"Silêncio" - Montserrat Gudiol
“Não lhe peço nada
Mas se acaso você perguntar
Por você não há o que eu não faça
Guardo inteira em mim
A casa que mandei um dia pelos ares
E a reconstruo em todos os detalhes
Intactos e implacáveis.”
(Adriana Calcanhoto – Pelos Ares)
[Para ler ao som de Yann Tiersen – “L’Absente” (O Ausente)]
- Viajei dez mil quilômetros, numa odisseia de mais de vinte
e quatro horas para estar aqui, no mesmo lugar onde encontrei você pela
primeira vez, há mais de dez anos atrás. Aqui vivemos nossas primeiras horas juntos.
Foi mágico, não foi? Era primavera. A primavera aqui é tão bonita. Tudo tão
colorido, tão leve, tão claro. Dá vontade de viver e de amar loucamente. Foi
nessa ânsia de sentir tudo ao mesmo tempo que nos encontramos. Éramos dois
solitários querendo amar como se só nos restasse isso. E talvez amar fosse
mesmo tudo o que tínhamos. Estávamos subitamente maravilhados, tomados de
assalto pelo presente que a vida nos oferecia. E tínhamos a nítida certeza que
não poderíamos desperdiçar esse momento em hipótese alguma. Desvendei você como
se despetalasse vagarosamente uma flor, até chegar ao miolo, onde ficava
escondido o néctar saboroso cobiçado por abelhas e beija-flores. E me deixei ser
desbravada por você. Pelo menos até onde eu conseguia. E até onde você podia
alcançar, porque se chegasse muito perto meus espinhos feririam sua pele. Essa
sempre foi minha natureza e até hoje sou assim, infelizmente. Tento podar meus
espinhos, mas eles nascem novamente em outros lugares. Como todos os espinhos, os
meus são instrumentos de proteção contra predadores. Mas afastam quase todas as
pessoas, principalmente as que não são predadoras, e resultam numa solidão
quase sem fim. Nosso encontro sob a luz da primavera, cercados por suas cores,
seus sabores e seus aromas, foi lindo. Foi piegas e clichê também, como todo
encontro amoroso apaixonado nesta cidade. Éramos tão jovens e tão puros! Éramos
tão bonitos! E tínhamos um mundo inteiro para conquistar. Eu não tinha cabelos
brancos, você não tinha rugas. Meu ventre não era este deserto infértil, você ainda
era viril como um touro. Eu não fumava, você não bebia. Não tínhamos cicatrizes
dos nossos desastres implacáveis. Eu queria descobrir seu mundo, não importava
se você fosse diplomata, malabarista de circo ou vendedor de automóveis, queria
entrar em você até o mais profundo e descobrir quem realmente você era. E queria
trazer você para dentro de mim, para o mais longínquo e desconhecido das minhas
entranhas, para conseguir descobrir quem eu realmente era. Sim, era tesão o que
sentíamos. Mas o meu era um tesão romantizado, porque eu era “moça fina de
família tradicional”, metida a quatrocentona, sem um tostão no banco, mas com
muita pose, e estava saindo pela primeira vez de casa para conhecer o mundo
real sozinha e voar com minhas próprias asas. A mim era proibido sentir prazer
pagão. A alguém como eu, “moça de boa família”, de moral irretocável, com
educação talhada em internato de freiras, só era permitido exercitar um tipo de
amor: o cristão, folhetinesco e vitoriano. E você me ensinou a ser dona do meu
corpo, da minha vida e das minhas vontades. E ensinou-me a entregar-me a quem
eu quisesse, com ou sem amor. Nossas primeiras horas mágicas viraram dias, que
viraram semanas, depois meses e anos que no fim deram em nada além de dor e
ausência. Porque sei que todo carnaval tem seu fim. Já não importa mais. Você,
tão espiritualizado, depois de usar todas as drogas resolveu encontrar Buda,
Krishna, Alá ou Jesus, nem sei mais. Você, que acreditava piamente nos ciclos
da vida, sabe que isto é parte da “grande roda”, não é mesmo? Por isso fui
embora. Por isso comecei agora um novo ciclo. Ou termino aqui, neste momento,
