segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

DA ETERNA BUSCA POR SENTIDO


“Para fazer uma colcha de retalhos, deve-se escolher os retalhos com cuidado. Se escolher bem dará destaque à obra, mas se escolher mal as cores ficam sem vida e tiram sua beleza. Não há regras a serem seguidas. Deve-se seguir o instinto e ser corajosa.”

(Trecho do filme Colcha de Retalhos)

ONDE MORA O AMOR? Esta é a pergunta central da trama do sensível e feminino Colcha de Retalhos (How To Make An American Quilt), de 1995, o primeiro longa metragem dirigido pela australiana Jocelyn Moorhouse. A história gira em torno das (re)construções  existenciais da personagem Finn (Winona Ryder), uma acadêmica que está escrevendo uma tese sobre trabalhos femininos coletivos em diversas culturas. Sua teoria é que todos os trabalhos artesanais coletivos dessas mulheres são realizados de forma ritualística. Prestes a concluir sua tese, depois de diversas tentativas frustradas de realizar outros trabalhos similares e abandoná-los por perder o interesse pelos temas, ela decide deixar a vida que levava com o noivo Sam (Dermot Mulroney) e passar uma temporada de verão na casa de sua tia Glady Joe (Anne Bancroft) e de sua avó Hy (Ellen Burstyn), com o objetivo de repensar os rumos sua vida acadêmica e pessoal. Reencontra, então, os rituais de um grupo de mulheres de uma pequena comunidade no interior da Califórnia, com os quais está familiarizada desde a infância. Elas reuniam-se, sob o comando da forte Anna (Maya Angelou), com o objetivo de confeccionar colchas de retalhos com temas específicos, que é uma tradição bastante comum no interior dos Estados Unidos. Juntas formavam o que chamavam de Clube da Costura. Naquele verão, o tema da colcha que o clube preparava era o resgate das memórias de amor daquelas artesãs, sob o título “Onde Mora o Amor?”. Cada uma delas seria responsável pela elaboração de um quadrado da colcha e o trabalho final seria presente de casamento para Finn. Desse trabalho artesanal são tecidas suas histórias de amor (e de dor) ao longo da vida até chegarem àquele momento.

Alguém aí deve estar se perguntando: por que resgatar esse filme lá do fundo da prateleira para escrever sobre ele agora? Tenho alguns - talvez bons - motivos para escrever sobre ele. Assisti a esse filme pela primeira vez há muitos anos e sempre fiquei com uma sensação de que faltava algo e que eu precisava revisitá-lo para costurar o que ficou para trás. Sempre deixei para depois. E isso é uma característica minha também. Procrastinar ou postergar poderiam ser agregados ao meu nome de batismo. Não costuro meus retalhos muito bem por falta de jeito ou preguiça mesmo. Mas lá no fundo eu sabia que precisava revisitar as sensações que tive quando assisti ao filme pela primeira vez e que uma hora dessas seria o momento. Aconteceu agora.

Nesta época do ano, quando somos enxovalhados por rituais externos a nós, quando somos impelidos a repensar nossas vidas, avaliar o que vivemos e projetar nossos sonhos frustrados de hoje com o combustível da esperança num futuro distante e incerto, porém melhor (?), senti que precisava rever algumas coisas esquecidas por aí. Certo, assisti ao filme para começar. Isso foi há alguns dias atrás. Demorei a escrever porque precisava decantar minhas emoções. Até porque assisti ao filme em um momento de letargia deliciosamente preguiçosa e amorosa de feriado. Agora, passado algum tempo, sento-me e tento escrever sobre minhas impressões para não ficar falando sozinho pela casa.

