quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

ONDE ESTÁ (A JANELA DE) WALLY?





“Esses prédios, que se sucedem sem lógica, demonstram total falta de planejamento. Exatamente assim é a nossa vida, que construímos sem saber como queremos que fique.”



O título em português já dá indicativas de como é construída a narrativa desse belíssimo filme, produção argentina, espanhola e alemã, ambientado em Buenos Aires e dirigido pelo novato em longas metragens Gustavo Tarreto, que assina também o roteiro. Medianeras: Buenos Aires da Era do Amor Virtual, como foi batizado no Brasil, é um filme interessante e bem amarrado, com um título infeliz aqui no Brasil, e que não faz jus aos seus atributos. O título original, por si, traduz perfeitamente a atmosfera apresentada pelo autor. A trama trata das buscas e perdas a partir de dois solitários, que nunca se cruzaram, tendo como pano de fundo uma Buenos Aires definida por construções opressoras e pautada por medianeras, como são chamadas em espanhol as paredes cegas dos prédios. Apesar de desconhecidos, eles são vizinhos e vivem vidas semelhantes. Ambos perdidos de si mesmos em uma grande cidade cinza-azulado de concreto contra um céu pouco celeste, imersos em uma penumbra claustrofóbica de seus passados fragmentados, presentes de olhares sem sonhos e futuros sem esperanças. O título, quase em tom de comédia da Meg Ryan, dado pelos nossos conterrâneos tupiniquins, nos possibilita, entretanto, alguns questionamentos, tais como: que “era do amor virtual” é esta onde estamos cada vez mais solitários? Que significados damos ao “amor”? O que é virtualidade?

Tenho percebido que os argentinos tem conseguido tratar desses assuntos de maneira feliz e sensível. A exemplo dos filmes Elza e Fred (2005) e La Vieja de Atrás (2010), que tocam em temas da solidão e velhice, Medianeras traz à tona a angústia e solidão nas grandes cidades, (in)comunicabilidade e isolamento, tendo como cenário uma Buenos Aires cosmopolita, cinzenta e impessoal, angustiante e onde a própria arquitetura da cidade forma pequenos nichos individuais, celas onde indivíduos são – voluntariamente ou não – confinados.

“O que esperar de uma cidade que dá as costas ao seu rio? É certeza que as separações e os divórcios, a violência familiar, o excesso de canais a cabo, a falta de comunicação, a falta de desejo, a apatia, a depressão, os suicídios, as neuroses, os ataques de pânico, a obesidade, a tensão muscular, a insegurança, a hipocondria, o estresse e o sedentarismo, são culpa dos arquitetos e incorporadores. Esses males, exceto o suicídio, todos me acometem.” É assim que a trama de Tarreto é descortinada para o grande público. Assim ele apresenta dois dos personagens principais da trama: A cidade de Buenos Aires e Martin (Javier Drolas). Poderia ser a história de qualquer um de nós, vivamos em grandes ou pequenas cidades, em grandes ou pequenos apartamentos, iluminados ou não, sozinhos ou não. Afirmação meio sem sentido? Talvez. Deixo, porém, de lado a identificação pessoal inicial que existe para um cara como eu, que vive sozinho, porque não vem ao caso. A bem da verdade, é inevitável não desenvolver empatia pelos personagens da trama de Tarreto. Todos passamos por momentos de cinza-azulado absoluto, inclusive na mais profunda solidão a dois. Isto porque vivemos até as últimas consequências o mito pós-moderno da liberdade individual e conhecemos muito bem a “angústia da pós-modernidade” - que já é um termo bem ultrapassado, porque a era da tecnologia nos impele cada vez mais rápido de um não lugar para lugar nenhum.

