse um relicário, resgatando e reconstruindo memórias. Então, embrulhei-a em jornais velhos e coloquei-a na primeira caixa. E junto com ela, as memórias de todas as pessoas que passaram pela minha vida neste ano. Algumas dessas pessoas ficaram, outras seguiram seus caminhos, mas de alguma forma todas ficarão gravadas indelevelmente nas minhas retinas. A caneca vai comigo para minha nova morada, porque agora é hora de mudar a alma de casa mais uma vez. Talvez sirva para eu preparar cup cakes para meus queridos, cobertos com confeitos coloridos ou chantilly, ou para colocar ração para o meu gato, quando eu tiver um.  

E nesses dias de retrospectiva, no meio de toda a agitação consumista, festiva e espiritualista desta época, onde sempre tem um novo patuá para amarrar na cueca da cor do orixá regente do ano, para que o ano que vem seja “o ano”, penso nas minhas maneiras de viver, de buscar amor e de guardar memórias. Penso na minha forma de atravessar meus ritos de passagem e em como construí minha história até agora.

Não acredito em listas de metas, porque não costumo atingi-las, nem de desejos, porque sempre quero muito, mesmo que pareça ser modesto, tampouco faço promessas para o ano que vem, porque no fundo sei que não cumprirei. Apenas renovo esperanças. Não no ano que começa, nem nas pessoas, mas em mim mesmo. Talvez seja o máximo de generosidade que consiga exercitar comigo. Deixo que a vida me leve, que se seja suave, que seja consciente, que seja plena. Lembro-me de Drummond, que falava sobre o Ano Novo e sobre as possibilidades de renovarmos esperanças e zerarmos os contadores de tempo. É dele a frase: “É dentro de você que o Ano Novo cochila e espera desde sempre”. 

Acho que é isso. Não é no calendário maia que está a resposta para nossas vidas. A verdade nunca esteve lá fora, contrariando o que diziam no seriado. O Ano Novo vai ser o início de mais uma sequência de dias, que inicia e finda, finda e inicia e vice versa, mesmo que digam as más línguas (maias) que será o último. Para muitos será mesmo o último, para outros será o primeiro, mas para a maioria será apenas um ano a mais, parafraseando Saramago. Não sei ainda o que o destino reserva para a caneca amarela do Quintana ou para mim. Quem sabe no próximo ano ela e eu tenhamos lugares completamente novos. 

sábado, 17 de dezembro de 2011

OS TONS PASTÉIS DE ALMODÓVAR


Para Josi, com carinho.

Quero deixar claro que não farei spoiler aqui. Não vou ser mais um chato que sai do cinema e contando o final do filme para aqueles que estão aguardando na fila a sessão seguinte. Tampouco quero fazer uma resenha crítica. Quero fazer o que sempre faço depois do cinema (e não somente): tirar os sapatos, acender um cigarro, beber um chopp e falar sobre o que senti quando saí da sessão. E acho que todos deveriam assistir ao filme antes de ler o que escrevi aqui.


Desta vez ele chegou menos rojo y caliente. Cá entre nós, tenho a impressão que esse moço tá diferente. A crítica especializada, que não é o meu caso, diz que este filme é um marco em sua carreira, sendo um divisor de águas na filmografia do diretor. Em La Piel que Habito, a nova produção de Pedro Almodóvar, o diretor inova no gênero de terror, fazendo um Thriller que conta a história do conceituado cirurgião plástico Robert Ledgard (Antonio Bandeiras), que após sua mulher Norma (Blanca Suárez) sofrer um acidente de carro, onde tem seu corpo desfigurado na explosão do veículo, se interessa pela criação de uma pele com a qual poderia curá-la. Anos depois, ele consegue cultivar esta pele em laboratório, aproveitando os avanços da ciência e atravessando terrenos proibidos, como o da transgênese e a utilização de cobaias humanas. Esse é o ponto de partida de onde as cortinas se abrem e a trama toda se desenrola.

Em minha pobre opinião de leigo, espectador e fã - e ser fã talvez me tire o direito de criticar imparcialmente - não vi aquele Almodóvar visceral, intenso, colorido, ilógico e debochado, que contrasta alegrias e tristezas. Vi um diretor um tanto pasteurizado, numa narrativa ora fria e contida, ora contundente e violenta, porém meticulosa e de precisão cirúrgica, como o protagonista da trama. O filme é genial em vários aspectos, mas não traz aquele “fogo uterino” que arrebata e incendeia a gente por dentro na cadeira do cinema. O fato é que La Piel Que Habito não me causou a mesma estupefação dos filmes anteriores. Não sei se ando meio desacreditado em tudo, viciei o olhar na mesmice ao ponto de não ver o novo, ou se eu mesmo criei uma pele artificial para Almodóvar habitar. Pele esta que, como no filme, não era a própria e jamais seria. Por mais que eu quisesse. E faço um mea culpa: faço isso com as pessoas às vezes. E o que fiz com Almodóvar foi julgar que talvez não coubesse nele a pele de diretor de Thriller de terror psicológico, porque me identifico muito com os filmes que relatam dramas familiares com cores fortes, do ponto de vista de personagens femininos. E Almodóvar, para mim, são essas mulheres fortes, esses travestis intensos, esse vermelho explosivo. Não me atrai tanto o que é contido, frio e sisudo. Estou mais para Mulheres à Beira de Um Ataque de Nervos que para Gritos e Sussurros, mais para Tudo Sobre Minha Mãe que para Sonata de Outono. E quem me conhece entende o que quero dizer.

Para aqueles que já estão preparando as tochas e as pedras para me perseguir, reconheço que vi, lá no fundo, as “cores de Almodóvar”, apesar do estranhamento inicial. Identifico o iconoclasta “das antigas”, de muitas emoções e poucos recursos, e o cineasta mais maduro da atualidade, obcecado por explicar suas referências. Em uma entrevista o diretor chegou a dizer que tinha a intenção de fazer um filme de terror pouco convencional, ao adaptar a obra Tarantula (Mygale), do escritor francês Thierry Jonquet. E certo, ele consegue. La Piel Que Habito é um filme denso, há uma tensão e uma atmosfera de violência constante, causa desconforto e certa repulsa a algo que não identificamos o que é. Aí que vi o “velho Almodóvar”. Ele continua remexendo nossas vísceras e pondo o dedo em nossas feridas mais íntimas e escondidas, nos tirando da zona de conforto, tão cara a muitos, e nos desestabilizando bravamente.

Tecnicamente, Almodóvar investe na clausura dos ambientes, não apenas dentro bunker em que a misteriosa Vera (Elena Anaya) vive, meio mítica, mas de uma forma geral. A beleza estonteante de Elena Anaya faz com que os olhos não sejam tirados dela, sempre inebriados com aquela personagem tão paradoxal e instável. Em meio a tons frios e obras de arte que remetem diretamente ao tema central do filme, representando corpos nus e sem rosto, suas cores saltam os olhos quando aparecem meio à penumbra ou até mesmo  nos planos fechados.  É bastante utilizada a técnica de grandes planos de cima para baixo, chamados planos plongè, dando a ideia da pretensa superioridade do médico que quer brincar de Deus, quando manipula seus experimentos e as vidas das pessoas que o cercam, transgredindo normas para satisfazer seus desejos.

