“The Dream of Lisa”. (Tania Baeva)
Para ler ao som de Koko Taylor, 'Voodoo Woman'
“Estou cansado de desamor”. Esta foi a ultima frase que ele disse
antes de partir, talvez para sempre, nesta manhã fria e ensolarada. Mas não
teve a dignidade de falar isso olhando nos meus olhos. Disse num bilhete torpe deixado
sobre o criado mudo, ao lado dos meus comprimidos para dormir e da xícara de
chá de ervas, sob a cópia da chave de casa que eu havia dado a ele. Eu não vi
ele partir. Estava num sono pesadíssimo. Além disso, normalmente acordo tarde.
Especialmente quando a noite anterior foi insone. E eu tinha me debatido a
noite inteira, uns suadores estranhos, uns pesadelos com pessoas caindo,
caminhos sombrios e desconhecidos que eu tinha que atravessar, precipícios
gigantescos e intransponíveis, águas agitadas e caudalosas. Acordei várias
vezes. Olhava o relógio, que parecia não se mover, tomava mais um comprimido,
fumava um cigarro, verificava se todas as portas e janelas estavam fechadas, se
o gás estava desligado, de as torneiras não pingavam. Voltava para a cama e
tentava dormir novamente. E os sonhos recomeçavam de onde tinham parado.
Não entendi direito o que ele
quis dizer com essa mensagem. Não sei que desamor é esse do qual ele cansou,
tampouco que amor é esse que ele reivindica nas entrelinhas dessa mensagem de
cansaço pela falta de amor. Eu sempre o amei profundamente e sempre acreditei
que amor deve libertar. E foi o que fiz. Sempre deixei ele livre para ir e
voltar, entrar e sair da minha casa e da minha vida a hora que quisesse e da
forma que melhor aprouvesse. Ele tinha a cópia de todas as chaves e eu somente pedia
para que ele avisasse previamente aonde iria, com quem e que hora voltaria.
Admito que vez ou outra eu o seguia, revisava os bolsos das camisas, das calças
e dos casacos quando ele chegava, olhava as ligações e mensagens no celular,
esperava ele dormir profundamente e procurava sinais suspeitos em seu hálito,
no pescoço, nas virilhas. Afinal, vivíamos juntos, tínhamos intimidade e um
trato de cumplicidade. E agora isso. Agora ele me fala em estar cansado de
desamor. Nunca esperei que ele fosse capaz de ser grato a mim por tudo que fiz,
mas esperava um pouco de lealdade e reconhecimento.
Nos primeiros momentos fiquei sem
rumo, andei pela casa toda, procurando indícios que me levassem a acreditar que
ele voltaria. Olhei todos os armários de roupas, as estantes de livros e
discos, os chinelos sob a cama, a escova de dentes no banheiro. Tudo havia
sumido. Maus presságios. Então tentei recobrar a calma. Parei em frente ao
espelho do banheiro, depois de ter revirado o cesto de roupas sujas procurando
alguma cueca esquecida (e não havia nada). Olhei detidamente meu rosto no
espelho, detalhe por detalhe, querendo ver se descobria algo que pudesse me dar
uma pista desse - na minha opinião - súbito desaparecimento.
Fisicamente não sou mais como
antigamente, isso é fato. Mas ainda tenho algum vigor, alguma vivacidade. Meu
rosto está envelhecido e ressecado, tenho umas manchas estranhas nas maçãs, uns
vincos fundos na testa e entre os olhos, meus cabelos estão opacos e grisalhos,
mas isso eu poderia resolver se fosse o que o incomodava. Ergo o queixo e
estico ao máximo a pele do pescoço e sinto as marcas do tempo que jamais serão apagadas.
Não tenho vaidades, mas sei usar de todos os artifícios disponíveis quando
necessário. Passei suavemente as mãos nas têmporas, jogando os cabelos para
trás, e tentei ver meus olhos. Não consigo ver meus olhos no espelho. Tampouco
consigo ver minha boca. Vejo apenas manchas negras. Talvez precise começar a
usar óculos. Senti a aspereza das minhas mãos contra meu rosto sem cor e
congelei numa cena que lembraria a obra “O Grito”, de Edvard Munch. Acho que é
esse desespero que sinto agora: Clichê e maçante e ultrapassado. Pela ausência
dele e pela velhice inefável, pela sequência inevitável dos dias, pelos meus
erros do passado. E especialmente porque habito a prisão que criei. E nem ele
nem eu sabemos onde estão as chaves que me libertarão dela.