um longo e infértil tempo. Porque desamor cansa, sabe. Não que eu esperasse que
você me oferecesse algo que não era seu para satisfazer meus desejos, às vezes
meio infantis e caprichosos, porque eu era uma mulher que estava me descobrindo
como tal e sendo construída por você, com o seu amor e com o seu desejo por mim,
e era natural que eu me perdesse um pouco com a excitação do descobrimento. Você
sempre dizia que “ninguém dá o que não tem” e um monte de baboseiras
espiritualmente elevadas que você lia naqueles livros que comprávamos nos sebos
das feiras de pulgas, nos infindáveis domingos ensolarados e sem volta que
tivemos. Eu não sei se vim até aqui, depois de atravessar um oceano por você,
para dizer que não lhe quero mais e que talvez nunca tivesse lhe desejado de
verdade, e sim desejado uma ilusão, uma ideia que criei, porque tenho mais de
quarenta anos, porque queria viver um amor de verdade, porque queria sentir-me cotidiana,
viva, intensa, comum e especial ao mesmo tempo, por ser capaz de ser amada e
principalmente por ser capaz de amar. Mas não. Não sei se sou capaz de amar
você ou qualquer outra pessoa. Tampouco sei se fui amada por você de verdade. Talvez
fôssemos somente o egoísmo e a soberba de nos sentirmos especiais e únicos
pelos vínculos que tínhamos (ou achávamos que tínhamos). Contudo, mesmo
carregando essas amarguras cravejadas de incertezas e emolduradas por mágoas
nunca reveladas, eu venho em aqui em missão de paz e reconciliação. Queria sentar-me
à mesma mesa, tanto tempo depois, reviver o passado, revisitar nossa história e
dizer que foi boa, que foi bonita. E que acabou. Ou então, revisitando minha
própria vida, certificar-me se existe algum brilho do meu olhar perdido entre
os farelos de pão sobre a toalha branca ou nas minúsculas gotículas do xerez no
cálice vazio que ergo em contraluz pela haste e giro entre o polegar e o
indicador.
Perdi-me em pensamentos e projeções olhando as gotículas do
vinho escorrendo espesso pela borda do cálice. Como se saída de um transe, ergui
os olhos na direção da cadeira vazia em minha frente. Tamborilei
irrefletidamente os dedos na carteira de cigarros de filtro vermelho. Abri a
carteira, peguei um cigarro e fiquei fazendo malabarismos com ele entre os
dedos. Suspirei e hesitei em acendê-lo. Alisei as dobras da toalha de linho
sobre a mesa. Minhas mãos ásperas contra o tecido fizeram um barulho que lembra
o leve assovio que ele dava enquanto fazia coisas que o deixavam feliz, como preparar
a sobremesa de chocolate que eu gostava ou lavar a louça do jantar enquanto eu
bebia café deitada no sofá. Seria o sexto cigarro em talvez uma hora ou duas,
talvez quatro ou cinco, nem sabia ao certo há quanto tempo estava sentada sozinha
naquele mesmo lugar, imaginando tudo o que eu queria dizer a ele quando o
encontrasse realmente. Acendi o cigarro sem querer fumá-lo. Olhei a hora. Já
era tarde e logo a noite chegaria. Mesmo em dias mais longos de primavera,
ainda anoitecia cedo. Eu ainda tinha que atravessar o rio e ir ao encontro que
tinha programado.
O caminho até meu destino foi repleto de lembranças - boas e
ruins - de tudo que vivemos. As praças onde estendíamos nossa toalha e passávamos
as tardes de domingo, entre vinhos, frutas, pães e livros, os cinemas que
frequentávamos nas tardes de sábado, os cafés de mesas nas calçadas que frequentávamos
nas noites quentes de verão, os restaurantes onde nos encolhíamos nas
madrugadas frias de inverno para nos aquecermos com caldos quentes. Até as ruas
seculares de calçamento irregular onde volta e meia eu prendia o salto do
sapato, perdia o equilíbrio e era docemente amparada por seus braços fortes,
num abraço quente e confortante.