É possível identificar sua linguagem própria na fotografia, nas atuações de Antonio Banderas, que volta a ser o alvo da lente de Almodóvar 22 anos depois de Ata-me, e da estupenda (e eterna) Marisa Paredes, menos diva e mais mulher neste filme, e principalmente no roteiro imbricado, profuso e profícuo, apesar de algumas coisas terem escorrido por entre os dedos do diretor. Mas vi um Almodóvar em tons pastéis com algumas pinceladas de carmim e fúcsia ali e acolá. São identificáveis na narrativa os elementos do terror, obviamente, como o cientista louco e a cobaia. Porém, não chega a ser um filme de gênero porque existem simbolismos demais nas ações, bem típico do diretor, que acabam encobrindo-as, embora os símbolos presentes sejam realmente utilizados como tais, como as lâminas, as navalhas e as armas.

Almodóvar brinca de Hitchcock, deixando várias pistas sobre a trama, aparentemente desimportantes, enquanto transita pela narrativa através dos característicos flashbacks. A trilha sonora original, a cargo de Alberto Iglesias, é bastante apropriada à atmosfera da trama e a participação da cantora Concha Buika é primorosa. Há uma referência bem clara ao interessantíssimo filme Les Yeux Sans Visage (Os Olhos Sem Rosto), de Georges Franju, de 1960, e também ao famoso personagem do Dr. Frankenstein, de Mary Shelley. Em todos os casos há a figura do homem da ciência, vaidoso, soberbo, talentoso e sem qualquer escrúpulo, ultrapassando limites éticos e morais, brincando de Deus não só por mera ambição, mas em nome da primazia de uma conquista ou da superação de uma culpa excruciante, um homem sem limites para atingir seu gozo e estabelecer uma lógica particular de justiça.

Assim como no clássico Frankenstein, o criador Robert Ledgard é traído. Sua obra, a pele indestrutível e perfeita criada para ser habitada por Vera, não lhe coube. Ele quis mudar de pele, retroceder no tempo, vingar-se, satisfazer seus impulsos, mas foi traído pela soberba e pela perfeição de sua obra. Como Basil Hallward, cuja obra de arte eternizou a beleza e juventude de Dorian Gray, no livro O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, a beleza e a perfeição não foram suficientes, por serem instáveis e efêmeras, e ambos sucumbiram. Vera tem um corpo construído para corresponder a uma imagem perdida. Ela é uma espécie de Eva que se constrói por subtração e vive no limbo da vaga memória da forma original mítica. Ledgard não tem limites para seus experimentos e castra completamente a liberdade de Vera que, por sua vez, desenvolve por ele uma dependência bastante controversa. Paralelamente, Marília (Marisa Paredes), a fiel empregada da casa de Ledgard, tem a função a ajudá-lo, sempre à sua sombra, porém com papel fundamental.

Almodóvar brinca brilhantemente com questões profundas e feridas abertas de nossa sociedade. Lança um olhar sarcástico sobre as formas de alienação frente à angústia, voyeurismo e fantasias de castração, além de trazer temas recorrentes, como a transexualidade, transgressões sexuais e relações de poder. O transtorno psicológico dos personagens é apresentado de forma interessante, fazendo com que ali não tenhamos vilões nem mocinhos, mas pessoas presas em mundos diversos e novos, ultrapassando os limites do possível e do real para levar a cabo um ideal de verdade, concretizar uma realidade existente apenas no interior de uma mente doentia. Somos levados a questionar quantas vezes não infringimos regras éticas e morais nas nossas relações, transgredindo normas e negligenciando pessoas para que um mundo criado por nós faça sentido. A todo tempo, questionamos a paixão do protagonista pela ciência contraposta à paixão por sua esposa, ou mesmo a angústia sobre os acontecimentos relacionados à sua filha.

Claro que existe toda sorte de leituras psicanalíticas possíveis para essa história. Arrisco uma, talvez, que diz respeito ao mistério sobre o corpo próprio, o corpo sexuado, as construções relacionais do ego dadas pela via do corpo, a primeira forma de relação estabelecida entre indivídulo e mundo exterior, a memória do corpo, e a diferença entre os sexos. Pensemos no Banquete, de Platão, onde é apresentado o ser andrógino que estaria na origem dos sexos. Cindido, esse ser teria dado origem ao macho e à fêmea, ao masculino e ao feminino. A androginia, nesse sentido, seria expressão da nostalgia de um estado original, inscrito no inconsciente coletivo, que ganha forma na mitologia.

Saí da sessão com me interrogando, angustiado: Mas afinal que pele habito? Que pele quero construir para vestir a mim e aos outros? Quantas vezes tentamos fazer uma pele perfeita, resistente, para cobrir o corpo alheio, estranho, na esperança de que essa pele seja assumida como própria? Construímos uma pele artificial para outro ser habitar. Projetamos nossos anseios, nossos desejos, nossos sentimentos de solidão, dor, perda, vingança para um ser externo ao nosso mundo, tentando adequá-lo às nossas necessidades, forçosamente. Por mais que tentemos criar uma nova pele para habitarmos ou para ser vestida por outro, sempre tem algo de essencial que permanece e isso vem à tona, hora ou outra.

Almodóvar não deixou de ser Almodóvar. Mas é outro Almodóvar, em outro momento, com outra narrativa. Ele não criou uma pele para habitar, talvez tenha mudado espontaneamente de pele, o que é natural. Ele mostra que é possível mudar de rumo sem perder a essência. Por isso sugeri que este texto somente fosse lido por aqueles que já assistiram ao filme previamente. Além de ser um convite para um chopp, mesmo virtual, depois da sua sessão, não quero criar uma pele para você habitar.


 [link da música “Por El Amor de Amar” - Concha Buika].



Ficha Técnica: La Piel Que Habito. Espanha, 2011. Direção: Pedro Almodóvar. Roteiro: Pedro Almodóvar, Thierry Jonquet(romance). Elenco: Antonio Banderas (Robert Ledgard), Elena Anaya (Vera Cruz), Marisa Paredes (Marilia), Jan Cornet (Vicente), Roberto Álamo (Zeca), Eduard Fernández (Fulgencio), José Luis Gómez (Presidente del Instituto de Biotecnología), Blanca Suárez (Norma Ledgard), Susi Sánchez (Vicente’s Mother), Bárbara Lennie (Cristina), Fernando Cayo (Médico).

