Obra: Aquarela. Jean-Baptiste Debret
Dia desses, eu estava almoçando com uma amiga e na
mesa ao lado chegou um grupo de quatro pessoas. O restaurante estava lotado e existia
uma única mesa disponível. Pouco antes, outro grupo havia deixado o local, abandonando
pratos com restos de comida, talheres, guardanapos e copos amontoados. Natural,
afinal os garçons fazem esse trabalho de organizar as mesas antes e depois de
utilizadas. Eles não são notados e fazem um trabalho silencioso. A não ser que
não venham imediatamente. Foi o que aconteceu. O garçom demorou a chegar para
atendê-los. Um ultraje. Prontamente, um rapaz desse grupo que acabara de chegar
tratou de juntar os utensílios da mesa para que eles pudessem ocupá-la. Muito
solícito. Segurando uma pilha de pratos e talheres, um tanto atabalhoado, chegou
a nós perguntando se já estávamos de saída. Já havíamos terminado de almoçar,
mas como é costumeiro, ficamos papeando enquanto eu tomava um café e minha
amiga comia sobremesa. Eu disse que não estávamos de saída, mas que ele poderia
largar a pilha de pratos sobre a nossa mesa até que o garçom, que estava
sozinho e se vendo louco para atender a todos, chegasse para limpar tudo.
Eu já havia percebido que existia alguém “diferente”
nesse grupo porque o tratamento de todos a uma das pessoas, em especial, era
diferenciado. A ele eram dispensados gestos e palavras exageradamente corteses,
e um tratamento constrangedoramente polido e subserviente. Além de todos se
esforçarem para falar a língua dessa pessoa.
Até aí tudo bem. É delicado receber bem um visitante. Mas algo era
visivelmente fora do tom. Ao ponto de uma pessoa, ao invés de chamar o garçom,
prontamente recolher pratos e posicionar a mesa ao gosto do convidado, jogando todo
o descarte na mesa mais próxima (a nossa) para livrar-se da sujeita e
desorganização.
Apesar de todo o rapapé e alarde dessas pessoas, ainda
tive um lampejo sobre meus pensamentos, achando que era preconceito meu pensar
que era um circo tudo aquilo. Mas minhas suspeitas se confirmaram quando ele,
meio constrangido, largou a pilha de louça sobre a minha mesa e como se não
bastasse completou: “Desculpa, é que tem um professor estrangeiro com a gente”. Um
estrangeiro-eiro-eiro-eiro! Isso ecoou em minha cabeça como um badalo. Aí tudo fez sentido. Então, estar com um
estrangeiro confere a essas pessoas o direito de desovarem sua sujeira em
território alheio? Os domínios do colonizador devem estar em perfeita ordem, enquanto
os domínios do colonizado ficam de qualquer jeito, inclusive com os detritos e
as sobras do próprio colonizador? Isso sem pensar na torpe troca de favores, na
submissão em troca de possibilidades acadêmicas escusas pelo fato do
estrangeiro ser professor, talvez destacado entre professores menos
importantes, os tupiniquins. Continuamos fazendo as mesmas coisas nesta Terra Brasilis desde o século XVI.
Naquele momento eu fiquei meio atônito e não comentei nada
para não criar caso por aparentemente uma bobagem. Tive vontade de dizer:
“Moço, chama o garçom. Minha mesa não é aterro sanitário”. Mas apenas concordei
em deixá-lo colocar a pilha da “nossa sujeira” longe dos olhos do estrangeiro.
Limpo e rápido. Era falha do restaurante não colocar mais funcionários em
horário de pico, obviamente. Entretanto, povo solidário que somos, eu deveria ser
cúmplice e tratar de causar boa impressão e proporcionar bem estar ao
visitante. Mas a forma escolhida pelo rapaz da mesa ao lado de resolver isso
não foi a mais cidadã e civilizada, embora demonstre sua grande brasilidade.
O que o colonizador quer, em última instância, é um
novo establishment. O seu,
obviamente. E nós, que fomos subordinados historicamente aos níveis mais baixos
na pirâmide social, estamos acostumados com isso e achamos que está tudo bem,
está tudo ótimo. E pior: esperamos que eles olhem para nós e nos concedam a
honra de sentarmo-nos à sua mesa.
