sexta-feira, 25 de outubro de 2013

A COLÔNIA QUE NÃO SAI DA GENTE

 Obra: Aquarela. Jean-Baptiste Debret


Dia desses, eu estava almoçando com uma amiga e na mesa ao lado chegou um grupo de quatro pessoas. O restaurante estava lotado e existia uma única mesa disponível. Pouco antes, outro grupo havia deixado o local, abandonando pratos com restos de comida, talheres, guardanapos e copos amontoados. Natural, afinal os garçons fazem esse trabalho de organizar as mesas antes e depois de utilizadas. Eles não são notados e fazem um trabalho silencioso. A não ser que não venham imediatamente. Foi o que aconteceu. O garçom demorou a chegar para atendê-los. Um ultraje. Prontamente, um rapaz desse grupo que acabara de chegar tratou de juntar os utensílios da mesa para que eles pudessem ocupá-la. Muito solícito. Segurando uma pilha de pratos e talheres, um tanto atabalhoado, chegou a nós perguntando se já estávamos de saída. Já havíamos terminado de almoçar, mas como é costumeiro, ficamos papeando enquanto eu tomava um café e minha amiga comia sobremesa. Eu disse que não estávamos de saída, mas que ele poderia largar a pilha de pratos sobre a nossa mesa até que o garçom, que estava sozinho e se vendo louco para atender a todos, chegasse para limpar tudo.

Eu já havia percebido que existia alguém “diferente” nesse grupo porque o tratamento de todos a uma das pessoas, em especial, era diferenciado. A ele eram dispensados gestos e palavras exageradamente corteses, e um tratamento constrangedoramente polido e subserviente. Além de todos se esforçarem para falar a língua dessa pessoa.  Até aí tudo bem. É delicado receber bem um visitante. Mas algo era visivelmente fora do tom. Ao ponto de uma pessoa, ao invés de chamar o garçom, prontamente recolher pratos e posicionar a mesa ao gosto do convidado, jogando todo o descarte na mesa mais próxima (a nossa) para livrar-se da sujeita e desorganização.

Apesar de todo o rapapé e alarde dessas pessoas, ainda tive um lampejo sobre meus pensamentos, achando que era preconceito meu pensar que era um circo tudo aquilo. Mas minhas suspeitas se confirmaram quando ele, meio constrangido, largou a pilha de louça sobre a minha mesa e como se não bastasse completou: “Desculpa, é que tem um professor estrangeiro com a gente”.  Um estrangeiro-eiro-eiro-eiro! Isso ecoou em minha cabeça como um badalo.  Aí tudo fez sentido. Então, estar com um estrangeiro confere a essas pessoas o direito de desovarem sua sujeira em território alheio? Os domínios do colonizador devem estar em perfeita ordem, enquanto os domínios do colonizado ficam de qualquer jeito, inclusive com os detritos e as sobras do próprio colonizador? Isso sem pensar na torpe troca de favores, na submissão em troca de possibilidades acadêmicas escusas pelo fato do estrangeiro ser professor, talvez destacado entre professores menos importantes, os tupiniquins. Continuamos fazendo as mesmas coisas nesta Terra Brasilis desde o século XVI.

Naquele momento eu fiquei meio atônito e não comentei nada para não criar caso por aparentemente uma bobagem. Tive vontade de dizer: “Moço, chama o garçom. Minha mesa não é aterro sanitário”. Mas apenas concordei em deixá-lo colocar a pilha da “nossa sujeira” longe dos olhos do estrangeiro. Limpo e rápido. Era falha do restaurante não colocar mais funcionários em horário de pico, obviamente. Entretanto, povo solidário que somos, eu deveria ser cúmplice e tratar de causar boa impressão e proporcionar bem estar ao visitante. Mas a forma escolhida pelo rapaz da mesa ao lado de resolver isso não foi a mais cidadã e civilizada, embora demonstre sua grande brasilidade.

O que o colonizador quer, em última instância, é um novo establishment. O seu, obviamente. E nós, que fomos subordinados historicamente aos níveis mais baixos na pirâmide social, estamos acostumados com isso e achamos que está tudo bem, está tudo ótimo. E pior: esperamos que eles olhem para nós e nos concedam a honra de sentarmo-nos à sua mesa.

