“Esses prédios, que se sucedem sem lógica,
demonstram total falta de planejamento. Exatamente assim é a nossa vida, que
construímos sem saber como queremos que fique.”
O título em português já dá indicativas de como é construída a narrativa desse belíssimo filme, produção argentina, espanhola e alemã, ambientado em Buenos Aires e dirigido pelo novato em longas metragens Gustavo Tarreto, que assina também o roteiro. Medianeras: Buenos Aires da Era do Amor Virtual, como foi batizado no Brasil, é um filme interessante e bem amarrado, com um título infeliz aqui no Brasil, e que não faz jus aos seus atributos. O título original, por si, traduz perfeitamente a atmosfera apresentada pelo autor. A trama trata das buscas e perdas a partir de dois solitários, que nunca se cruzaram, tendo como pano de fundo uma Buenos Aires definida por construções opressoras e pautada por medianeras, como são chamadas em espanhol as paredes cegas dos prédios. Apesar de desconhecidos, eles são vizinhos e vivem vidas semelhantes. Ambos perdidos de si mesmos em uma grande cidade cinza-azulado de concreto contra um céu pouco celeste, imersos em uma penumbra claustrofóbica de seus passados fragmentados, presentes de olhares sem sonhos e futuros sem esperanças. O título, quase em tom de comédia da Meg Ryan, dado pelos nossos conterrâneos tupiniquins, nos possibilita, entretanto, alguns questionamentos, tais como: que “era do amor virtual” é esta onde estamos cada vez mais solitários? Que significados damos ao “amor”? O que é virtualidade?
Tenho percebido que os
argentinos tem conseguido tratar desses assuntos de maneira feliz e sensível. A
exemplo dos filmes Elza e Fred (2005) e La Vieja de Atrás (2010), que tocam em
temas da solidão e velhice, Medianeras traz à tona a angústia e solidão nas
grandes cidades, (in)comunicabilidade e isolamento, tendo como cenário uma
Buenos Aires cosmopolita, cinzenta e impessoal, angustiante e onde a própria
arquitetura da cidade forma pequenos nichos individuais, celas onde indivíduos
são – voluntariamente ou não – confinados.
“O
que esperar de uma cidade que dá as costas ao seu rio? É certeza que as
separações e os divórcios, a violência familiar, o excesso de canais a cabo, a
falta de comunicação, a falta de desejo, a apatia, a depressão, os suicídios,
as neuroses, os ataques de pânico, a obesidade, a tensão muscular, a
insegurança, a hipocondria, o estresse e o sedentarismo, são culpa dos
arquitetos e incorporadores. Esses males, exceto o suicídio, todos me acometem.” É
assim que a trama de Tarreto é descortinada para o grande público. Assim ele
apresenta dois dos personagens principais da trama: A cidade de Buenos Aires e
Martin (Javier Drolas). Poderia ser a história de qualquer um de nós, vivamos
em grandes ou pequenas cidades, em grandes ou pequenos apartamentos, iluminados
ou não, sozinhos ou não. Afirmação meio sem sentido? Talvez. Deixo, porém, de
lado a identificação pessoal inicial que existe para um cara como eu, que vive sozinho,
porque não vem ao caso. A bem da verdade, é inevitável não desenvolver empatia
pelos personagens da trama de Tarreto. Todos passamos por momentos de
cinza-azulado absoluto, inclusive na mais profunda solidão a dois. Isto porque
vivemos até as últimas consequências o mito pós-moderno da liberdade individual
e conhecemos muito bem a “angústia da
pós-modernidade” - que já é um termo bem ultrapassado, porque a era da
tecnologia nos impele cada vez mais rápido de um não lugar para lugar nenhum.
