“Para fazer uma colcha de retalhos,
deve-se escolher os retalhos com cuidado. Se escolher bem dará destaque à obra,
mas se escolher mal as cores ficam sem vida e tiram sua beleza. Não há regras a
serem seguidas. Deve-se seguir o instinto e ser corajosa.”
(Trecho do filme Colcha de Retalhos)
ONDE MORA O AMOR? Esta é a pergunta central da trama do
sensível e feminino Colcha de Retalhos
(How To Make An American Quilt), de 1995, o primeiro longa metragem
dirigido pela australiana Jocelyn Moorhouse. A história gira em torno das
(re)construções existenciais da
personagem Finn (Winona Ryder), uma acadêmica
que está escrevendo uma tese sobre trabalhos femininos coletivos em diversas
culturas. Sua teoria é que todos os trabalhos artesanais coletivos dessas mulheres
são realizados de forma ritualística. Prestes a concluir sua tese, depois de
diversas tentativas frustradas de realizar outros trabalhos similares e
abandoná-los por perder o interesse pelos temas, ela decide deixar a vida que
levava com o noivo Sam (Dermot
Mulroney) e passar uma temporada de verão na casa de sua tia Glady Joe (Anne Bancroft) e de sua avó Hy (Ellen Burstyn), com o objetivo de
repensar os rumos sua vida acadêmica e pessoal. Reencontra, então, os rituais
de um grupo de mulheres de uma pequena comunidade no interior da Califórnia,
com os quais está familiarizada desde a infância. Elas reuniam-se, sob o
comando da forte Anna (Maya Angelou), com o objetivo de confeccionar colchas de retalhos com
temas específicos, que é uma tradição bastante comum no interior dos Estados
Unidos. Juntas formavam o que chamavam de Clube
da Costura. Naquele verão, o tema da colcha que o clube preparava era o
resgate das memórias de amor daquelas artesãs, sob o título “Onde Mora o Amor?”. Cada uma delas
seria responsável pela elaboração de um quadrado da colcha e o trabalho final
seria presente de casamento para Finn.
Desse trabalho artesanal são tecidas suas histórias de amor (e de dor) ao longo
da vida até chegarem àquele momento.
Alguém aí deve estar se perguntando: por que resgatar esse
filme lá do fundo da prateleira para escrever sobre ele agora? Tenho alguns -
talvez bons - motivos para escrever sobre ele. Assisti a esse filme pela
primeira vez há muitos anos e sempre fiquei com uma sensação de que faltava
algo e que eu precisava revisitá-lo para costurar o que ficou para trás. Sempre
deixei para depois. E isso é uma característica minha também. Procrastinar ou
postergar poderiam ser agregados ao meu nome de batismo. Não costuro meus
retalhos muito bem por falta de jeito ou preguiça mesmo. Mas lá no fundo eu sabia
que precisava revisitar as sensações que tive quando assisti ao filme pela
primeira vez e que uma hora dessas seria o momento. Aconteceu agora.
Nesta época do ano, quando somos enxovalhados por rituais
externos a nós, quando somos impelidos a repensar nossas vidas, avaliar o que
vivemos e projetar nossos sonhos frustrados de hoje com o combustível da
esperança num futuro distante e incerto, porém melhor (?), senti que precisava
rever algumas coisas esquecidas por aí. Certo, assisti ao filme para começar. Isso
foi há alguns dias atrás. Demorei a escrever porque precisava decantar minhas
emoções. Até porque assisti ao filme em um momento de letargia deliciosamente
preguiçosa e amorosa de feriado. Agora, passado algum tempo, sento-me e tento
escrever sobre minhas impressões para não ficar falando sozinho pela casa.
Abri a janelas e deixei a luz da manhã entrar, tomei um banho
demorado, vesti uma roupa confortável. Cheiro de sabonete, pasta de dentes e
café recém passado. Limpeza. Do corpo e da alma. Café de um lado, cigarros do
outro (nem tão limpo assim). Não bebo nem fumo, entretanto, mas deixo tudo ao alcance
da mão. Cerco-me de coisas que podem me proporcionar familiaridade, aquela
almofadinha fofa nas costas, a xícara grande de porcelana branca, incenso de
alfazema, a camiseta velhinha de “andar em casa”, chinelos de dedo e Billie
Holiday como trilha sonora. Queria uma vitrola para ouvir o chiado do vinil
harmonizado com a voz potente de Holiday e uma máquina de escrever igualzinha à
da personagem Finn. O som seco dos
tipos marcando o papel é delicioso e lembra algo da minha infância. Se sons
tivessem cheiro esse teria o cheiro do pão-de-ló da minha mãe recém saído do
forno.
