Robert
Longo. From the Men in the Cities series. 1981--(montagem)
[Morte] Quer
garantias?
[A. Block ]
Chame como quiser. É tão inconcebível tentar compreender Deus? Por que ele se
esconde em promessas e milagres que não vemos? Como podemos ter fé se não temos
fé em nós mesmos? O que acontecerá com aqueles que não querem ter fé ou não
tem? Por que não posso tirá-lo de dentro de mim? Por que ele vive dentro de mim
de forma tão humilhante, apesar de amaldiçoá-lo e tentar tirá-lo do meu
coração? Por que, apesar de Ele ser uma falsa realidade, eu não consigo ficar
livre? Você me ouviu?
[Morte] Sim,
ouvi.
[A. Block ]
Quero que Deus estenda as mãos para mim, que me mostre seu rosto, que fale comigo.
[Morte]
Mas Ele fica em silêncio.
[A. Block ]
Eu O chamo no escuro, mas parece que ninguém me ouve.
[Morte]
Talvez não haja ninguém.
(Trecho do Filme O Sétimo Selo, Det Sjunde
Inseglet, 1957, Ingmar Bergman)
Poderia ser a cena do filme de
Bergman onde o cavaleiro joga xadrez com a Morte: “Você joga com as pretas”, disse Antonius Block para a Morte. “Muito apropriado, não acha?”, ela
responde. Sentados frente a frente, duelaram
suas vaidades, asperezas, incertezas e solidões. Estudaram meticulosamente cada
gesto, cada palavra. Olhares vazios, copos cheios. Sobre a mesinha redonda de
madeira escura e pés de metal escovado da cafeteria, estavam dispostas ao
centro duas xícaras de porcelana brancas com café até a metade, duas taças de
água já sem gás, uma tigela de biscoitos amanteigados intocados. De um lado, os
óculos de grau de um deles sobre o livro O Silêncio dos Amantes, de Lya Luft. Do
lado oposto, e o telefone celular do outro, sempre em modo silencioso e virado
para baixo. Polidez? Reserva? Privacidade? Olharam simultaneamente para os
pertences alheios, entre a curiosidade e o desdém, pensando que eram muito
apropriados aqueles objetos dispostos sobre a mesa daquela forma e naquele
momento. Quatro mãos bonitas, muito brancas, pousadas cruzadas sobre o tampo, contrastavam
com o escuro da madeira e emolduravam a cena. Assim como os olhos que não se
cruzavam, as mãos jamais se tocaram. No máximo, vez ou outra, dançavam no ar, nervosas,
entediadas ou explicativas, nunca divertidas ou amorosas como antes. “Esta é a minha mão. Posso mexê-la. O sangue
pulsa nela. O sol está alto no céu e eu, e eu, Antonius Block, jogo xadrez com
a morte”. Tamborilavam os dedos na
mesa para que pelo menos houvesse algum barulho que pudesse desfazer aquele
deserto de incertezas e silêncios inférteis.
Às vezes um deles apoiava o queixo na mão aberta enquanto ouvia o outro
dizer alguma coisa. Essa poderia se uma atitude que demonstrava interesse pelo
outro. Ou poderia ser apenas cansaço de tudo. Nunca saberão. Havia um abismo
entre eles. O abismo era Intransponível. E se não fosse, seria Indisponível.
Indisponível, chamemos assim
porque era assim que o outro o denominava, era um homem bonito de meia idade. Altivo,
sensato, sereno, olhos de um verde profundo, pele muito clara. Barba rala,
sempre bem aparada, cabelos negros. Seu sorriso era franco, às vezes meio retraído,
especialmente quando espremia os cantos da boca e desviava o olhar para o infinito.
As covas das bochechas ficavam levemente salientes e combinadas com o brilho
dos olhos cor de esmeralda, que também sorriam, desenhavam um ar de menino que
cresceu de repente e ainda não se adaptou à vida de adulto. Era tímido. Às
vezes se refugiava atrás de uma autoestima e segurança inabaláveis, talvez na
tentativa de não ter sua personalidade em eterna construção colocada à prova. Seus
pensamentos e atitudes eram firmes, mas ele era doce e conseguia ver beleza nas
menores coisas da vida. E essa doçura deixava transparecer que por trás dessa
casca de altivez e autossuficiência o mais importante para ele era o que o coração
e a alma ditavam. Tinha a fala mansa. Possuía um jeito de quem já viveu tudo e
encontrou o ponto de equilíbrio eterno e imutável. Meio espiritualizado, meio
transcendente, meio Shiva, meio Nossa Senhora, meio Madre Tereza, meio Ghandi. Mas
esse Sidarta que não a abandonou o castelo paterno de origem para atingir a iluminação não
tinha se livrado das ilusões do Samsara. Pelo contrário, era cada vez mais
vítima na teia do real. Em rompantes de lucidez (ou acidez?) dizia-se
despertando de um sonho difícil para a realidade “tapa-na-cara”. Sempre tinha
uma frase grandiloquente para ilustrar, acalmar, confortar ou contextualizar
qualquer situação, o que lhe conferia, entre os seus, um ar sábio do tipo
“pergunte-qualquer-coisa-e-responderei”.