Logo em seguida, é apresentada a outra personagem, Mariana (Pilar López de Ayala): “Há dois anos sou arquiteta, mas ainda não construí nada. Nem um prédio, nem uma casa, nem um banheiro. Nada. Só umas maquetes inabitáveis, e não só por causa da escala. Com outras construções, também não dei certo. Uma relação de quatro anos ruiu, apesar dos meus esforços para mantê-la de pé. Se minha vida fosse um jogo como o Jogo da Vida caberia a mim o castigo de voltar cinco casas. Por isso estou aqui, com a vida desordenada em 27 caixas de papelão, sentada num rolo de 12m de plástico bolha para estourar, antes que eu mesma estoure.”  Somos multidões de engaiolados em mundos cada vez menores e mais individuais. Vivemos cercados, delimitados por nossas paredes cegas para que não vejamos  a intimidade do outro, pelos elevadores que não utilizamos porque somos claustrofóbicos, pelas calçadas que não transitamos porque somos agorafóbicos, pelas pessoas que nos definem e conceituam. Ruminamos ad aeternun  nossas angústias e nossas frustrações. Em nome de nossas liberdades individuais, nos fechamos em caixas herméticas. Criamos uma identidade baseada em toda sorte de rótulos de transtornos modernos e nos anestesiamos com psicotrópicos cosmopolitas.

“Quando vamos ser uma cidade sem fios? Que gênios esconderam o rio com prédios, e o céu com cabos? Tantos quilômetros de cabos servem para nos unir ou para nos manter afastados, cada um no seu lugar? [...] Bem-vindos à era das relações virtuais.”, profetiza Mariana, no alto de sua cela.  O que é mais virtual: uma relação mediada por tecnologias da comunicação ou uma relação “pessoal”? Talvez tudo seja virtual, talvez não nos relacionemos com o outro diretamente. No filme, tanto Martin quanto Mariana tiveram, no passado, relacionamentos fracassados. Até aí nenhuma grande sacada do filme. Porém, esses relacionamentos são retratados como desertos de comunicação e dão indicativas que foi essa incomunicabilidade que fez com que ruíssem. E eles tentam resolver essa necessidade de contato através de outras janelas. E talvez somente nesse momento tenham conseguido estabelecer relações reais com o mundo, com o outro e consigo.  

Mariana era obcecada por encontrar, sem sucesso, o personagem Wally em um livro de gravuras chamado “Wally na Cidade”. E suas reflexões sobre suas buscas mais íntimas se traduzem nessa frustração de não saber onde está Wally na cidade. Martin, por sua vez, em um dado momento retira da embalagem original um boneco antigo do personagem Astro Boy, um mangá dos anos 60 que conta a história de um androide provido de sentimentos humanos. Coincidentemente ou não, esse boneco possui um dispositivo que abre uma “janela” em seu peito, onde é possível ver um pequeno coração brilhante. Essas sutilezas são o que há de mais interessante na obra de Tarreto. Porque talvez Martin seja uma espécie de menino-andróide que descobre que tem coração e Mariana, buscando Wally, busca a si mesma.

O objetivo das medianeras é preservar a privacidade dos vizinhos laterais. É manter certa ordem, um limite. O que fazem Martin e Mariana é justamente subverterem a ordem e abrirem, clandestinamente, janelas nessas paredes para que entre alguma luz. E essa é a maior libertação deles. Como se fossem seres presos em cápsulas, eles quebram a casca que os envolve e se abrem para o mundo exterior, saem do casulo, ou pelo menos abrem uma fresta para enxergarem o que existe além-cárcere. Mas para saber se isso funciona, você precisará assistir ao filme. Ou quebrar uma parede e abrir uma janela em sua própria medianera. 



4 comentários:

  1. Luciano, tenho tentado abrir esotilhas nas medianeras que a vida me presenteou. Mas existem escolhas que fazemos que nos forçam a construir mais medianeras ao invés de quebrar paredes para deixar, ao menos, raios de luz se projetarem. Talvez Wally tenha um coração dourado no peito. Talvez um peito precise ser rasgado. Mas existe poesia no ar! Existe esperança. Beijo no teu coração brilhate.

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  2. A poesia (que sempre existe) no ar é o combustível para vivermos melhor. Então que enchamos os pulmões de poesia e sigamos! Obrigado pelos comentários tão sensíveis.

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  3. Lindo texto querido Luc. Cada parada que fazes para escrever algo, você se supera. Parabéns, beijo no coração amigo!

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  4. Amigo, obrigado pelos comentários. Beijo carinhoso!

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