Posso estar sendo demasiadamente radical. Ocorre, porém, que tenho um sentimento, apenas um sentimento, que me alerta para a iminência de, travestidos de defensores dos nossos direitos, eles nos cercearem e estabelecerem, com o peso de suas verdades, a obrigatoriedade de seguirmos suas regras. Enquanto a dependência é econômica está tudo sob controle, pagamos a conta e estamos livres, mesmo que às vezes tenhamos que vender nossas almas num leilão para isso. Mas quando as celebridades impõem padrões de beleza e riqueza, exigindo que sejamos tudo aquilo o que jamais conseguiremos ser, ou quando as Exodus Cry da vida vem fazer proselitismo por estas bandas, o buraco fica mais embaixo. Dentro de uma moral religiosa retrógrada, esse grupo propõe a criminalização da prostituição e do aborto, por considerar – implicitamente – que são abominações, assim como são abomináveis a mulher que aborta clandestinamente ou a prostituta que não teve outra opção na vida. Não tardará o dia em que criminalizarão tudo o que, segundo eles, "fere os princípios da moralidade cristã", mesmo que os colonizados não sejam cristãos. Não por acaso esse grupo americano de extrema direita cristã foi recebido pelos fidalgos da Comissão de Direitos Humanos do Senado. Ainda somos tratados como índios, sem alma e sem direitos individuais.

Não considero os estrangeiros inimigos. Tampouco acho que somos superiores ou melhores em tudo. Mas existe na nossa relação com eles uma pretensa exploração e um pressuposto de nossa submissão. Ademais, temos a característica de considerar os colonizadores sempre bem-vindos. Temos impregnado na pele um cheiro de colônia. De Brasil Colônia. Olhamos o estrangeiro como superior porque somos uma nação com baixa autoestima. Carnaval e futebol não cicatrizarão essa ferida de exploração histórica. Aliando isso à falta de conhecimento, somos presas fáceis para exploradores.

Quando estamos na presença do colonizador à nossa mesa, emerge das profundezas de nossa alma o sentimento forte e intrínseco de colonizados. É como se fôssemos perdoados de uma dívida ou do pecado primordial de sermos subdesenvolvidos, ou ainda como se fosse quebrada a maldição de sermos terceiro-mundistas. Somos inundados por uma gratidão medíocre. Subitamente, por nos julgarmos amigos do Rei, surge um brilho soberbo no olhar pelo sentimento de superioridade àqueles que servirão de depósito para nossos pratos sujos.

Se existe uma crise internacional, ela não nos sensibiliza profundamente. Afinal, somos calejados da recessão, somos escolados em crises e termos a sensação, embora ilusória, de estarmos saindo do atoleiro. Reconhecermo-nos como emergentes já nos torna “um deles”. Temos cartão de crédito internacional, viajamos de avião a qualquer hora (que luxo!), compramos carro em cento e vinte parcelas e até financiamos nossa casa própria em trinta anos. E queremos salvar nossa própria pele, ou melhor, ostentar aquela pele com a marca da grife famosa, impressa bem grande. Beijo no ombro para a ralé!

Com a barriga cheia podemos dispensar mais tempo para superficialidades e supérfluos. E adoramos futilidades! Ao que parece, os americanos estão abandonando o “american way of life” porque já não lhes cabe. Mas aqui ainda serve muito bem para a elite emergente. Para muitos é símbolo de status consumir como os americanos, ostentar riqueza como os árabes e ter as maneiras dos franceses ou ingleses.

Por melhor que seja o que produzimos aqui, seja material ou imaterial, o melhor de tudo o que produzimos ainda é “para exportação”. Da mesma forma, o produto importado, mesmo sendo de qualidade inferior é mais valorizado e é sinônimo de status pelo simples fato de não ser fabricado aqui. Certo, a lógica não serve para os produtos chineses, que tem preços e qualidades em geral bem inferiores, devido ao processo de produção, mão de obra escrava e pelos altos impostos cobrados aqui, o que acontece desde quando éramos colônia de Portugal. Mas isso já é outro assunto.

O que aconteceu ao grupo do restaurante? Não sei. Todos comeram o mesmo feijão com arroz e batatas fritas do buffet que os demais naquele dia. Cada um deve ter tomado seu rumo provavelmente voltaram às suas cortes ou colônias de origem. E o rapaz, o cicerone tupiniquim? Bem, talvez esteja acompanhado de outros grupos e juntando pratos para acomodar outro colonizador.  Ou tentando um doutorado sanduíche no exterior.