sexta-feira, 23 de setembro de 2011

CANÇÃO DO MAR


     Caspar David Friedrich - "The Monk By The Sea"


“Porto calmo de abrigo
De um futuro maior 
Inda não está perdido
No presente temor”

[Para ler ao som de Madredeus – "Ao Longe o Mar"]



Assustado, abriu os olhos e saiu do torpor no qual estava submerso. Parecia ter ouvido o som do navio cargueiro chegando. Levantou e bateu a areia do corpo. Detestava a sensação de areia, sol e mar, embora passasse horas deitado na praia deserta ouvindo somente o som das ondas na rebentação e seus ruídos interiores ensurdecedores. Olhou para o horizonte sem fim que o cercava. Apenas mar, céu e silêncio.

Sempre teve dificuldades com silêncios. Nunca soube como resolvê-los a não ser rompendo-os brusca e às vezes levianamente. Quando não resistia e rompia-os, amargava o desgosto de ter feito novamente a coisa errada. Não sabia como lidar com as situações que fugiam ao seu controle. Tampouco sabia lidar com os enigmas e com as mensagens não ditas. Não era um bom entendedor, em última instância, porque para ele meia palavra nunca bastava. Queria mais explicações, rudes e ríspidas que fossem, dolorosas e sangrentas, se inevitáveis. Mas queria sempre se entranhar nas situações o mais fundo possível, até que tudo perdesse o sentido e retornasse ao ponto inicial. Cético, precisava confirmar suspeitas, elucubrações e teorias metafísicas e cataclísmicas, ou simplesmente acalmar um coração furioso e uma mente neurótica. Paradoxalmente, essa era sua forma de fugir.

Sempre queria que não fosse nada disso. Queria ouvir que estava tudo bem, que não havia sido esquecido, que sua imagem ainda estava registrada nas retinas de alguém, que ainda era uma lembrança boa de amor, que não recebeu uma carta porque o serviço postal atrasou, que não recebeu felicitações no Natal ou aniversário porque todas as tentativas foram inúteis, que não recebeu um telefonema porque na última tempestade a comunicação com o continente foi interrompida.

E o continente ficava cada vez mais distante. E ele ficava cada vez mais isolado em sua ilha nada particular e nada paradisíaca. Vivia cercado de céus, sóis, luas, rochedos e ausências. De resto, um rádio amador, um telefone, um telégrafo, avistar uma embarcação ou outra no horizonte e o velho farol, cuja manutenção era sua única obrigação e o motivo oficial – inverídico - de sua ida para aquele lugar. O motivo real, inevitavelmente confessado pelos abismos negros de seus olhos, era apenas fuga da dor.

Os suprimentos chegavam uma vez por mês e resumiam-se a parcos alimentos desidratados, conservas, compotas e, vez ou outra, uma garrafa de rum ou vodca, escondida entre as latas de feijão. O carregamento trazia também (e principalmente) esperanças. Eram os itens mais preciosos trazidos. E mais escassos também. Das esperanças, garimpadas nas caixas de madeira deixadas na praia, guardava as que eram mais impossíveis. Ele mesmo era um homem impossível numa vida impossível.

Materializava as esperanças com os recursos que tinha: Uma fotografia preto e branco com a singela dedicatória “Amor, M.M.”, algumas cartas amareladas pelo tempo, escritas com caligrafia elegante e rebuscada, em papel de linho, um lenço de seda branco, enviado em uma das entregas envolvendo uma imagem do Cristo crucificado, que ornava a cabeceira de sua cama, mas não protegia seu sono dos sonhos revoltos, a mão direita de uma luva, surrupiada em um momento de distração, no cais do porto, no dia frio da despedida.

Segurando a luva como se fosse uma relíquia sacra, relembrou o momento da despedida e remontou o trajeto que planejou até aquele momento. Sentia uma saudade amarga do passado. Percebeu-se, logo no desembarque na ilha, absolutamente vil e covarde. Porém, jamais se permitiria reavaliar decisões ou retroceder. Imaginava que conseguiria deixar tudo para trás, isolado no continente, e começar a contar o tempo do zero novamente, como se o tempo e a distância apagassem as cicatrizes, tal qual fotos Polaroid. Nos primeiros anos de exílio voluntário conseguiu esconder todas as lembranças na mala debaixo da cama e num escaninho da alma. Depois percebeu o equívoco e a impossibilidade que era tentar ser um homem sem lembranças, entregando-se às reminiscências, tão fortes quando as ondas contra as rochas.

Nesse insight correu para rever seu passado. Mas já era tarde. O tempo, as traças e a maresia agiram de forma incisiva. Tentou, em vão, preencher as lacunas com afetos trazidos dos recônditos de si. Tentou refazer trajetos, abandonar a ilha, mas não havia como fugir. Escreveu cartas, mandou notícias, esperou respostas. Mas ouviu apenas ecos de sua própria voz.

Havia conseguido o que queria. Em busca de paz abandonou um continente, uma vida, um mundo e pessoas que amava. Queria fugir da vida dura que tinha, da violência, da privação, do desrespeito, das dificuldades e frustrações. Mas isso teve um preço. Não era possível voltar atrás. E ao passo que abandonou, foi também abandonado. Restava-lhe apenas o resultado de suas escolhas. Restava um gosto amargo de mar, vodca, lágrimas e abandono. Voltando à praia, esperando que o navio trouxesse novamente suprimentos de esperanças vãs, viu o sol se por no horizonte e a noite estrelada romper sobre sua cabeça, sem a certeza que veria o sol raiar manhã seguinte. 

