segunda-feira, 24 de outubro de 2011

NOSSOS VELHOS (DES)CONHECIDOS

Photoallegory of Sarolta Bán (r)


“Tudo tenta se superar
E cheia até a beira
A vida quer jorrar 

Quem não se encarar com amor 
Vai fazer besteira 
Na esteira do rancor”
(Marina Lima – Setembro)


[PARA LER AO SOM DE "VIDA" – Chico Buarque]

Tenho passado por momentos de questionamentos descontrolados. Assumo que tudo que quero às vezes é não pensar em nada, ficar jogado no sofá, gordo, alienado e completamente feliz. Não consigo. Medito, respiro fundo, fecho os olhos, tento em vão esvaziar a mente. Nada adianta. Por isso escrevo. Tenho me questionado sobre os limites das relações que estabeleço com as pessoas, se realmente consigo estabelecer relações verdadeiras e sólidas e se consigo reconhecer verdadeiramente o outro.

Quando se conhece realmente uma pessoa? É possível conhecermos realmente alguém? O que sinto é que as pessoas, de maneira geral, quanto mais próximas, mais desconhecidas. Parece que sempre tem uma portinha que não eu não tinha aberto ainda e que atrás dessa porta tem um imenso quarto escuro cheio de entulhos. Tendo a pensar que à medida que entro na intimidade de alguém, vou vasculhando labirintos desconhecidos. Talvez até mesmo para o próprio “interlocutor/investigado”.  Não é proposital. Quando vejo, invadi.


Tendo a crer que as relações são todas potencialmente virtuais. Principalmente as ditas “pessoais”. A gente passa anos com uma pessoa e quando acorda do transe, numa tarde qualquer de setembro, numa manhã qualquer de agosto ou numa noite qualquer de outubro, vê que não a conhecia. Isso não é uma relação virtual? Esse estranhamento que permeia quase as relações, em determinados momentos, não é virtualidade? Será que a intimidade é o (des)conhecimento do outro? Ou será que isso é resultado de nossas projeções amorosas?

Conheço várias pessoas que tiveram relacionamentos que iniciaram virtualmente. Eu mesmo já tive. Sinal dos tempos. Preferia que fosse num café, num museu ou num parque sob o sol. Mas as pessoas preferem seus écrans. Nossa janela para o mundo é o monitor dos nossos computadores. Namoramos nessa janela. E namorar na janela pode até ser bom. A internet está aqui para isso. Para aproximar as pessoas e deixá-las namorar na janela, mesmo que de luz apagada. Para mim, porém, nada substitui o olho no olho, o toque, o cheiro, o gosto, por mais imaginação e boa vontade que tenhamos.

Conhecer alguém pessoal e intimamente pode ser o começo da virtualidade. Desvendamos no quarto escuro os detalhes que ultrapassam o toque, o cheiro e o gosto do outro. Que usamos máscaras sociais quase o tempo todo (sem percebermos) é fato conhecido. Que talvez vistamos um personagem para seduzir é algo a ser considerado, afinal faz parte do jogo de sedução. Sou péssimo com esses jogos, admito sem muito orgulho. Gosto de cotidianidade, de vestir o pijama depois do jantar romântico, de dormir aconchegado e preparar o café da manhã no dia seguinte, de cara amassada. Mas não sei até que ponto não tenho meus subterfúgios e minhas próprias máscaras. Talvez minha cara limpa seja meu metiê. Quem sabe?

Tenho, lá no fundo – ou nem tanto - alguns mecanismos de proteção e segurança, meus anti-spam, que me protegem na rede e fora dela, que talvez sejam os mais fortes. Anormal? Não sei. Acho que a maioria das pessoas tem, e provavelmente sejamos todos anormais. O que busco é encontrar o cerne, o ponto, o limite. No meio dessa geléia toda, onde eu estou realmente e até que ponto visto uma armadura para me proteger do (des)conhecido?

O que me deixa inseguro é o desconhecimento que enfrento no decorrer de uma relação virtual que deixou de ser. Frustração ao reconhecer meus próprios limites e os limites do outro, por não ter as ilusões criadas confirmadas, ou pior, por tê-las todas confirmadas, por não ser reconhecido pelo outro como sujeito amante e desejante. Abandonar virtualidades é o desfazimento de uma projeção e o começo de outras.