O que mais me tocou no filme foi a forma de retratar a
construção das memórias e os vínculos que formamos com outras pessoas, através
dos rituais que desenvolvemos para que essas relações aconteçam. Fiquei
pensando no quanto esses rituais podem ser reveladores para (e de) nós mesmos.
Por mais automatizados e instintivos que sejam, esses rituais nos conectam com
o que temos de mais essencial. Fazemos nossos retalhos sozinhos, mas quando olhamos
para o lado, o retalho do outro encaixa perfeitamente no nosso. Então tecemos
juntos uma mesma colcha de histórias amorosas. Penso que o mais fundamental é
sempre o mais esquecido. De tempos em tempos, precisamos parar e revisitar
nosso passado para encontrarmos a nós mesmos. É o que as mulheres do filme
fazem. Cada uma à sua maneira, cada uma com suas particularidades, todas
revisitam suas histórias para desconstruir e reconstruir significados através
dos retalhos de tecido colorido. E é um trabalho de buscar o retalho mais
apropriado, costurar ponto a ponto, refazer quando a costura não está perfeita,
juntar todos os pedaços de história que tecem o que chamamos de “Vida”.
Finn não costura. Ela é o tipo de mulher
que tece sua história através de uma máquina de escrever. Ou pelo menos tenta se
encontrar através do academicismo, cético e racionalista, que guia seus passos
e suas escolhas. Ela é uma artesã tão habilidosa quanto as costureiras da
comunidade. Ela também tece uma trama para construir significados para sua
própria existência. Ela também faz retalhos com costuras tortas. Ela também
precisa desmanchar a costura e refazê-la quando não está perfeita. Ela também
tenta excluir ou ocultar alguns retalhos da trama para que ela tenha um
significado esperado ou ideal.
Em um momento da narrativa, uma das costureiras é inquerida
sobre os motivos que a levaram a “contar”
sua história com cores que não estavam harmonizadas com as demais. Ela é pressionada
a excluir-se do grupo, juntamente com o “retalho”
que conta sua história de amor. Isso me faz pensar em quantas vezes queremos
contar uma história de nossas vidas com determinada unidade, sem percebermos
que a vida é muito mais dinâmica e que não podemos esperar uma unidade estética
(ou ética?) ideal porque ela simplesmente não existe. A vida é o que se
apresenta diante dos nossos olhos e o máximo que podemos fazer é juntar os
pedaços de vida que existem pelos cantos e tecermos nossa trama amorosa.
Contar nossa história é justamente isto. É recortar, juntar,
montar, costurar e buscar sentidos novos para nossos eventos passados. E cada
vez que visitamos nosso passado construímos uma nova colcha de retalhos, com
novos elementos, mais viva. Estamos sempre transformando o que nos cerca
externamente e o que nos preenche internamente.
Quero fazer um convite a você que chegou até aqui: Procure
aquela velha caixinha de costura, junte panos coloridos, agulhas, linhas e
tesouras e visite seu passado. Recrie, corte, recorte, costure com carinho, reconstrua
e traga a beleza, mesmo dos eventos tristes, e reavive as cores dos momentos de
felicidade. Porque o ano novo já está logo ali e isso não faz diferença
nenhuma. Ele poderia estar muito longe de acontecer, caso não seguíssemos o
calendário gregoriano, ou poderia nem mesmo acontecer, caso não seguíssemos
calendário algum e a vida fosse apenas uma sucessão de dias sem quaisquer fases
ou ciclos. Não é o amanhã, mas o que carregamos no peito agora neste exato momento
o que realmente importa. Somente haverá um amanhã com lembranças valiosas de
ontem se o hoje for lapidado como a pedra preciosa que é.