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

CE QUE JE SUIS


"Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já tem a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos."
(Fernando Pessoa)

Uma pergunta tem me atormentado nesses últimos tempos. Acho que pelo avançado da idade e pelo avançado da hora, porque normalmente sou visitado por questionamentos fantasmagóricos nas madrugadas quase insones, como agora. Sentado no meu quarto, à meia luz, vendo sombras amorfas nas paredes e minha imagem difusa nos espelhos, ao som das janelas batendo pelo vento norte e ao sabor do cheiro úmido que anunciam a tempestade sou invadido por dúvidas quase adolescentes.
Tenho me sentido um amontoado de retalhos, agrupados como um mosaico bizarro e acidental. Nesse emaranhado de peças desconexas tento achar uma que responda a essa questão angustiante. Os dias passam, e parece que quanto mais caminho, mais me aproximo do limite, do muro, da barreira enigmática e intransponível, ao passo que mais me afasto de mim mesmo. Da mesma forma, mais difícil é fazer reconstruções para vasculhar caminhos trilhados e buscar pistas que indiquem uma direção. Em última instância, é mais difícil seguir em frente na mesma proporção que é mais difícil voltar. E tenho o sentimento forte que é mais difícil seguir justamente porque é difícil retroceder.
Por outro lado, talvez seja uma grande ilusão voltar. Na verdade, nem quero voltar. Por melhor que tenham sido as lembranças do passado, não quero revivê-las. Porque tenho um temor místico e reverencial dessa tarefa. Acho que os momentos mágicos devem ficar preservados num escaninho da alma, quietinhos, para serem visitados em datas especiais. Devem ser guardados em um relicário, envoltos em um manto de linho ornado com fios de ouro, como uma imagem sacra. Visito, reverencio, em um dia do ano coloco-a num andor e depois da procissão guardo para não perder a atmosfera sagrada, embora não haja nada de sagrado.
Meu sentimento nessas caminhadas de tropeços, erros e acertos, é mais ou menos como se eu estivesse atravessando um riacho e não pudesse colocar os pés na água (tenho transtorno obsessivo compulsivo até nas metáforas exemplificativas). Equilibro-me nas pedras que afloram. Porém, alguns intervalos entre uma pedra aflorada e outra são muito grandes e para alcançar é necessário dar um passo muito maior que minhas pernas. Então, devo voltar-me para o caminho que já percorri e localizar alguma pedra que possa ser recolocada à frente, de modo a comportar uma nova passada adequada às minhas limitações.
Estou no meio do riacho. Choveu. O céu continua cinzento e as tempestades ainda se anunciam. Isso quer dizer que devo me apressar. A correnteza pode ficar mais forte e cobrir as pedras, impedindo a continuidade sem que eu me molhe. Para continuar, porém, preciso olhar para trás e buscar alguma pedra. E é aí que se fundamenta a dificuldade. Não há como pegar uma pedra e recoloca-la à frente. O caminho percorrido, fácil ou difícil, deve ficar lá. Não existe possibilidade de tirar algo do passado e trazer até o presente para que o futuro seja melhor. O máximo que posso fazer é contemplar o passado, ver de que forma atravessei o riacho e tentar não pisar em pedras em falso mais uma vez. Ou então ver quais eram as características das pedras firmes que passei sem dificuldades.
Lembrar do passado sempre causa uma dorzinha funda no peito. Pesar, saudade, um certo orgulho inglório e desajeitado, comiseração, piedade. Lembrar do passado não é uma tarefa que me enobrece. Dói lembrar dos trechos do riacho percorridos com tranqüilidade. Dor de saudade, de pensar que a vida já foi mais fácil. Dói lembrar dos trechos onde quase senti a água pelos joelhos. Angústia, por pensar que posso passar pelo mesmo sofrimento e uma pitada de autopiedade, porque sou latino e meio dramático às vezes.  
Quando eu era mais jovem, podia dizer com orgulho, tranqüilidade e facilidade quem eu era. E eu era tantas coisas! Mas cresci. A fantasia de Spiderman não serviu mais na cintura, as capa do Batman ficou curta.  Acho que a vida foi me dando tapas na cara em quantidade suficiente para me acordar do sonho adolescente letárgico e ver que eu não era nada daquilo que pensava ser. Porém, madrasta que é, a vida não foi generosa comigo me dando indicativas do que eu poderia ser em lugar daquilo que ela me disse que eu não era. Ou talvez até tenha mostrado o caminho e eu não entendi o que ela quis dizer. Como entender algo em uma língua desconhecida quando a gente mal conhece a língua materna para comunicar as coisas mais primitivas?
À medida que o tempo foi passando, fui sendo despido das imagens irreais do que era. E cheguei no meio do caminho, completamente nu e sem poder dizer, batendo no peito com orgulho: “Eu sou isto. É isto que sou!”.  Parado no meio do caminho, me apoiando em uma pedra aflorada, vendo a correnteza aumentar, sentindo que devo achar um ponto de apoio seguro para seguir em frente e sem conseguir encontrar, eu paraliso, mesmo sabendo que a única alternativa é continuar em frente. Torno-me três “Eus” distintos. Um ficou para trás em uma margem, o outro está à frente, na outra margem, e um terceiro está entre eles. E é inerte no meio da correnteza que olho com distanciamento para cada um deles me pergunto: Afinal, aquele é o que eu sou?