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

REVEZ(S)ES

Rafael Perez: “Relationship VIII


[Para ler ao som de Juan Carlos Cobian – Nostalgias]

 
Então temos um trato: Você me dispensa e eu fico arrasado. Eu continuo lhe querendo, mesmo de longe, e você pode seguir sua vida como se eu não tivesse atravessado seu caminho. Voltamos à estaca zero, fica tudo igual, zeramos os cronômetros. Ou nada disso aconteceu e foi o mundo que virou do avesso.



Trouxe este presente para agradecer seu carinho. Espero que você goste. Não escolhi muito, não. Nem tinha pensado em fazer uma surpresa para você. Vi uma vitrine e lembrei-me dos seus olhos, tão doces e tão tristes, e achei que esta pequena prenda deveria ser sua. Além desta entrega especial, vim aqui lhe dizer que lhe quero um bem enorme. E dizer que a gente não manda no coração, que ninguém é inocente neste jogo de brincar de viver e nem sempre fazemos escolhas certas.

Sem querer fazer um grande drama, mas já fazendo, porque essa é definitivamente minha natureza, estou acostumado a ser dispensado. Sou bem cafoninha quando estou apaixonado, você sabe. Sou de tentar grandes gestos, grandes façanhas, grandes feitos. E sou das coisas simples também, das singelezas cotidianas, de café da manhã na cama, esperar para alcançar uma toalha sequinha no banho e entregar chinelos para confortar os pés cansados no fim do dia.

Até que encaro numa boa o fato de ter sido quase sempre abandonado. Sempre tem uma música que cante minha dor de cotovelo e mais uma dose para me consolar, desde mi triste soledad e sempre tem a minha mesa no mesmo bar para emborachar mi corazón. Você me conhece há muito tempo, não é mesmo? Quanto? Uns cinco anos? Quantas vezes eu fui abandonado e quantas vezes abandonei alguém? Você lembra? Acho que nunca abandonei ninguém, sempre foi meu papel sofrer por ter sido abandonado. Você acompanhou, com lealdade impecável, todos mis fracassos y mis angustias de sentirme abandonado. Mi vida es un tango, Hermano.

Faz um bem danado ser cortejado, né? Eu não tive muitas experiências dessas de ser objeto de desejo. Isso mexe com meus brios. É delicioso ver que tem alguém cujos olhos brilham só de ver você. E quem disser que não fica envaidecido, mente. Mas não, não gosto dessa situação. Estou tão acostumado a ir à luta e batalhar (muito!) pelo que quero que não precisar fazer nada além de existir, sorrir e estar ali é meio despropositado para mim. Fica uma sensação que a outra pessoa precisa saber algo sobre mim que não está conseguindo ver. E fica uma obrigação cheia de culpa cristã, meio amarga e meio pesada, de retribuir o carinho ofertado. Fico angustiado porque não sei muito bem lidar nem com as minhas próprias frustrações, quanto mais com as frustrações que sou capaz de causar nas pessoas.

Por falar em angústias e frustrações, vim aqui por um motivo em especial. É muito triste ver alguém que gosta da gente realmente e não sentimos nada, absolutamente nada, além do carinho que dispensamos a qualquer ser humano que faz de tudo para nos agradar. Quero dizer que sempre me coloco no seu lugar. No fundo, sei que essas operações tendem, invariavelmente, a se tornarem kamikazes. E quem se ferra sou eu porque serei detestado no momento seguinte e pelo resto da vida. La verdad es que sos um tango en mi vida, Hermano, un tango gris.

A situação de ter que dizer “não quero” é muito mais desconfortável para mim que para você. Y aquí vengo para eso, Hermano: O fato é que você tem interesses e desejos que não poderei satisfazer. Porque eu quero outras coisas e não poderei ser o que você espera de mim. Além disso, você espera de mim coisas que não sou e não poderei jamais ser. É... você me criou. Esse ser que você diz amar não existe. Não vou poder dizer que e problema não é com você. Porque é com você, sim. E é comigo também, claro.

Fico constrangido e sinto vergonha por nós dois. Por mim porque acho que não é nada nobre da minha parte essa covardia de não dizer que não adianta você fazer nada para me agradar, porque não vai ser suficiente para eu mudar meus sentimentos. Não acordarei, num passe de mágica, numa manhã ensolarada de primavera e descobrirei que te amei a vida toda e que você é a pessoa com quem quero ficar pelo resto dos meus dias. Não que não goste de você, não é isso. Eu gosto muito, mas justamente por gostar não acho honesto da minha parte apenas dar um sorriso amarelo enquanto você acha que meu sorriso é de admiração porque você fez coisas grandiloqüentes por mim, quando na verdade queria dizer: “Desista! Nada vai adiantar. Só quero que você me faça companhia, sem adereços, sem performances e sem tentar me convencer que lhe amar vai me salvar. Levante agora do chão, não é ajoelhado aos meus pés com essas promessas que você vai me persuadir. Você está sendo ridículo tentando me comprar com declarações pobres e presentes caros!”

Sinto vergonha por você porque você se humilhou todos esses anos, implorando migalhas de atenção que eu não podia oferecer. Porque embora você não veja dessa forma, acho que não foi bonita sua atitude de cercar todos os meus amigos para se infiltrar no meu mundo, fazer serenatas de madrugada debaixo da minha janela, me acordar com ligações melosas e declarações sussurradas com a voz pastosa e a língua enrolada pelo álcool, fazer vídeos com suas memórias da gente, memórias que eram só suas e não minhas. Tornou-se pesado receber seus inúmeros presentes. Você me seguia onde eu estivesse. E suas surpresas sempre vinham acompanhadas de cartões embebidos em seu perfume, porque eu tive a infeliz ideia de dizer que gostava do perfume que você usava e você começou a borrifá-lo em tudo que tocava. Passei a odiar aquele cheiro almiscarado, forte e levemente adocicado. Era o cheiro das suas mãos finas, frias, macias e úmidas. Era o cheiro que ficava impregnado na minha pele depois que você me tocava intencionalmente, sempre quando eu estava distraído ou quando não conseguia evitar contato físico. Aquele cheiro ficava impregnado em mim pelo resto do dia ou da noite, como uma marca de condenação. Eu estava condenado a ter você em mim, quisesse eu ou não.

Assusta-me ser colocado num pedestal, meio sacralizado. Foi isso que você fez. Colocou-me à força num pedestal e borrifou em mim seu sufocante perfume almiscarado que me deixa nauseado. Sei que não sou da forma como você me vê. E me sinto na obrigação de dizer que não é nada disso, ou quase nada. Você deve pensar que estou perdendo a grande chance de ser feliz ao lado de alguém que realmente gosta de mim, que você é capaz de me fazer feliz. Acredito que você tem todos esses atributos que diz ter. Acredito que você é capaz de fazer alguém feliz, sim. Você tem virtudes, tem qualidades, tem caráter. Mas não vai me fazer feliz. Porque aqui dentro de mim não pulsa aquele algo inominado que deveria pulsar toda vez que eu olhasse para você. Meu coração não dispara, minhas pupilas não dilatam, não tenho sudorese quando vejo você. Não acha isso sintomático? Eu acho. Se isso não acontece comigo só pode ser por um motivo.

