[Para ler ao som de Over My Shoulder – Mika]
“Me vejo o tempo todo
Começar de novo
E ser e ter tudo pela frente”
(Leila Pinheiro – Abril)
Você chegou dançando bonito. E eu meio bobo, desajeitado, parecendo um boneco articulado sem vida e sem ritmo. Um Pinóquio equivocado, sem Gepeto. Desengonçado, sem saber onde colocar as mãos e sem encontrar um lugar onde pousar os olhos que não fossem os detalhes do seu corpo deslizando no ar em minha frente, realismo fantástico de Fellini. Seus quadris seguiam o ritmo da sua alma. E a minha alma nunca mais seria a mesma depois desse dia. A música não vinha de fora, ela vinha de dentro de você, e não importava que música era. Você dançava o universo todo. E eu lá, parado, vendo você se mover pelas estrelas, querendo lhe acompanhar nessa sua dança bonita. Queria entrar nos seus quadris e ser envolvido pelos seus braços e me perder nas suas coxas. Queria dizer algo. Não conseguia. Porque além de não saber dançar eu não sabia falar. Hesitei. Acendi mais um cigarro e pedi outro conhaque. Aprendi, a duras penas, que às vezes é preciso dar um passo para trás para recuperar o fôlego e conseguir impulso para seguir em frente. Aprendi, também, que isso nem sempre funciona. E eu ficaria nesse dilema entre segurar você pela cintura e dançar a sua dança ou tomar meu conhaque num único gole, que bateria como um soco no meu estômago vazio, e ir embora pela mesma porta por onde entrei. “Feels like I'm falling, far out of sight, cold, drunk, tired, lost…”
Preferi seguir o caminho que julgava ser o meu, mesmo sem saber para onde iria. Mas você não me deixou. Você veio comigo, mesmo tendo ficado lá, na sua dança envolvente. Eu saí pelas ruas escuras impregnado de você. Sua vida é tão diferente da minha. Você tem uma vida. E eu querendo encontrar a minha própria, nas linhas da sua mão que nunca toquei. Eu precisava seguir esse caminho que escolhi, com minha pesada bagagem sobre os ombros, mesmo sem nunca saber ao certo por quais motivos continuar. E é mesmo destrutivo demais insistir sem fé alguma. Eu trouxe você comigo, e você nunca saberá disso. Eu sei, meus olhos me denunciaram, meu sorriso meio amarelo me denunciou, meu ar desacreditado me denunciou. Depois de muito tempo ausente, eu sabia que era hora de voltar para a casa vazia de mim, que havia abandonado para buscar outras coisas que nunca descobri o que eram exatamente. Sobre essas coisas desconhecidas, eu tinha apenas o sentimento de que existiam e que estavam ao alcance da minha mão, como uma fruta madura no pé, pronta para ser colhida. Só que eu fiquei cego com a luz do dia. “Fog out my daylight, torture my night...”
No escuro, procurei as chaves, abri a porta e larguei a mala cheia de lembranças das batalhas contra o Rei e das discussões com Deus. Um cheiro conhecido de um passado perdido envolveu meu ser inteiro. Tudo estava igual, mas nada era como antes na casa vazia de mim. O som retumbante das minhas velhas botas contra o chão de madeira era o único indício de vida. Há tempos eu somente me percebia vivo se fizesse algum barulho. E eu estava cada vez mais em silêncio. Até ver você dançando. Você reverbera em meu peito. Como num holograma, você se surgiu no meio da sala, olhos negros e brilhantes, cabelos desalinhados, a camisa branca meio desabotoada, aquele jeito de quem vai me abraçar forte e para sempre e que vai me fazer sentir que tudo ficará bem. Nada me protegia da vida e nada me protegeria de você. Eu sabia que não devia ver você andando pela casa, dançando ao meu redor como num ritual. Mas já era tarde demais para eu fugir. Eu já tinha mais de trinta e já tinha perdido a inocência. Havia aprendido que nada me faria fugir do que eu realmente queria.
Vendo você dançar para mim essa sua dança ritualística eu me desfiz das minhas roupas sujas de lama, sangue e tristezas, trazidas das longas viagens, e tentei dançar com você pela casa. A lama que minhas roupas carregavam encobria uma ou outra medalha de honra pelas poucas vitórias sem glória alguma. Até encontrar você eu achava que voltaria para meu refúgio sagrado, que conseguiria retornar para meu bunker e finalmente me conectaria com minha verdade, com aquele elo perdido que seria a chave para que eu me identificasse novamente como humano.
Você me mostrou um mundo tão diverso do meu, tão colorido e intenso. E eu nunca conseguirei dizer que sou grato por você ter transformado minha vida, porque você nem sabe que eu existo. Nem eu mesmo sei se existo. Achava que existia pelos sons das minhas velhas botas, ou pelos meus gritos sufocados no travesseiro nas infinitas noites estreladas que atravessei sozinho. Agora sei que existo porque você dança para mim, na minha mente e no meu peito. E eu danço pela casa a sua procura, completamente despido de tudo, meu corpo pálido e nu reluzindo contra a pouca luz da noite que entra pelas frestas das janelas é um resquício de existência, vaga e fria, um pequeno indício de que ainda pode existir alguma vida em mim. Aqui dentro você vai estar sempre rodando e movendo os braços como se eu pudesse lhe abraçar forte. Descobri, finalmente, o que é o amor. E ele é uma grande ilusão. Mas não se pode ter tudo na vida. Me ensina sua dança?