Logo em seguida, é
apresentada a outra personagem, Mariana (Pilar López de Ayala): “Há dois anos sou arquiteta, mas ainda não
construí nada. Nem um prédio, nem uma casa, nem um banheiro. Nada. Só umas
maquetes inabitáveis, e não só por causa da escala. Com outras construções,
também não dei certo. Uma relação de quatro anos ruiu, apesar dos meus esforços
para mantê-la de pé. Se minha vida fosse um jogo como o Jogo da Vida caberia a
mim o castigo de voltar cinco casas. Por isso estou aqui, com a vida
desordenada em 27 caixas de papelão, sentada num rolo de 12m de plástico bolha
para estourar, antes que eu mesma estoure.” Somos multidões de engaiolados em mundos cada
vez menores e mais individuais. Vivemos cercados, delimitados por nossas
paredes cegas para que não vejamos a
intimidade do outro, pelos elevadores que não utilizamos porque somos
claustrofóbicos, pelas calçadas que não transitamos porque somos agorafóbicos,
pelas pessoas que nos definem e conceituam. Ruminamos ad aeternun nossas angústias
e nossas frustrações. Em nome de nossas liberdades individuais, nos fechamos em
caixas herméticas. Criamos uma identidade baseada em toda sorte de rótulos de transtornos
modernos e nos anestesiamos com psicotrópicos cosmopolitas.
“Quando vamos ser uma cidade sem fios? Que
gênios esconderam o rio com prédios, e o céu com cabos? Tantos quilômetros de
cabos servem para nos unir ou para nos manter afastados, cada um no seu lugar? [...]
Bem-vindos à era das relações virtuais.”, profetiza Mariana, no
alto de sua cela. O que é mais virtual:
uma relação mediada por tecnologias da comunicação ou uma relação “pessoal”?
Talvez tudo seja virtual, talvez não nos relacionemos com o outro diretamente. No
filme, tanto Martin quanto Mariana tiveram, no passado, relacionamentos
fracassados. Até aí nenhuma grande sacada
do filme. Porém, esses relacionamentos são retratados como desertos de
comunicação e dão indicativas que foi essa incomunicabilidade que fez com que ruíssem.
E eles tentam resolver essa necessidade de contato através de outras janelas. E
talvez somente nesse momento tenham conseguido estabelecer relações reais com o
mundo, com o outro e consigo.
Mariana era obcecada por
encontrar, sem sucesso, o personagem Wally em um livro de gravuras chamado “Wally na Cidade”. E suas reflexões sobre
suas buscas mais íntimas se traduzem nessa frustração de não saber onde está
Wally na cidade. Martin, por sua vez, em um dado momento retira da embalagem
original um boneco antigo do personagem Astro Boy, um mangá dos anos 60 que
conta a história de um androide provido de sentimentos humanos.
Coincidentemente ou não, esse boneco possui um dispositivo que abre uma “janela”
em seu peito, onde é possível ver um pequeno coração brilhante. Essas sutilezas
são o que há de mais interessante na obra de Tarreto. Porque talvez Martin seja
uma espécie de menino-andróide que descobre que tem coração e Mariana, buscando
Wally, busca a si mesma.
O objetivo das medianeras é preservar a privacidade dos vizinhos laterais. É manter certa ordem, um limite. O que fazem Martin e Mariana é justamente subverterem a ordem e abrirem, clandestinamente, janelas nessas paredes para que entre alguma luz. E essa é a maior libertação deles. Como se fossem seres presos em cápsulas, eles quebram a casca que os envolve e se abrem para o mundo exterior, saem do casulo, ou pelo menos abrem uma fresta para enxergarem o que existe além-cárcere. Mas para saber se isso funciona, você precisará assistir ao filme. Ou quebrar uma parede e abrir uma janela em sua própria medianera.
Luciano, tenho tentado abrir esotilhas nas medianeras que a vida me presenteou. Mas existem escolhas que fazemos que nos forçam a construir mais medianeras ao invés de quebrar paredes para deixar, ao menos, raios de luz se projetarem. Talvez Wally tenha um coração dourado no peito. Talvez um peito precise ser rasgado. Mas existe poesia no ar! Existe esperança. Beijo no teu coração brilhate.
ResponderExcluirA poesia (que sempre existe) no ar é o combustível para vivermos melhor. Então que enchamos os pulmões de poesia e sigamos! Obrigado pelos comentários tão sensíveis.
ResponderExcluirLindo texto querido Luc. Cada parada que fazes para escrever algo, você se supera. Parabéns, beijo no coração amigo!
ResponderExcluirAmigo, obrigado pelos comentários. Beijo carinhoso!
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