Abri a janelas e deixei a luz da manhã entrar, tomei um banho demorado, vesti uma roupa confortável. Cheiro de sabonete, pasta de dentes e café recém passado. Limpeza. Do corpo e da alma. Café de um lado, cigarros do outro (nem tão limpo assim). Não bebo nem fumo, entretanto, mas deixo tudo ao alcance da mão. Cerco-me de coisas que podem me proporcionar familiaridade, aquela almofadinha fofa nas costas, a xícara grande de porcelana branca, incenso de alfazema, a camiseta velhinha de “andar em casa”, chinelos de dedo e Billie Holiday como trilha sonora. Queria uma vitrola para ouvir o chiado do vinil harmonizado com a voz potente de Holiday e uma máquina de escrever igualzinha à da personagem Finn. O som seco dos tipos marcando o papel é delicioso e lembra algo da minha infância. Se sons tivessem cheiro esse teria o cheiro do pão-de-ló da minha mãe recém saído do forno.

O que mais me tocou no filme foi a forma de retratar a construção das memórias e os vínculos que formamos com outras pessoas, através dos rituais que desenvolvemos para que essas relações aconteçam. Fiquei pensando no quanto esses rituais podem ser reveladores para (e de) nós mesmos. Por mais automatizados e instintivos que sejam, esses rituais nos conectam com o que temos de mais essencial. Fazemos nossos retalhos sozinhos, mas quando olhamos para o lado, o retalho do outro encaixa perfeitamente no nosso. Então tecemos juntos uma mesma colcha de histórias amorosas. Penso que o mais fundamental é sempre o mais esquecido. De tempos em tempos, precisamos parar e revisitar nosso passado para encontrarmos a nós mesmos. É o que as mulheres do filme fazem. Cada uma à sua maneira, cada uma com suas particularidades, todas revisitam suas histórias para desconstruir e reconstruir significados através dos retalhos de tecido colorido. E é um trabalho de buscar o retalho mais apropriado, costurar ponto a ponto, refazer quando a costura não está perfeita, juntar todos os pedaços de história que tecem o que chamamos de “Vida”.

Finn não costura. Ela é o tipo de mulher que tece sua história através de uma máquina de escrever. Ou pelo menos tenta se encontrar através do academicismo, cético e racionalista, que guia seus passos e suas escolhas. Ela é uma artesã tão habilidosa quanto as costureiras da comunidade. Ela também tece uma trama para construir significados para sua própria existência. Ela também faz retalhos com costuras tortas. Ela também precisa desmanchar a costura e refazê-la quando não está perfeita. Ela também tenta excluir ou ocultar alguns retalhos da trama para que ela tenha um significado esperado ou ideal.

Em um momento da narrativa, uma das costureiras é inquerida sobre os motivos que a levaram a “contar” sua história com cores que não estavam harmonizadas com as demais. Ela é pressionada a excluir-se do grupo, juntamente com o “retalho” que conta sua história de amor. Isso me faz pensar em quantas vezes queremos contar uma história de nossas vidas com determinada unidade, sem percebermos que a vida é muito mais dinâmica e que não podemos esperar uma unidade estética (ou ética?) ideal porque ela simplesmente não existe. A vida é o que se apresenta diante dos nossos olhos e o máximo que podemos fazer é juntar os pedaços de vida que existem pelos cantos e tecermos nossa trama amorosa.

Contar nossa história é justamente isto. É recortar, juntar, montar, costurar e buscar sentidos novos para nossos eventos passados. E cada vez que visitamos nosso passado construímos uma nova colcha de retalhos, com novos elementos, mais viva. Estamos sempre transformando o que nos cerca externamente e o que nos preenche internamente.

Quero fazer um convite a você que chegou até aqui: Procure aquela velha caixinha de costura, junte panos coloridos, agulhas, linhas e tesouras e visite seu passado. Recrie, corte, recorte, costure com carinho, reconstrua e traga a beleza, mesmo dos eventos tristes, e reavive as cores dos momentos de felicidade. Porque o ano novo já está logo ali e isso não faz diferença nenhuma. Ele poderia estar muito longe de acontecer, caso não seguíssemos o calendário gregoriano, ou poderia nem mesmo acontecer, caso não seguíssemos calendário algum e a vida fosse apenas uma sucessão de dias sem quaisquer fases ou ciclos. Não é o amanhã, mas o que carregamos no peito agora neste exato momento o que realmente importa. Somente haverá um amanhã com lembranças valiosas de ontem se o hoje for lapidado como a pedra preciosa que é.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

ONDE ESTÁ (A JANELA DE) WALLY?