Finalmente cheguei em frente ao grande portão negro em
estilo neoclássico, ornado com arabescos nas duas pesadas folhas e em cujo
pórtico de bronze havia uma frase em latim que não compreendi. A entrada era
guardada em ambos os lados por esculturas de gárgulas, pousadas sobre grossas
colunas dóricas. A construção era imponente, embora decadente e de gosto
duvidoso. Opulentas colunas jônicas de mármore de Carrara erguiam-se ao longo
do terreno, cercando todo o imenso jardim frontal, ornamentado com uma
infinidade de plantas tropicais, túneis de heras, passeios cuidadosamente calçados
com pedras portuguesas em formas geométricas, fontes e esculturas de deusas
gregas. Vi uma meia dúzia de Afrodites. Que lugar inusitado para se colocar
tantas imagens da deusa do amor e do êxtase sexual! Quantas vezes ele e eu passamos
juntos por este portão sem nunca repararmos nos detalhes? Quantas vezes nos
roçamos sem querer nas folhagens que cobrem os muros, enquanto nos beijávamos
na calçada? Quantas conversas descompromissadas ou juras de amor fizemos em
frente às Afrodites, sem percebermos que elas nos espreitavam sorrateiramente? Saudades
dos cheiros e das sensações amorosas daquela época que não existe mais. Respirei
fundo e adentrei o jardim. Caminhei por alguns minutos pelos estreitos passeios
até chegar ao meu destino final.
- Achei que seria gentil da minha parte lhe trazer umas
flores. Sei que você gosta dessas delicadezas. Passei numa floricultura de
esquina e comprei estas gardênias brancas, que são sutilmente perfumadas. Vou
colocá-las neste vaso de porcelana. Sabe o que significam gardênias? O senhor
da floricultura, ucraniano pelo sotaque, falou que significam “agradecimento”.
Não entendi direito o que mais ele disse, mas somente saber que tem esse
significado já foi suficiente para mim. Porque vim até aqui, atravessei o
oceano, para estar aqui e te agradecer, depois de tanto tempo. Eu estava
remexendo em velhas arcas de memórias empoeiradas e dolorosas e encontrei um
pedaço de papel amarelado entre as páginas de um livro com a seguinte frase: “De
tudo que vem de você, permanece em mim uma vontade de sorrir” *. Essa frase era uma
dedicatória em um livro de J.D. Salinger que nunca li. Não comprei o livro, claro,
mas anotei a dedicatória e coloquei o papel no meio de um livro da Jane Austen
que você me presenteou, sem dedicatória alguma, embora eu tenha entendido posteriormente
que a maior dedicatória que você poderia ter me oferecido era justamente me
apresentar a Austen. Foi essa frase que me motivou a vir aqui hoje. Nosso
último encontro foi de muito sofrimento e eu não quero perder a vontade de
sorrir que vem de você e que me fez ser tão mais humana depois que nossos
caminhos se cruzaram. Porém, o ciclo precisa ser encerrado. Fechei a porta para
curar minhas feridas. Fechei-me em meu casulo para renascer. Por isso voltei somente
agora. Você está tão bonito nesta foto. Talvez porque eu não via nenhuma foto
sua há anos e talvez estivesse esquecendo os detalhes do seu rosto. Eu não
queria ficar com as lembranças embaçadas, por isso queimei todas as fotos e
objetos que lembravam você, por isso fui embora e deixei para trás nossa casa
com toda nossa história, como se fosse um sarcófago. Não queria reminiscências.
Parece mórbido achar bonitas fotos de lápides, mas você está bonito na foto. Minha
última recordação sua foi a do seu corpo sem vida naquele caixão de carvalho e
tudo que queria era que você acordasse e dissesse que ainda me amava como eu
amava você. Mas não era possível. Por isso estou aqui agora, porque quero
deixar estas flores em sinal de agradecimento a você. Queria poder beijar sua
testa, como fazia antes de dormirmos, e dizer que você me fez uma pessoa
melhor. Porque quando lhe conheci eu renasci, quando você se foi, eu morri com
você e neste momento eu preciso renascer novamente. E renascerei, quantas vezes
for necessário. Agora preciso ir, preciso pegar a última balsa e voltar para
minha vida do outro lado do rio, do outro lado do mundo. Ou para o que sobrou
dela. Ou para o que poderá ser ela a partir de agora que me despeço para
sempre, trazendo você, finalmente renascido, junto comigo.
* Sylvio Massa de Campos. Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/rio/ps-eu-te-amo-6826279#ixzz2DREQv7Rp © 1996 - 2012. Todos direitos reservados a Infoglobo Comunicação e Participações S.A. Este material não pode ser publicado, transmitido por broadcast, reescrito ou redistribuído sem autorização.