Não tenho muito tato para dizer as coisas. Talvez eu seja direto demais. Em situações desconfortáveis como esta, de dizer adeus porque sou incapaz de corresponder aos seus sentimentos, tenho vontade de lhe colocar no colo, contar uma história bonita, fazendo um afago em seus cabelos e dizer: “Siga seu rumo, vai ficar tudo bem. Você vai achar alguém muito mais legal que eu. E eu vou achar alguém também, talvez não tão legal quanto você. Mas a gente não manda no coração, não é mesmo?”. Então, depois que você adormecesse, eu levantaria e iria embora sem olhar para trás. Sem ver seus olhos, ainda marejados pelo abandono, e sem mostrar os meus, marejados pela vergonha de ter abandonado você. Mas não sou assim. E é por isso que a hora de ir é agora...Y después, por los dos mi copa alzar, y así poder brindar por los fracasos del amor...




quarta-feira, 30 de novembro de 2011

SOBRE CHICOS, AMORES E BRINQUEDOS


Agora, falando sério e dando um chute no lirismo, por que as pessoas tem tanto medo de se envolver? Por que fogem de compromissos? Por que se escondem daquilo que mais buscam? Por que temem tanto ter intimidade? Conversava com uma amiga sobre esses questionamentos meio neuróticos. Ela contava que passava por mais uma desilusão amorosa – tema que conheço bem - onde estava aberta para um relacionamento, mesmo que a distância, mas a pessoa com quem havia se envolvido não estava disponível ou disposta. Isso me fez pensar na minha própria vida, nas minhas (in)capacidades e nos meus (des)encontros.

Gosto de me relacionar com as pessoas, amando noites afora, fazendo a cama sobre os jornais. Sou casadoiro, até o amor cair doente, nunca neguei. Acredito que, dentro das minhas possibilidades, me permito me envolver, mesmo que seja por um único dia. E relacionamentos de um dia tem sido cada vez mais comuns, mesmo eu querendo que exista um dia seguinte e embora não me satisfaça com qualquer amor, qualquer calor, qualquer favor, qualquer verão. Gosto dessa fase de conhecer alguém, sem me afobar porque nada é pra já,  dando tempo ao tempo, mesmo achando que às vezes as coisas demoram tempo demais para acontecer. Gosto até da insegurança, do frio na barriga, de quando parece que estamos pisando num campo minado (e às vezes estamos mesmo), que passos em falso podem ser fatais, mesmo que não sejam, quando qualquer desatenção pode ser a gota d’água. Parece que todos os sentimentos estão à flor da pele e tudo parece ter uma dimensão muito maior. Acho que pode ter mesmo, principalmente em mentes, eufemisticamente, instáveis e inquietas como a minha.

Já devo ter reclamado disso em outras oportunidades, aqui mesmo, ou num boteco qualquer, depois de ter enchido a cara, porque de tenho esses momentos de choramingar minhas misérias por aí. E meus queridos que agüentem. Porque tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu. Mas o que sinto é que as pessoas estão se tornando cada vez mais intolerantes e imediatistas. Ninguém está disposto a ceder. Parece que tudo pode ser perda de tempo. Ou então, parece que a vida anda tão rápido que qualquer coisa é motivo para descarte e exclusão instantâneos. Reflexos de uma cultura fast-food? Efeitos da globalização dos mercados? Pode ser. Talvez seja porque vivamos tempos de liberdades extremas. Existe muita oferta. Toda sorte de tipos pululam por aí. O que a dinâmica desse mercado possibilita é que possamos ser – supostamente – livres e possamos escolher com mais facilidade e fluidez, ao ponto de descartarmos o que não atende às necessidades imediatas sem o menor remorso. A fila anda cada vez mais rápido e roda mundo, roda gigante, roda moinho, roda pião.

Será que foi isso que nossos pais sonharam para nós em seus anos dourados? Será que foi por isso que eles lutaram nos anos 60? Os meus acho que não queriam isso. Sem falso moralismo. Estou longe de ser moralista (acho). Meus pais são meu grande referencial de relacionamento. Porque vivem uma relação com dificuldades, como todos, mas tem algo que acho fundamental: eles são livres para tentar, todos os dias, fazer a relação que tem dar certo. Eles cedem quando é necessário, dialogam, avançam e retrocedem, discutem quando é inevitável. Porém, eles querem as mesmas coisas, partilhadas, batalhadas, suadas, mas de mãos dadas. E não é só para rimar. Sinto admiração por pessoas que constroem uma vida como eles fazem. Não é inveja, que fique claro, é um sentimento de querer que aconteça comigo também.

Vez em quando encontro pessoas super intensas, viscerais, pulsantes. Mas completamente efêmeras. Sinto-me enganado, confesso. Num dia o que sentem vence tudo, podem tudo, mostram um mundo vasto. No dia seguinte, ao menor sinal de contrariedade, não deixam nem uma almofada para eu sentar na casa que abandonaram sorrateiramente na madrugada. E nesses momentos se encaixa perfeitamente aquele exemplo infantil do menino gorducho e corado fazendo beiço e esbravejando “ou joga meu jogo ou levo a bola embora!”.

Admito que me peguei, em algumas situações, agindo assim, como se tivesse uma pedra no meu peito, mudando de calçada quando aparecia uma flor e dando risada do grande amor. Não é justificativa, mas fui condicionado pelo meio. A explicação é meio cafajeste, mas foi a única viável neste momento. Pardon.

Sinceramente, o que acho que falta hoje com as nossas crianças é um sentimento de carinho pelo que possuem. Isso é diferente de apego. Falo de cuidar daquilo que foi conquistado. Ninguém pensa em consertar o brinquedo que estragou. Quebrou? Troca por outro. Tem sempre um modelo mais novo e mais moderno na prateleira. Nossas crianças crescem e se relacionam com as pessoas da mesma forma. E quando adultos, agem com as pessoas como agiam com seus Playmobil: A relação tá ruim e não funciona mais tão bem? Troca por outra. 

Certo, talvez eu esteja apenas fazendo um desabafo despropositado, enquanto minha taça de vinho está aqui, quase vazia novamente. Mas antes de enchê-la mais uma vez e trocar a música para um sambinha bem alegrinho do Chico Buarque, queria lhe dizer que a coisa aqui tá preta e lhe fazer uma proposta. Se você chegou até este ponto do texto é porque talvez pense como eu. E se for assim, façamos um trato: não vamos nos render às demandas desse mercado selvagem. Vamos formar um foco de resistência contra esse grupo que quer nos “coisificar”. Senhor, senhora ou senhorio, Felino, não reconhecerás! Porque já nascemos livres e não somos Playmobil na caixa de brinquedos!