“Esses prédios, que se sucedem sem lógica, demonstram total falta de planejamento. Exatamente assim é a nossa vida, que construímos sem saber como queremos que fique.”



O título em português já dá indicativas de como é construída a narrativa desse belíssimo filme, produção argentina, espanhola e alemã, ambientado em Buenos Aires e dirigido pelo novato em longas metragens Gustavo Tarreto, que assina também o roteiro. Medianeras: Buenos Aires da Era do Amor Virtual, como foi batizado no Brasil, é um filme interessante e bem amarrado, com um título infeliz aqui no Brasil, e que não faz jus aos seus atributos. O título original, por si, traduz perfeitamente a atmosfera apresentada pelo autor. A trama trata das buscas e perdas a partir de dois solitários, que nunca se cruzaram, tendo como pano de fundo uma Buenos Aires definida por construções opressoras e pautada por medianeras, como são chamadas em espanhol as paredes cegas dos prédios. Apesar de desconhecidos, eles são vizinhos e vivem vidas semelhantes. Ambos perdidos de si mesmos em uma grande cidade cinza-azulado de concreto contra um céu pouco celeste, imersos em uma penumbra claustrofóbica de seus passados fragmentados, presentes de olhares sem sonhos e futuros sem esperanças. O título, quase em tom de comédia da Meg Ryan, dado pelos nossos conterrâneos tupiniquins, nos possibilita, entretanto, alguns questionamentos, tais como: que “era do amor virtual” é esta onde estamos cada vez mais solitários? Que significados damos ao “amor”? O que é virtualidade?

Tenho percebido que os argentinos tem conseguido tratar desses assuntos de maneira feliz e sensível. A exemplo dos filmes Elza e Fred (2005) e La Vieja de Atrás (2010), que tocam em temas da solidão e velhice, Medianeras traz à tona a angústia e solidão nas grandes cidades, (in)comunicabilidade e isolamento, tendo como cenário uma Buenos Aires cosmopolita, cinzenta e impessoal, angustiante e onde a própria arquitetura da cidade forma pequenos nichos individuais, celas onde indivíduos são – voluntariamente ou não – confinados.

“O que esperar de uma cidade que dá as costas ao seu rio? É certeza que as separações e os divórcios, a violência familiar, o excesso de canais a cabo, a falta de comunicação, a falta de desejo, a apatia, a depressão, os suicídios, as neuroses, os ataques de pânico, a obesidade, a tensão muscular, a insegurança, a hipocondria, o estresse e o sedentarismo, são culpa dos arquitetos e incorporadores. Esses males, exceto o suicídio, todos me acometem.” É assim que a trama de Tarreto é descortinada para o grande público. Assim ele apresenta dois dos personagens principais da trama: A cidade de Buenos Aires e Martin (Javier Drolas). Poderia ser a história de qualquer um de nós, vivamos em grandes ou pequenas cidades, em grandes ou pequenos apartamentos, iluminados ou não, sozinhos ou não. Afirmação meio sem sentido? Talvez. Deixo, porém, de lado a identificação pessoal inicial que existe para um cara como eu, que vive sozinho, porque não vem ao caso. A bem da verdade, é inevitável não desenvolver empatia pelos personagens da trama de Tarreto. Todos passamos por momentos de cinza-azulado absoluto, inclusive na mais profunda solidão a dois. Isto porque vivemos até as últimas consequências o mito pós-moderno da liberdade individual e conhecemos muito bem a “angústia da pós-modernidade” - que já é um termo bem ultrapassado, porque a era da tecnologia nos impele cada vez mais rápido de um não lugar para lugar nenhum.