Intransponível, que também será desta
forma nomeado por ser assim que o outro o via, era o oposto complementar de
Indisponível. Ambos tinham mais ou menos a mesma idade. Intransponível era
ligeiramente mais jovem que o outro. Tinha o olhar oscilando entre a catatonia
perdida em pensamentos neuróticos e o nervosismo de querer dizer tudo que sua
mente frenética produzia. Era pálido, olheiras fundas, cabelos grisalhos
desgrenhados, barba eternamente por fazer, unhas roídas, um ar cansado de quem
lutou por anos, perdeu a batalha e voltou, incrédulo e desesperançado, arrastando
a armadura e a espada e tentando enganar a Morte. Mas não era derrotista. Era
sim amargo e cético, como se houvesse olhado no espelho naquela manhã e
tivesse descoberto que é um velho sem futuro. E talvez fosse. Mas no fundo de
seus negros e opacos olhos ainda havia sonhos. Mas a vida trancafiou esses
sonhos numa carapaça cinzenta, numa pele opaca, num sorriso amarelo de amarguras,
cigarros e café, num corpo nem magro, nem gordo, apenas disforme e desajeitado.
Desajeitado como seu espírito, como sua alma. Incompreensível e inacessível
como seu coração. Tinha apenas histórias para contar. Histórias verdadeiras e
fantasiosas (a maioria), porque acreditava que a vida não precisava ser vivida
– se dura –, mas devia ser inventada. Vivia cada dia como se fosse o último
(pelo menos emocionalmente) e esfarrapado arrastava-se para o dia seguinte porque
acreditava que era lá onde e quando seria um homem melhor. Desenhava histórias
com finais temerosos. Era hábil com lápis e papel. Superstição de que talvez
vivendo maus agouros no papel ficasse livre de vivê-los na vida real. Tinha
os livros que leu, os discos que ouviu, os amores que perdeu, as lembranças que
não conseguia esquecer, uns trocados no bolso do pesado casaco de alpaca azul
marinho de marinheiro e uma vontade imensa de viver outra vida.
Tentaram conversar sobre
amenidades. Não foi uma conversa difícil. Ambos tinham o riso frouxo quando
estavam juntos, mesmo em situações em que a dor era excruciante e que estavam
armados. Possuíam humor ácido e ferino, eram astutos, perspicazes e sempre
tinham um comentário sobre tudo o que acontecia à sua volta ou dentro deles. No
tempo que permaneceram frente a frente, nessa tarde qualquer de um dia
qualquer, na cidade que não era de nenhum e ao mesmo tempo era de ambos,
trocaram alguns olhares furtivos, indecisos, receosos. Olhavam detida e
disfarçadamente o outro, sem serem flagrados, e perdiam-se em pensamentos
silenciosos. Intransponível sempre foi
acusado de não dizer o que sentia. Indisponível de não sentir o que dizia. Eles
sabiam, olhando no fundo dos olhos do outro, que se amavam profundamente. Um amor
puramente fraterno, cristão, o amor mais nobre e digno que poderia existir. Mas
a cada novo suspiro de insatisfação e a cada frase solta, cotidiana ou banal,
dita com requintes de crueldade, as diferenças abissais que existiam se
tornavam mais fortes.