O fato é que essa frustração desperta aquela dor fininha. Uma espécie de saudade do que não chegou a ser e do que não tive. Uma tristeza funda. Nem sempre sei dar nome. Angustia? Melancolia? Às vezes os sonhos desfeitos voltam, mesmo que não sejam conscientemente identificáveis. Solidão, em última instância. E nela danço eu, dança você.

Mas pode existir uma solução no meio do entulho:  Não projetar-me no outro,  não criar essas ilusões. Bonito no papel, né? Mas na hora H, quero ver quem consegue fazer isso sem se machucar. Entendo, quando ouço dos profetas de plantão que encontro pelas esquinas da vida, que é necessário o equilíbrio. Essas pessoas fazem tudo parecer tão fácil. Para mim, claro. Eles não precisam fazer nada, eles são apenas proféticos com a minha vida. Não sei muito bem como alcançar esse tal caminho do meio, esse equilíbrio. Mas tento, tateando no escuro todos os dias, em busca de luz. Em alguns dias tudo parece mais escuro que em outros.

Bem, se é projeção, o problema é meu. Tento não colocar a culpa nos outros, embora seja o caminho mais fácil. Marisa e Maísa me entendem: A dor é minha, não é de mais ninguém e se meu mundo caiu, eu que aprenda a levantar. Se tudo são escolhas pessoais, eu fiz as minhas. Lembro, ainda, do bom Chico: Quero luz, porque sei que além das cortinas são palcos azuis. E não adianta insistir, não desistirei de dançar cheek to cheek.


segunda-feira, 17 de outubro de 2011

SOBRE O LIVRE EXERCÍCIO DO AFETO

[Para ler ao som de Nina Simone - Feeling Good:


“Todo mundo se apaixona, ama e sofre por amor; todo mundo tem projetos de vida que luta para realizar.”
(Marcelo Laffitte, sobre o filme Elvis & Madona)



Sábado. Noite meio morna de primavera. Nem fria, nem quente, nem nublada, nem estrelada. Lendo o jornal, descobri que estava em cartaz na cidade o filme Elvis & Madona, do diretor Marcelo Laffitte, com Simone Spoladore e Igor Cotrim. Tentei encontrar alguém que quisesse me acompanhar ao cinema. Em vão. Resolvi, então, assumir que sim, ando meio só. E sim, tenho que aceitar. Sem drama. Nessa noite incerta de primavera resolvi fazer um daqueles programas “a um” que andava meio desacostumado a fazer. A gente desaprende a ser só.

Cheguei à bilheteria vazia, comprei o ingresso e matei tempo até o horário da sessão. Jantei tranquilamente, tomei um café, fumei um cigarro. Dirigi-me à entrada do cinema alguns minutos antes, a tempo de comprar pipoca e algo para beber, como manda o figurino, imaginando que a fila seria considerável e teria dificuldades para encontrar um bom lugar. Para minha grata surpresa e regozijo espiritual a sala estava completamente vazia quando cheguei. E assim permaneceu. Tive uma sessão exclusiva só para mim. Êxtase puro!

Confesso que sou meio neurótico com essas coisas de público, principalmente em cinemas. Mas não tenho ágorafobia, apenas acho super chatos os sons que as pessoas emitem durante os filmes, detesto sessões lotadas, torço sempre para achar um lugar razoável, sem pessoas sentadas muito perto e sem interferências durante o filme. Porque sempre tem alguém comendo batata frita crocante e refrigerante ao lado e alguém atrás enfiando os pés no encosto da frente (o meu!). Acho que as pessoas deviam ter o mesmo respeito em cinemas que tem em missas. Bem, as pessoas não respeitam mais os cultos religiosos de maneira geral. Sinal do fim dos tempos? Talvez do fim dos templos.

Sobre o filme? Ah, sim. É sobre ele também que quero escrever. Meu êxtase inicial por conseguir assisti-lo sem qualquer interferência externa foi diminuindo gradativamente ao longo da exibição. Saí da sala meio incomodado, como se faltasse algo, uma última palavra, um último gesto. Queria saber se o que eu sentia em relação ao filme era uma má vontade voluntariosa (bem característica) ou se tinha alguma necessidade que, como espectador leigo, Laffitte e elenco não tinham conseguido satisfazer. Caminhei pela rua silenciosa e deserta procurando explicações, entre cigarros e pensamentos ruidosos, com a voz rouca da Elza Soares cantando “I Love You, Copacabana”, música-tema do filme.

