"Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já tem a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos."
(Fernando Pessoa)
(Fernando Pessoa)
Uma pergunta tem me atormentado nesses últimos tempos. Acho que pelo avançado da idade e pelo avançado da hora, porque normalmente sou visitado por questionamentos fantasmagóricos nas madrugadas quase insones, como agora. Sentado no meu quarto, à meia luz, vendo sombras amorfas nas paredes e minha imagem difusa nos espelhos, ao som das janelas batendo pelo vento norte e ao sabor do cheiro úmido que anunciam a tempestade sou invadido por dúvidas quase adolescentes.
Tenho me sentido um amontoado de retalhos, agrupados como um mosaico bizarro e acidental. Nesse emaranhado de peças desconexas tento achar uma que responda a essa questão angustiante. Os dias passam, e parece que quanto mais caminho, mais me aproximo do limite, do muro, da barreira enigmática e intransponível, ao passo que mais me afasto de mim mesmo. Da mesma forma, mais difícil é fazer reconstruções para vasculhar caminhos trilhados e buscar pistas que indiquem uma direção. Em última instância, é mais difícil seguir em frente na mesma proporção que é mais difícil voltar. E tenho o sentimento forte que é mais difícil seguir justamente porque é difícil retroceder.
Por outro lado, talvez seja uma grande ilusão voltar. Na verdade, nem quero voltar. Por melhor que tenham sido as lembranças do passado, não quero revivê-las. Porque tenho um temor místico e reverencial dessa tarefa. Acho que os momentos mágicos devem ficar preservados num escaninho da alma, quietinhos, para serem visitados em datas especiais. Devem ser guardados em um relicário, envoltos em um manto de linho ornado com fios de ouro, como uma imagem sacra. Visito, reverencio, em um dia do ano coloco-a num andor e depois da procissão guardo para não perder a atmosfera sagrada, embora não haja nada de sagrado.
Meu sentimento nessas caminhadas de tropeços, erros e acertos, é mais ou menos como se eu estivesse atravessando um riacho e não pudesse colocar os pés na água (tenho transtorno obsessivo compulsivo até nas metáforas exemplificativas). Equilibro-me nas pedras que afloram. Porém, alguns intervalos entre uma pedra aflorada e outra são muito grandes e para alcançar é necessário dar um passo muito maior que minhas pernas. Então, devo voltar-me para o caminho que já percorri e localizar alguma pedra que possa ser recolocada à frente, de modo a comportar uma nova passada adequada às minhas limitações.
Estou no meio do riacho. Choveu. O céu continua cinzento e as tempestades ainda se anunciam. Isso quer dizer que devo me apressar. A correnteza pode ficar mais forte e cobrir as pedras, impedindo a continuidade sem que eu me molhe. Para continuar, porém, preciso olhar para trás e buscar alguma pedra. E é aí que se fundamenta a dificuldade. Não há como pegar uma pedra e recoloca-la à frente. O caminho percorrido, fácil ou difícil, deve ficar lá. Não existe possibilidade de tirar algo do passado e trazer até o presente para que o futuro seja melhor. O máximo que posso fazer é contemplar o passado, ver de que forma atravessei o riacho e tentar não pisar em pedras em falso mais uma vez. Ou então ver quais eram as características das pedras firmes que passei sem dificuldades.
Lembrar do passado sempre causa uma dorzinha funda no peito. Pesar, saudade, um certo orgulho inglório e desajeitado, comiseração, piedade. Lembrar do passado não é uma tarefa que me enobrece. Dói lembrar dos trechos do riacho percorridos com tranqüilidade. Dor de saudade, de pensar que a vida já foi mais fácil. Dói lembrar dos trechos onde quase senti a água pelos joelhos. Angústia, por pensar que posso passar pelo mesmo sofrimento e uma pitada de autopiedade, porque sou latino e meio dramático às vezes.
Quando eu era mais jovem, podia dizer com orgulho, tranqüilidade e facilidade quem eu era. E eu era tantas coisas! Mas cresci. A fantasia de Spiderman não serviu mais na cintura, as capa do Batman ficou curta. Acho que a vida foi me dando tapas na cara em quantidade suficiente para me acordar do sonho adolescente letárgico e ver que eu não era nada daquilo que pensava ser. Porém, madrasta que é, a vida não foi generosa comigo me dando indicativas do que eu poderia ser em lugar daquilo que ela me disse que eu não era. Ou talvez até tenha mostrado o caminho e eu não entendi o que ela quis dizer. Como entender algo em uma língua desconhecida quando a gente mal conhece a língua materna para comunicar as coisas mais primitivas?
À medida que o tempo foi passando, fui sendo despido das imagens irreais do que era. E cheguei no meio do caminho, completamente nu e sem poder dizer, batendo no peito com orgulho: “Eu sou isto. É isto que sou!”. Parado no meio do caminho, me apoiando em uma pedra aflorada, vendo a correnteza aumentar, sentindo que devo achar um ponto de apoio seguro para seguir em frente e sem conseguir encontrar, eu paraliso, mesmo sabendo que a única alternativa é continuar em frente. Torno-me três “Eus” distintos. Um ficou para trás em uma margem, o outro está à frente, na outra margem, e um terceiro está entre eles. E é inerte no meio da correnteza que olho com distanciamento para cada um deles me pergunto: Afinal, aquele é o que eu sou?
Querido,
ResponderExcluirTodos eles...és todos eles... e mais tantos outros que vais compor vida afora ou adentro...