Trocaram algumas singelezas e
gentilezas. Trocaram presentes porque Intransponível adora cheiros
confortantes antes de dormir e Indisponível faria uma grande viagem sozinho. Em
alguns momentos a conversa era leve, quando ambos faziam piadas sobre coisas
engraçadas da vida que quase tiveram em comum. Em outros era pesada, quando se
deparavam com suas limitações e suas incapacidades pela vida em comum que nunca
tiveram. Um comentou sobre o livro que estava lendo, que contava a história do
amor entre uma mulher e um homem, ambos de meia idade. Esses dois seres se
encontraram já na maturidade, vinham de vidas pontuadas por dores e perdas,
cicatrizes profundas e resquícios que jamais seriam esquecidos. Porém, ambos
tinham um impulso vital de sobreviver a essas marcas e colocar as lembranças –
boas e ruins – de uma vida inteira num lugar especial e devido. Narrada em
primeira pessoa pela mulher, a história é pautada por sentimentos intensos e
conscientes, contextualizados através dos silêncios que somente os amantes
entendem, aqueles momentos em que nada é necessário ser dito, onde calar é
deixar que o outro entre em seu no universo particular, quando tudo é
compreendido e compartilhado apenas com um olhar. Silêncio é cumplicidade
também. Coincidentemente ou não, esse silêncio fértil que pontua e tece a trama
amorosa era Intransponível. O outro
contava sobre um livro que havia lido, que falava sobre os meandros das
relações amorosas, através de explicações pouco ortodoxas e um tanto
metafísicas e sobre a necessidade de humor no amor, de condescendência, generosidade
e paciência. Ele sempre gostou de manuais sobre amores-que-podem-dar-certo. Essa
elucubração sobre uma existência que não era a sua e sobre uma relação que
nunca tiveram era Indisponível. E ambos concordavam intimamente, era também
Intransponível.
Exaustos do derradeiro embate de
horas que pareceram semanas, os duelantes saíram da cafeteria. Precisavam
caminhar. Precisavam respirar. Precisavam emergir. Era noite alta. Caminharam lado
a lado sob o céu estrelado, em silêncio quase absoluto, somente quebrado por
uma ou outra farpa trocada polidamente. Seria a noite perfeita para os amantes.
Mas eles não sabiam sê-lo. Eram dois aristocratas ingleses do século XVIII, com
seus sobretudos nas mãos e seus chapéus cobrindo as faces marcadas de desgostos,
dois oficiais do Führer, de botas reluzentes e semblante austero, duas
carmelitas silenciosas e castas indo para o claustro, dois prisioneiros
condenados à pena de morte atravessando o corredor frio e sem fim rumo à
execução. Um tentou aproximar-se, como sempre do jeito errado, soltando
espinhos. Intransponível. O outro não estava mais lá. Indisponível. Haviam se transformado
em lembranças esmaecidas de alguém que um dia foi o centro de uma vinda inteira.
Murmuraram, resmungaram, calaram.
Corações apertados, nós nas gargantas, talvez tivessem os olhos marejados. Não
era possível ver porque andavam por caminhos escuros e estavam em nenhum
momento olharam um no rosto do outro. E mesmo que tivessem olhado, talvez não
conseguissem ver nada além de um borrão. Seus olhares não se cruzaram na
despedida. Despediram-se solenes, desejando sem vontade que a vida fosse doce
que o futuro fosse uma nuvem macia onde pudessem pousar, que a vida não fosse
mais tão madrasta e desse uma colher de chá, porque o peito já era um copo até
aqui de mágoa. Intransponível, mais ácido que nunca, pensou em dizer ao outro
sobre o quão cíclicas eram as situações entre eles, que se aproximavam,
planejavam o futuro, desejavam, achavam que poderiam conquistar o mundo, mas
que depois roubavam sua coragem, o céu ficava cinza, vinham as tempestades, o
terreno onde cravavam suas estacas ficava infértil, surgiam os silêncios longos
e desesperadores, o afastamento, deixavam de participar um da vida do outro,
voltavam a ser desconhecidos. Então aparecia uma nova carta ou encomenda na
caixa de correio, um telefonema, uma mensagem qualquer. E o ciclo reiniciava
indefinidamente. Mas não disse nada. Abraçou um abraço oco e ainda pensou em
dizer suas últimas palavras, apoteótico e dramático. Um gran finale para uma peça em um único ato. Ficou calado, olhar
sintomaticamente distante. E isso era
Intransponível. Ao seu melhor estilo, o outro entendeu a mensagem nada
subliminar – que ambos detestavam, embora usassem muito - e respondeu à
provocação. Indisponível.
E o derradeiro encontro terminou
assim:
Luc B. Arquivo pessoal
PARABÉNS FILHO. ESTÁS CADA VEZ MELHOR. DESSE JEITO VAI FALTAR CORAÇÃO PARA TANTO ORGULHO. BEIJÃO DA MAMIS.
ResponderExcluirMãe coruja: Amo muito tudo isso...
ResponderExcluirFilho, tu sabes que o meu comentário possui um valor moderado, em virtude do amor que temos por ti. Porém mesmo assim te parabenizo pelo tua oralidade e poder de colocares o leitor na cena hipotética apresentada, o que diga-se de passagem, é atributo de raros escritores. Um beijo grande do Veio.
ResponderExcluirSempre muito bom! Um indisponível, outro intransponível. Parece q conheço esses dois e essa história. Abração
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