Foi quando fui interrompido por sax rasgando acordes de uma música conhecida: “It's a new dawn / It's a new Day / It's a new life / For me / And I'm feeling good”. Parei, buscando identificar de onde vinha aquele som. Da penumbra da porta entreaberta surgia uma música contagiante. Entrei. Envolvido pelo jazz apresentado por uma banda que desconheço completamente, sentei-me num canto. Entre goles de cerveja e alguns (pouquíssimos e marginais) cigarros na beira da calçada em frente ao bar, porque estão querendo nos proibir de sermos livres em nome da saúde, pus-me a ruminar Laffitte, Elvis e Madona, enquanto tamborilava “Feeling Good” na mesa de madeira.

Não gosto muito de filmes que falem sobre gênero. Sempre acho que acabam sendo clichês e tendenciosos. Na verdade, não foi o caso deste, em especial. Mas faltou algo, no geral. Achei as atuações dos protagonistas medianas. Impossível comparar a travesti Madona (Igor Cotrim) com personagens como Agrado (Antonia San Juan), de Tudo Sobre Minha Mãe ou com Bree Osbourne (Felicity Huffman), de Transamérica. O rapaz pareceu esforçado em cumprir seu papel. Mas não me comoveu. Em alguns momentos ele peca por falta, em outros por excesso, o tempo todo por não achar o ponto certo do jeito irreverente e ao mesmo tempo delicado e sensível que Laffitte gostaria – interpretação minha - de imprimir à personagem. Não obstante, levemente melhor que Igor, a personagem lésbica Elvis (Simone Spoladore), que em entrevistas Laffitte afirmou querer uma figura feminina e delicada, pesou a mão nos trejeitos “black boot”, jaqueta de couro e pochete, beirando o caricato. A moça ainda é mais convincente que o inexperiente Igor, afinal ela já tem alguma trajetória em cinema, como o belíssimo Lavoura Arcaica, O Ano em Que Meus Pais Sairam de Férias e Primo Basílio. Já o rapaz estréia no cinema nesse filme.

Sei que nadarei contra a corrente agora, afinal o filme foi aclamado pelo público e pela crítica. A obra recebeu mais de vinte prêmios e teve muitos méritos por ser um filme independente, com baixo orçamento (ganhando inclusive um prêmio por isso) e por tratar de temas um tanto indigestos para a grande maioria conservadora deste país. Rendo-me à coragem e obstinação do diretor. Porém, o filme não me convenceu. A narrativa tem um bom ritmo, a fotografia tem seus méritos, embora não existam surpresas, a trilha sonora é interessante e se encaixa perfeitamente à proposta da trama, a ambientação em Copacabana é super apropriada. Gosto dos takes de passagem de tempo, com montagens de fotografias do Rio de Janeiro, numa alusão à profissão de Elvis. Acho que a montagem e a edição do filme pecam um pouco, deixando a narrativa por vezes truncada e um pouco cansativa, principalmente nas cenas finais do filme.

Apesar de todas as ressalvas e resistências que tive com o filme, de alguma forma meio nebulosa ainda eu me sensibilizei com a obra. Nas palavras do próprio diretor, o filme fala sobre sentimentos humanos e universais: “É uma história de amor e de realizações de sonhos, e isto é universal”. Acho sensível e tocante a forma como os personagens transitam pela narrativa, trazendo à tona – superficialmente - seus sentimentos, desejos, buscas e frustrações mais íntimos. Mérito do roteiro. E embora o filme trate de sentimentos universais, e isso é o que liberta os personagens de imposturas sociais, o que une Elvis e Madona são sentimentos/sofrimentos de pessoas marginalizadas justamente por serem impedidas de exercitarem seus afetos - universais - de forma livre e fluída. Esse contraponto deixa um sabor residual meio amargo na gente. Em minha opinião, esse talvez tenha sido o melhor insight do diretor em seu primeiro longa.

Elvis & Madona se diferencia de filmes que tratam das homossexualidades como escusas e marginais e cai melhor no gosto do público porque é um filme com uma história de amor bonita e esperançosa, apesar de todas as amarguras da vida e dos caminhos tortuosos que enfrentamos. Mas, assim como os personagens esperançosos e sedentos por felicidade apresentados por Laffitte, eu queria mais. Mais do próprio filme. Queria mais dos personagens, mais do diretor, mais do sonho, mais das esperanças, mais daquilo ao que o filme se propôs.