Logo em seguida, é apresentada a outra personagem, Mariana (Pilar López de Ayala): “Há dois anos sou arquiteta, mas ainda não construí nada. Nem um prédio, nem uma casa, nem um banheiro. Nada. Só umas maquetes inabitáveis, e não só por causa da escala. Com outras construções, também não dei certo. Uma relação de quatro anos ruiu, apesar dos meus esforços para mantê-la de pé. Se minha vida fosse um jogo como o Jogo da Vida caberia a mim o castigo de voltar cinco casas. Por isso estou aqui, com a vida desordenada em 27 caixas de papelão, sentada num rolo de 12m de plástico bolha para estourar, antes que eu mesma estoure.”  Somos multidões de engaiolados em mundos cada vez menores e mais individuais. Vivemos cercados, delimitados por nossas paredes cegas para que não vejamos  a intimidade do outro, pelos elevadores que não utilizamos porque somos claustrofóbicos, pelas calçadas que não transitamos porque somos agorafóbicos, pelas pessoas que nos definem e conceituam. Ruminamos ad aeternun  nossas angústias e nossas frustrações. Em nome de nossas liberdades individuais, nos fechamos em caixas herméticas. Criamos uma identidade baseada em toda sorte de rótulos de transtornos modernos e nos anestesiamos com psicotrópicos cosmopolitas.

“Quando vamos ser uma cidade sem fios? Que gênios esconderam o rio com prédios, e o céu com cabos? Tantos quilômetros de cabos servem para nos unir ou para nos manter afastados, cada um no seu lugar? [...] Bem-vindos à era das relações virtuais.”, profetiza Mariana, no alto de sua cela.  O que é mais virtual: uma relação mediada por tecnologias da comunicação ou uma relação “pessoal”? Talvez tudo seja virtual, talvez não nos relacionemos com o outro diretamente. No filme, tanto Martin quanto Mariana tiveram, no passado, relacionamentos fracassados. Até aí nenhuma grande sacada do filme. Porém, esses relacionamentos são retratados como desertos de comunicação e dão indicativas que foi essa incomunicabilidade que fez com que ruíssem. E eles tentam resolver essa necessidade de contato através de outras janelas. E talvez somente nesse momento tenham conseguido estabelecer relações reais com o mundo, com o outro e consigo.  

Mariana era obcecada por encontrar, sem sucesso, o personagem Wally em um livro de gravuras chamado “Wally na Cidade”. E suas reflexões sobre suas buscas mais íntimas se traduzem nessa frustração de não saber onde está Wally na cidade. Martin, por sua vez, em um dado momento retira da embalagem original um boneco antigo do personagem Astro Boy, um mangá dos anos 60 que conta a história de um androide provido de sentimentos humanos. Coincidentemente ou não, esse boneco possui um dispositivo que abre uma “janela” em seu peito, onde é possível ver um pequeno coração brilhante. Essas sutilezas são o que há de mais interessante na obra de Tarreto. Porque talvez Martin seja uma espécie de menino-andróide que descobre que tem coração e Mariana, buscando Wally, busca a si mesma.

O objetivo das medianeras é preservar a privacidade dos vizinhos laterais. É manter certa ordem, um limite. O que fazem Martin e Mariana é justamente subverterem a ordem e abrirem, clandestinamente, janelas nessas paredes para que entre alguma luz. E essa é a maior libertação deles. Como se fossem seres presos em cápsulas, eles quebram a casca que os envolve e se abrem para o mundo exterior, saem do casulo, ou pelo menos abrem uma fresta para enxergarem o que existe além-cárcere. Mas para saber se isso funciona, você precisará assistir ao filme. Ou quebrar uma parede e abrir uma janela em sua própria medianera.