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

REPARAÇÕES

Two Men”.  Lucian Freud.

... até que um dia, por astúcia ou acaso, depois de quase todos os enganos, ele descobriu a porta do Labirinto.

... Nada de ir tateando os muros, como um cego.

Nada de muros.
Seus passos tinham - enfim! - a liberdade de traçar seus próprios labirintos.


(Mário Quintana: LIBERTAÇÃO. in 'A Vaca e o Hipogrifo')


Bebendo o último gole de vinho tinto ele viu seu passado refletido nas minúsculas gotículas purpúreas translúcidas que restaram na taça. Meio trôpego chegou na janela aberta para o vazio. Era uma noite qualquer de novembro, clara e estrelada. De longe era possível ver a luz prateada da lua iluminar os cantos escuros das calçadas e invadir a penumbra do quarto, lírica e fria. Pela  janela aberta, além da da luz exterior, entrava um leve vento fresco. Como se pudesse se transportar para a rua, sentiu o frio que soprava pelas esquinas atravessando seu corpo, mas não fechou a janela. Suas noites eram frias, mesmo em novembro. E retornou para sua poltrona, aquecido pela manta xadrez com a qual cobria as pernas. Sentiu um breve aconchego. Por instantes sentiu que aquele conforto térmico poderia confortar a alma também. Mas não, nem mesmo acompanhado da inseparável taça de vinho.

Então, imerso em pensamentos e vinho tinto, lembrou de quando era jovem, jovem demais para sofrer com as preocupações que assolavam suas noites insones naqueles tempos frios. Quis retornar ao passado e reviver sensações frescas da juventude. Mas não havia como voltar. Ele já era homem feito. E o tempo é padrasto nessas horas, porque no fundo ele era um menino sedento por viver e se lançar em possibilidades, preso no corpo de um homem de meia idade, amargo, covarde e solitário.

Quando jovem, correu muitos riscos, embora tivesse muito a perder. O tempo passou, ele perdeu tudo o que lhe era mais caro, ao passo que temia cada vez mais perder o pouco – ou quase nada – que lhe restava. E naquela noite fria, embalado por Miles Davis e incontáveis taças de vinho, restava pouco. Tinha algumas memórias numa caixa velha de sapatos na parte mais alta do roupeiro, a pele envelhecida e ressecada, umas dores estranhas em lugares incertos, amarguras e ressentimentos.

Fez, mais uma vez, uma retrospectiva de sua vida, pautado por desilusões, desamores e abandonos. Abandonar e ser abandonado eram temas que ele conhecia muito bem. Deixou que as memórias dançassem diante de si, como salamandras de fogo num ritual. Tentou não se deter em nada, deixando que os pensamentos surgissem e desaparecessem naturalmente, emergindo à sua consciência e retornando ao mais profundo esquecimento. Mas ele não era um bom iogue, não meditava como deveria ser feito, ainda mais em noites brancas e ébrias como aquela. Sabia como exercitar o desapego (afinal, tantas leituras e horas de práticas orientais deveriam servir para alguma coisa), mas não conseguia praticar. Tinha uma percepção lúcida de suas limitações (afinal, tantas horas de psicanálise deveriam servir para alguma coisa), mas não respeitava seus limites.

Alguns pensamentos surgiam e se desfaziam logo depois. Outros, porém, eram insistentes e desses ele não conseguia se libertar. Rostos do passado se formavam em sua frente, alguns sons e palavras ditas surgiam, tomavam forma e agigantavam-se sobre ele, como espectros assutadores querendo devorá-lo. As imagens que se materializavam eram imensas e pareciam fundir-se, uma a uma, em uma única forma, cada vez maior, mais assustadora e mais opressiva. O grande monstro possuía muitos rostos, muitos braços, muitas pernas e dezenas de bocas que falavam simultaneamente frases sem sentido. Sentiu-se sufocado. Mas o que sentiu diante dele não era medo, era uma sensação ruim de reencontrar alguém que o fez sofrer, que foi embora para nunca mais voltar, que o fez chorar noites inteiras, abafado no travesseiro, que o fez fugir e se esconder em inúmeros copos de gim ou corpos desconhecidos.

Trêmulo e cambaleante, como se estivesse em transe, pegou um bloco de papel e uma caneta sobre a pequena escrivaninha de imbuia. Queria registrar suas sensações, fossem elas quais fossem. Deixou que os pensamentos surgissem e escreveu o que veio à sua mente. O que ficou registrado foi uma espécie de diálogo fragmentado entre ele e seus fantasmas mais secretos e assustadores. Mais ou menos assim:

[“... De certa forma fico feliz com sua visita. Tenho tanto pra lhe falar. Achei bonito você se dispor a estar comigo agora, depois de tanto tempo. Eu tenho passado por momentos um pouco tristes e solitários. Sei, porém, que hora ou outra voltarei a ter aquela alegria que tive um dia...

...Queria muito estar com você, sentir você perto, saber como a vida tem lhe tratado. Quero que você saiba que tenho um carinho imenso por você e que você desperta em mim sentimentos ternos. Porém, em dias de tormenta como estes, tenho sentimentos antagônicos e revoltos em meu coração...

...Mesmo sentindo ternura e carinho por você, às vezes sinto mágoa e rejeição. Sei que você vai dizer que não deveria sentir isso, que não tenho motivos, que você não fez nada para que eu sentisse isso, que são criações da minha cabeça. E tenho algumas indicativas que me apontam essa direção...

...Independente de ser realmente rejeitado ou negligenciado por você, o que devo ter como norte não é a negligência em si, mas o que faço dela. E não tem nada a ver com auto-suficiência, tem a ver com desejo de preservação. Que eu tenho e você também tem...

...Tudo é tão fugaz e efêmero...Tenho tateando no escuro, todos os dias, em busca de luz. Em alguns dias tudo parece mais escuro que em outros. Acho que agora, neste exato momento que você me visita, consegui abrir uma fresta para deixar a luz entrar. Mas tem horas que me sinto dentro de uma caixa hermética, em outras dentro de uma bolha de sabão...

...Os dias tem sido mais amargos depois de ter você. Mas tudo na vida é uma questão de interpretação. Só tenho medo de me tornar amargo e não ver mais cores em nada. Sinto às vezes que vejo tudo em preto e branco ou sépia, que vejo tudo em quadros, com molduras que limitam. No fundo, bem no fundo, queria que a vida fosse um caleidoscópio constante nas minhas retinas...

...Acho que escolhemos algumas coisas às vezes por não conseguirmos ver outras alternativas. Mas o que nos diferencia é a nossa capacidade de enfrentarmos o inevitável de forma verdadeira. O que quero dizer com isso é que em algumas circunstâncias a gente toma um rumo na vida que não é o que queríamos, mas acho que é nossa obrigação sermos autênticos na forma de enfrentarmos essas realidades. Eu tinha outros rumos a seguir, mas escolhi este que levava até você. E dentro dumas, mesmo não completamente feliz, porque a gente nunca está feliz com o que tem (e isto é um insight que tive agora) eu tento encarar as potencialidades do momento de cabeça erguida, mesmo sofrendo um pouco...