Juntei o bilhete, enrolei-o num
canudo, bati mais uma carreira, que aspirei sem vontade. Depois usei o papel do
bilhete para acender mais um cigarro, como auxílio de uma brasa da lareira. Coloquei
a chave novamente no molho com chaveiro onde a imagem de Jesus Cristo crucificado
imerso em bola de acrílico âmbar, como se tivesse fossilizado pela seiva de uma
árvore jurássica, reluz contra o sol e tilinta como um cincerro quando ando
pelas ruas.
Tratei de deixar as linhas dos
telefones desocupadas, a caixa de e-mails vazia, verifiquei mais uma vez a
caixa de correspondências. Perguntei senhor ucraniano de noventa e cinco anos -
que tosse e ronca as noites inteiras há quinze anos na casa ao lado, importunando
meu descanso - se havia recebido alguma encomenda, alguma caixa ou carta sem
que eu visse. Ele me disse, irônico e profético, que não viu nada chegar, mas
que logo cedo, havia visto “Ele” sair com uma pesada bagagem e que pelo volume
pelos passos determinados era para sempre.
Voltei, fechei a porta com duas
voltas na chave, deixando Jesus-cincerro tilintando na fechadura, coloquei uma
música suave, acendi um incenso, sentei em posição de meditação sobre um tapete
indonésio e canalizei minhas energias para ele. Elevei meus pensamentos, de
olhos semicerrados, conectei-me às energias cósmicas para iluminar seus caminhos,
para que sua mente fosse atingida por essa chama de luz. Tentei alinhar meus
chakras e visualizar a chama violeta de amor que nos une, entoei todos os
mantras de purificação e proteção que conheço. Porém, minha vontade maior era
de quebrar toda a casa, queimar tudo o que possuísse qualquer vestígio que me
reportasse vagamente a ele, apagar os pelos do ralo do banheiro, queimar na
lareira as toalhas com o cheiro amadeirado da sua pele, junto com todos os meus
livros que ele leu e que guardavam ainda o cheiro das mãos dele, como se tivesse
acabado de larga-los. Queria jogar álcool na cama e lascar um fósforo, dar as
costas e deixar todo o passado ser consumido pelas chamas, afinal meu coração
já havia sido consumido pelo fogo daquele amor estéril e inútil. E eu
caminharia calmamente pela calçada de pedriscos, arrastando minha sandália de
tiras, sentindo apenas o calor das labaredas nas costas, cada vez mais fracas,
à medida que me afastasse da casa.
Mas não fiz isso. Respirei
profundamente incontáveis vezes, para que a energia do planeta neutralizasse meus
venenos interiores. Não funcionou. Peguei uma garrafa de vinho tinto, enchi uma
taça até a borda, coloquei uma Koko Taylor corosiva, dilacerada em “Voodoo Woman”, queimei mais uma erva
(nesta semana recebi uma boa!), dancei pela sala de pés descalços e rodei meu
vestido amarelo estampado com hibiscos vermelhos como uma cigana beatnik,
cantando “And i know the reason why, /
They call me the voodoo woman”, pulando e rolando pelo chão do meu mundo
particular.
Depois, cansada dessa dança vital
em frente ao fogo (tentativa Wika de exorcizá-lo), tentei me recompor. Arrumei
meus longos cabelos com as pontas dos dedos, sequei o suor do rosto com as
palmas das mãos e limpei-as no vestido, peguei a cesta de vime ao lado da
bergère de veludo carmim, sentei-me confortavelmente, voltada para a janela de
dava para a rua, coloquei a cesta sobre o colo, retirei dela a cambraia
alvíssima, delicadamente colocada entre os dois arcos de madeira, peguei
agulhas e linhas e pus-me a concluir o trabalho que começara há tempos. Ponto a
ponto, cantarolava “o mais importante do
bordado é o avesso, é o avesso”, imitando a voz potente de Bethânia e
jogando meus longos cabelos cacheados no rosto como ela faria no palco.
Ele nunca quis ver o avesso do
meu bordado, nunca saberá com que cuidado eu construo, ponto a ponto, as
iniciais do seu nome nesse pedaço imaculado de pano branco. Da mesma forma
nunca quis saber dos meus sentimentos profundos e verdadeiros por ele. Depois
de bordar seu nome com esmero, costurarei firmemente a cambraia no pequeno
corpo do boneco de pano, feito com retalhos de uma camisa que ele adorava, onde
esperarei dezenas de agulhas, hoje mesmo, logo que anoitecer. Enquanto isso,
espreito através da janela, cautelosa e pacienciosa, sentada em minha poltrona.
Mantenho a coluna ereta, a mente quieta, o coração tranquilo e as pernas
cruzadas, meio Dietrich. E fumando espero aquele a quem mais quero. Quem sabe
ele resolva voltar antes do sol se por.