Posso estar sendo demasiadamente radical. Ocorre,
porém, que tenho um sentimento, apenas um sentimento, que me alerta para a
iminência de, travestidos de defensores dos nossos direitos, eles nos cercearem
e estabelecerem, com o peso de suas verdades, a obrigatoriedade de seguirmos
suas regras. Enquanto a dependência é econômica está tudo sob controle, pagamos
a conta e estamos livres, mesmo que às vezes tenhamos que vender nossas almas
num leilão para isso. Mas quando as celebridades impõem padrões de beleza e
riqueza, exigindo que sejamos tudo aquilo o que jamais conseguiremos ser, ou quando
as Exodus Cry da vida vem fazer
proselitismo por estas bandas, o buraco fica mais embaixo. Dentro de uma moral
religiosa retrógrada, esse grupo propõe a criminalização da prostituição e do
aborto, por considerar – implicitamente – que são abominações, assim como são
abomináveis a mulher que aborta clandestinamente ou a prostituta que não teve
outra opção na vida. Não tardará o dia em que criminalizarão tudo o que,
segundo eles, "fere os princípios da moralidade cristã", mesmo que os
colonizados não sejam cristãos. Não por acaso esse grupo americano de extrema
direita cristã foi recebido pelos fidalgos da Comissão de Direitos Humanos do
Senado. Ainda somos tratados como índios, sem alma e sem direitos individuais.
Não considero os estrangeiros inimigos. Tampouco acho
que somos superiores ou melhores em tudo. Mas existe na nossa relação com eles uma
pretensa exploração e um pressuposto de nossa submissão. Ademais, temos a
característica de considerar os colonizadores sempre bem-vindos. Temos
impregnado na pele um cheiro de colônia. De Brasil Colônia. Olhamos o
estrangeiro como superior porque somos uma nação com baixa autoestima. Carnaval
e futebol não cicatrizarão essa ferida de exploração histórica. Aliando isso à
falta de conhecimento, somos presas fáceis para exploradores.
Quando estamos na presença do colonizador à nossa
mesa, emerge das profundezas de nossa alma o sentimento forte e intrínseco de
colonizados. É como se fôssemos perdoados de uma dívida ou do pecado primordial
de sermos subdesenvolvidos, ou ainda como se fosse quebrada a maldição de
sermos terceiro-mundistas. Somos inundados por uma gratidão medíocre.
Subitamente, por nos julgarmos amigos do Rei, surge um brilho soberbo no olhar
pelo sentimento de superioridade àqueles que servirão de depósito para nossos
pratos sujos.
Se existe uma crise internacional, ela não nos
sensibiliza profundamente. Afinal, somos calejados da recessão, somos escolados
em crises e termos a sensação, embora ilusória, de estarmos saindo do atoleiro.
Reconhecermo-nos como emergentes já nos torna “um deles”. Temos cartão de
crédito internacional, viajamos de avião a qualquer hora (que luxo!), compramos
carro em cento e vinte parcelas e até financiamos nossa casa própria em trinta
anos. E queremos salvar nossa própria pele, ou melhor, ostentar aquela pele com
a marca da grife famosa, impressa bem grande. Beijo no ombro para a ralé!
Com a barriga cheia podemos dispensar mais tempo para
superficialidades e supérfluos. E adoramos futilidades! Ao que parece, os
americanos estão abandonando o “american way of life” porque já não lhes cabe.
Mas aqui ainda serve muito bem para a elite emergente. Para muitos é símbolo de
status consumir como os americanos, ostentar riqueza como os árabes e ter as
maneiras dos franceses ou ingleses.
Por melhor que seja o que produzimos aqui, seja
material ou imaterial, o melhor de tudo o que produzimos ainda é “para
exportação”. Da mesma forma, o produto importado, mesmo sendo de qualidade
inferior é mais valorizado e é sinônimo de status pelo simples fato de não ser
fabricado aqui. Certo, a lógica não serve para os produtos chineses, que tem
preços e qualidades em geral bem inferiores, devido ao processo de produção,
mão de obra escrava e pelos altos impostos cobrados aqui, o que acontece desde
quando éramos colônia de Portugal. Mas isso já é outro assunto.
O que aconteceu ao grupo do restaurante? Não sei. Todos
comeram o mesmo feijão com arroz e batatas fritas do buffet que os demais naquele
dia. Cada um deve ter tomado seu rumo provavelmente voltaram às suas cortes ou colônias
de origem. E o rapaz, o cicerone tupiniquim? Bem, talvez esteja acompanhado de outros
grupos e juntando pratos para acomodar outro colonizador. Ou tentando um doutorado sanduíche no
exterior.