...Entendo que você também tenta lidar com a solidão como pode. Percebo um pouco como você sente essas coisas e como e como vê a saudade amanhecer. De forma alguma quero negligenciar seus sentimentos, mesmo incompreensíveis para mim e mesmo que eu discorde da sua forma de ser e agir. E acho que são realmente justos. Foram escolhas. Nem certas, nem erradas. Apenas aconteceram da forma que você conseguiu ver a vida. E sim, somos diferentes. Eu consigo viver sozinho, mas não quero, não gosto e não preciso. Essa é a minha escolha. Sei jogar cartas com a solidão, mas não preciso – e não quero – esse jogo... 

...De tudo que existe e existiu entre nós, de tudo que você me disse e eu lhe disse, o que não lhe servir, esqueça. Esquecer é uma prova de amor. Eu disse o que pensava (e continuo pensando), mas são os meus pensamentos. Você não tem que comungar. E se sua escolha foi deixar a vida lhe levar, que a vida lhe leve, bem leve...

...Você não precisa pedir desculpas. Você agiu como é e como pode. Não há o que desculpar quando agimos com o coração. Não achava necessário que nos encontrássemos para um pedido formal de desculpas, mas que bom que você veio me visitar. Sempre soube dos seus limites, sempre soube que essas coisas um dia aconteceriam. E não tenho percepções especiais não, são apenas os sentimentos que trago no peito. Nossos altos e baixos eram, ambos, na minha pobre opinião, ilusões. Não vivemos uma relação, tangenciamos a realidade e tentamos forjar uma vida que não tivemos. Acho triste. Não aconteceu. E a vida vai continuar...

...Eu teria tentado conduzir essas situações de forma diferente, se pudesse. Talvez não de forma melhor, mas sendo mais eu mesmo. Quando dizia que amava você não era da boca para fora, era o que eu sentia de mais profundo e verdadeiro no momento em que dizia. Nem antes, nem depois. E queria ficar você por muito tempo, porque esses sentimentos eram bons e queria entregá-los a você. Eu passei por momentos dolorosos, mas ainda estou vivo. E estar vivo significa que tenho o dever de continuar amando as pessoas e me permitindo encontrar momentos felizes. Eu queria lhe dar meus melhores sentimentos. Você não precisava fazer muito, apenas estar disposto e disponível. Queria ter tido a chance de amar e cuidar. Porque isso faria com que eu me sentisse vivo novamente...

...Acho que devia pedir desculpas por todas as inúmeras vezes que magoei você. Eu tendo a ser agressivo quando estou machucado. “Sou fera ferida”, como cantaria Bethânia. Sou contraditório. Mas me permito ser essas coisas todas porque tento achar o melhor caminho...

...Sinto uma tristeza funda pela maneira que você diz que vê como eu lhe vejo, mas lhe vejo da maneira que você se mostra para mim. E não, não estou preparado para “esses revezes” da vida que você sempre fala, apesar de ter feito todo tipo análise, de LSD a choques elétricos. Não estou preparado do jeito que você quer, não do jeito que você espera que eu aja, não do jeito que nem você mesmo agiria se estivesse no meu lugar. Tenho o sentimento que você, se estivesse no meu lugar, não teria tido uma atitude muito búdica. Eu estava machucado, e estava sendo machucado por você, e não quero passar por isso novamente. Por isso digo: as coisas aconteceram da maneira que aconteceram, não há como voltar atrás e refazer trajetos. Pode ser diferente daqui pra frente? Deve. Minha obrigação é me tornar um ser humano melhor...

...Ainda afirmo que a solidão que você resmunga foi provocada por você. Eu não queria lhe deixar sozinho. Dispus-me de todas as formas a lhe fazer companhia. E se você rechaça minha presença, não há muito que fazer...

...Quanto às minhas expectativas, digo que consigo me virar sozinho. Eu as criei, você não correspondeu. Você foi você mesmo, eu que não quis ver. Acho que meu erro foi achar que, mesmo vendo suas ausências e as minhas urgências, poderíamos ter sido mais. Não fomos, porque o destino não quis assim e não tivemos coragem de mudá-lo. E ambos superaremos nossas falhas e seremos melhores no futuro. É nossa lei, é nossa questão, virar esse mundo, lembrando novamente da Bethânia. E deixemos que o tempo se encarregue e nos carregue...

... Quero que você encontre um rumo, seja ele qual for, com quem for, onde for. Desejo que você encontre seu caminho, que ele seja repleto de amor e que você seja feliz. É isso que eu quero lhe dizer antes de você ir embora para sempre - porque sei que você vai agora para nunca mais voltar – e já que você veio me visitar, assim repentinamente, eu quero te dizer essas últimas palavras... ]

Tendo a alma invadida pelo som tristíssimo, puro e claro, baixo e minimalista, do trompete de Miles Davis, fechou os olhos, respirou fundo e tornou a abri-los. Estava sozinho novamente. Olhou à sua volta, estava tudo exatamente do mesmo jeito, mas nada permanecia igual. Viu, finalmente, a possibilidade de fazer as pazes com seus fantasmas, reconciliar-se com seu passado, tentar seguir vivendo ou poder, enfim, descansar.


segunda-feira, 14 de novembro de 2011

DO PÓ AO PÓ


"O tempo é que mostra o que realmente valeu a pena, o tempo nos ensina a esperar, o tempo apaga o efêmero e acaba com a dúvida."
Caio Fernando Abreu 

Queria pedir desculpas por fazer você esperar tanto tempo por mim. Sabe como são as noites de chuva nesta cidade. O trânsito fica trancado e é impossível chegar rápido a qualquer lugar. É mesmo? Que bom que você esperou pouco tempo. Vou lhe acompanhar no que está bebendo. O que é? Vodca? Sim, sem gelo, por favor. Você parece um pouco tenso, alisando a toalha branca puída que cobre esta mesa de madeira escura e pesada. Mesmo que você negue veementemente, conheço um pouco você, suas idiossincrasias e suas reações, embora não entenda porque você escolheu este lugar que ambos detestamos. Ah, sim, você acha neutro um lugar que ambos detestamos. Você e suas peculiaridades. Quando entrei, você foi a primeira – e única – pessoa que avistei. Meus olhos bateram direto em você. Era como se não existisse mais ninguém aqui. Você fica tão bonito com essa camisa branca, principalmente quando dobra as mangas deixando aparecer seu antebraço. Você sempre foi de compleição física melhor que a minha. Não, não estou reclamando ou criticando. É um elogio, aceite. Sim, lembro, comprei essa camisa para você naquela viagem que fiz sozinho porque você estava passando por uma daquelas crises criativas e preferia ficar em casa lendo livros de autoajuda e bebendo vinho sozinho, na tentativa (vã) de encontrar sentido para sua vida. Quando cheguei, vi que você alisava a toalha irrefletidamente, com esses grandes olhos negros parados no nada. Enquanto atravessava o salão quase vazio olhava para você, perdido em pensamentos, sentado aqui nesta mesa no fundo. Sim, eu sei que você estava pensando num monte de coisas que queria me dizer olhando nos meus olhos. Da mesma forma que sempre foi entre a gente, né? A gente sempre falou tudo um para o outro. Sempre fomos limpos, claros, transparentes. Que? Por que eu estou assim, verborrágico? Ah, desculpe-me. É que você estava tão calado que achei que eu poderia falar para preencher os vazios com algum assunto bobo, até que a gente entrasse realmente no assunto que me trouxe aqui. Rodeios. É verdade, você tem razão, se você me chamou aqui é porque tem mesmo coisas importantes para dizer, sem rodeios. Tudo bem, ficarei calado, embora seja sempre difícil para mim o vazio, seja ele qual for, principalmente quando esses silêncios são cheios de gritos sufocados. Estou, estou atento sim ao que você diz. Sempre estive. Não precisa me agredir, não estou fazendo pose de super equilibrado e super compreensivo. Ah, não é um julgamento o que você faz agora, é só uma leitura? Você está certo sim, eu tenho dificuldade de aceitar críticas, assim como tenho dificuldades em me ver errático e lidar com negativas e rejeições. Mas quando fico sozinho com meus pensamentos, consigo olhar-me no espelho e ver que você tinha razão, embora eu jamais admita publicamente. Estou desarmado agora, acredite. Queria mesmo lhe dar um abraço apertado e dizer que tudo vai ficar bem, que estamos apenas passando por uma fase ruim. Eu tenho meus problemas também e sei das suas dificuldades e dos seus limites, queria dizer que aceito você do jeito que você é, com seus erros, suas mancadas, porque gosto de você, porque quero que nossa vida continue, porque quero ser feliz ao seu lado e fazer você feliz, com as coisas simples do meu mundo. Não, não estou fazendo o superior e espiritualizado. Você sempre foi muito mais que eu. Pelo menos você sempre quis demonstrar muito mais todas as suas leituras de filosofias ocidentais e orientais, todos os seus retiros espirituais, todos os workshops e as vivências transcendentais que teve. Você já viu todos os filmes. Você acha a carne triste e já leu todos os livros. Você é tão Mallarmé! Eu sempre fui mediano. Nunca me orgulhei disso, ambos sabemos, mas nunca me envergonhei do que sou, embora sempre quisesse ser coisas maiores. Você sabe dos meus sonhos, confessei a você, sussurrado no escuro, enquanto choramingávamos nossas mazelas entre cinzeiros cheios e copos vazios. Você sabe dos desejos que tenho, alimentados durante pelo menos oito horas por dia, enquanto suporto gente chata no balcão daquela loja de departamentos. Você, espiritualizado e intelectualizado, no alto do púlpito, e eu aqui embaixo, querendo apenas que você me protegesse de tudo e fizesse eu me sentir vivo novamente, depois dos furacões e tempestades. Não, não estou me vitimizando. Você sempre me julga e sempre julga equivocadamente. Você sempre tem uma teoria que vai salvar meu corpo, minha alma, e a sua, principalmente. Não queria suas teorias filosófico-existecialistas, queria apenas que fosse simples. Mas você ainda acha que eu não entendi a proposta. Mais devir, menos perspectiva científica. Eu sempre coloco tudo em caixinhas, né? Você já disse isso outras vezes, que julgo o tempo todo, por tudo que você faz e pelo que não faz, que eu antevejo suas ações e julgo a partir disso, não vendo o que você realmente fez. Acho que temos mesmo que ser adultos e civilizados e colocarmos um ponto final nisso tudo. Simples assim. Por que você está achando tão difícil? Não, não me olhe assim, você sabe que eu não vou conseguir dizer o que tenho para dizer e não vou ouvir o que você tem de tão importante para dizer se você continuar me olhando desse jeito. Entendo que você está inseguro, triste, sufocado e por isso sumiu todo esse tempo, deixando para trás a vida que eu estava tentando construir com você. Eu também estou ferido. Queria que os sentimentos que sei, lá no fundo, que ainda temos um pelo outro, apesar de todo escombro que caiu sobre nós, nos libertassem, mas vejo que estão nos aprisionando numa daquelas caixas que você sempre diz que eu crio. Concordo com você, éramos tão livres e tão bonitos quando nos conhecemos. Onde será, Deus, que perdemos aquela alegria? Está sendo difícil lhe ver agora, sabe. Não consigo olhar nos seus olhos. Não consigo ver direito seu rosto. Existe uma nuvem que encobre seu rosto, através da fumaça do seu cigarro, e eu vejo somente imagens difusas. Quero que você me olhe, por favor, e quero ver você. Vamos conversar olhando nos olhos para que eu também me veja, através de você. Sei que você se sente desnudo quando olho você nos olhos e digo as coisas que digo. Eu também fico. Aliás, cheguei aqui completamente nu. De peito aberto, como quase nunca estive. Ah, você acha que isso é mais um dos meus personagens? Esta é mais uma das suas leituras desprovidas de julgamentos e regras fixas? Cadê o garçom? Outra dose de vodca, por favor. Sim, é a quinta. Você me olha com esses olhos de quem acha mesmo que ando bebendo demais, fumando demais e falando anedotas demais...Sim, é clichê. Eu sou totalmente samba-canção, você sabe. Você não gosta de trilhas sonoras para nossas conversas, mas é impossível eu não lhe ver aqui nessa mesa, tão Cézanne, tão Sidarta, tão libertário, tão sem regras fixas aplicadas a tudo, tão fluído, tão elevado espiritualmente, com essa cara blasé de quem já viu quase tudo e cansou das pessoas, com seu cigarro dançando no ar e sobrancelhas erguidas, e não pensar numa trilha sonora para isso. Talvez uma Julie London melancólica e intimista. Cry Me a River, quem sabe seja apropriado, embora você ache que nossos diálogos sustentam-se sozinhos, sem músicas. “You drove me, nearly drove me out of my head / While you never shed a tear / Remember, I remember all that you said / Told me love was too plebeian / Told me you were through with me” [*]. Certo, vou parar de cantar, sei que você acha “over”. Sem rodeios e sem músicas. É que a música me persegue, como naquele filme antigo que assistimos uma vez, lembra? Aquele onde Julie London aparece cantando essa música, perseguindo o protagonista pela casa. Como era mesmo o nome? "Sabes o Que Quero". Não, não foi uma pergunta. Esse era o nome do filme, "Sabes o Que Quero". Lembro, você dormiu durante o filme. É, você tem razão, sou muito Da Vinci para você. Talvez eu use mesmo muitas regras fixas para me entender, para entender você, para explicar o mundo, sempre cheio de teorias científicas e contornos lineares. Por isso perco o sentido e o significado do mundo. Como perdi agora. O conceito que tínhamos um do outro não se encaixa na gente. Somos mais que isso, somos outras coisas, além disso, não somos nada disso. Éramos grandes, éramos múltiplos, e viramos o que, no final? O que sobrou da gente e que sobrou de cada um depois de daquilo que chamamos de “nós”? Sei que você vai repetir o que já disse um dia, que sobrará de nós o que somos e que somos o que tivemos e o que conseguimos ser nas nossas medidas do possível. Sim, vamos embora, está tarde. Não, eu pago desta vez. Chamou o táxi? Claro que podemos dividi-lo. Você vai pegar suas coisas agora? Já deixei sua mala na portaria do prédio, como você pediu. Coloquei seus livros, aqueles discos da Bethânia, algumas roupas que achei espalhadas pela casa. É, sei que os livros são importantes para você, embora eu ache, lá no fundo, que os discos da Bethânia são muito mais. Não ficaria com eles, mas queria ficar com você. Acho que recolhi tudo, mas pode ter ficado alguma coisa esquecida em algum canto. Depois de tanto tempo, nem sei mais o que é seu e o que é meu. Nem sei mais o que um dia foi meu ou seu. Tenho ainda umas garrafas daquele vinho que você gosta. Podemos ouvir o disco que comprei hoje num sebo, se você quiser. Sim, é aquele disco raro de jazz que procurei por anos e que várias vezes fiz você caminhar pelas ruas das cidades que visitávamos juntos, garimpando em todas as lojas. Encontrei esse disco por acaso, quando já tinha desistido de procurar. Engraçado como isso acontece, eu precisei desistir para encontrar. Estou falando sobre o disco, mas também sobre você. Não se preocupe, não é mais importante. Você pode decidir amanhã de manhã, depois do café, como de costume, o que fará pelo resto da vida com o que restou de tudo que fomos nós. Sim, sua escova de dentes ainda está no banheiro e deixei seu pijama sobre a cama. Vamos? O táxi chegou. 


[*] “Você me levou, quase me levou à loucura / E você sequer derramou uma lágrima / Lembre-se, lembre-se de tudo que você disse / Disse-me que o amor era plebeu demais / Disse-me que estava cansado de mim”





segunda-feira, 7 de novembro de 2011

LES TEMPS SONT DURS POUR LES RÊVEURS [*]

"Porque Esqueceste o Que Vieste Fazer" (Pintura com Café) - Alexander P. Moreira, 2009.

"Tenho meus vícios
Vivem dentro de mim esses bichos
São o pai e a mãe dos meus lixos
E às vezes me levam de mal a pior
Pergunto quem
Não sabe disso
Os momentos em que a vida não tem dó"
("Maiúsculo" - Sérgio Sampaio)

Vez ou outra esbarro, vida afora, com pessoas que lembram um pouco quem eu fui um dia. Pessoas que me trazem lembranças boas de um passado que abandonei para viver uma vida que chamo de “real”, dura e seca, de compromissos e obrigações, de 8h às 18h. Já tive os pés mais no chão e a cabeça mais nas nuvens, hoje não sou muito otimista, mas tenho lá meus momentos de Peter Pan. Encontrar essas pessoas, hoje tão diferentes de mim, me reconecta com uma faceta minha que talvez eu não devesse ter abandonado para me tornar o que me tornei. Contingências do mercado. Lembrando de uma frase bastante conhecida, de um dos meus filmes prediletos, são realmente tempos difíceis para os sonhadores.

Quando eu era mais jovem (nem tão mais jovem assim) fomentava mais desejos e sonhos. Queria a vida dos sonhos, a casa dos sonhos, o emprego dos sonhos. Acreditava em paixões avassaladoras, em amores de cinema, românticos e vitorianos. Ainda acredito, lá no fundo. Acho bonitos os amores de folhetim. Via as pessoas relatarem histórias lindas que venceram barreiras de espaço e tempo e pensava: Será que um dia isso acontecerá comigo? Claro que não acontece! A vida real não é assim. No fundo eu era um adolescente chato demais, sonhador demais, piegas e pedante demais. Como todo adolescente, queria tudo para agora, para ontem, era constituído de faltas e urgências. E sempre tive fascínio pelo arrebatamento sôfrego e febril das donzelas vitorianas, alvas e puras, envoltas em rendas brancas e imaculadas.

Depois de levar algumas rasteiras da vida, desenvolvi um certo medo desse sentimentos abruptos e inesperados que desestabilizam minhas parcas faculdades mentais. Talvez tenha me tornado um pouco covarde. Que seja. Mas o fato é que acabo me fechando numa concha quando me vejo caindo numa dessas grandes e rápidas ilusões românticas. E não, não tenho medo dos sentimentos das pessoas com quem me relaciono, que fique claro. Reconheço, valido e respeito. Tenho medo dos meus próprios. Porque sou um pouco, eufemisticamente dizendo, intenso. A ponto de consumir a mim e a tudo que me cerca. E consumir recursos disponíveis assim, em tempos de escassez como estes, pode ser perigoso. Gosto de sentir o terreno onde piso, avaliar, reavaliar e avaliar mais uma vez – ilusória(?) e neutoricamente(!) – cada passo dado. Para não ferir, para não ser ferido. Parcimônia e canja de galinha não fazem mal a ninguém.

Quando encontro pessoas intensas e sedentas por viver uma vida em um dia, lembro daquele menino que deixei trancado no sótão para (tentar) ser um homem equilibrado, centrado e ponderado. E tento visitar o quarto onde o menino ficou de castigo. Mas não acho mais a chave. E encostando o ouvido na porta, não ouço barulho algum. Talvez ele tenha cansado de ficar trancado lá e tenha adormecido para sempre ou fugido pela janela.

De fato, atualmente não creio mais em paixões relâmpago. Não acredito nem em café instantâneo, quanto mais em amor instantâneo. Amores também tem o tempo de maturação, colheita, torragem, moagem e preparo com água em quantidade e temperatura certas. Daí sim, a gente bebe. Sem açúcar, para ser mais autêntico e para o sabor durar mais tempo na boca, mesmo sendo meio amargo. Ou talvez, autêntico seja dizer que nada disso é verdade e que sempre quis subir no meu cavalo branco, me jogar numa cruzada urgente para salvar a donzela da masmorra, seja ela quem for, viver num mundo só meu, criado por mim. Ser como Amélie, a heroína do filme que citei, acreditar nos sonhos e realizá-los. Imediatamente, agora, neste breve tempo de ler o que acabei de escrever. Pronto. Aconteceu. Quem sabe?


[*] "São tempos difíceis para os sonhadores" -  Frase do filme Le Fabuleux Destin D'amélie Poulain