Andrew Salgado, “If One Man’s Joy is Another Man’s Sadness” (2012).
Courtesy Beers.Lambert
“Voltei pra me certificar
Que
nunca mais vais voltar
Vais
voltar, vais voltar”
(Bastidores
– Chico Buarque)
Tu sabes
como é quando ficamos exauridos? É, exauri. Por isso estou aqui, olhando minha
cara no espelho mais uma vez. Esfrego um lenço úmido para tirar a maquiagem,
mas ela não sai, apenas desenha manchas disformes e coloridas em minhas faces
sem expressão alguma. Minha cara é um grande borrão agora. Todas as cores
misturadas, sem qualquer lógica, mas com todo sentido. Somente agora vejo que o
verdadeiro sentido de minha existência está expresso nesses borrões que
desenhei querendo apagar minha própria história de palhaço tatuada para sempre
em mim.
Na verdade
não vejo sentido no que tenho sentido. E nem sei se deveria ter algum sentido.
Talvez não haja sentido no que não é sentido. Ou talvez todo sentido da vida
esteja em analisa-la sem procurar sentido. O que eu estou dizendo agora? Deveria
suspender o gim. Não! Somente ele me compreende. Por isso ergo o gim! Um brinde,
respeitável público! Um brinde ao mais infeliz de todos os palhaços! Não estou referindo-me
a ti. Tampouco falo contigo. Estou falando sobre este palhaço besta que vejo no
espelho agora. Sim, sou eu mesmo. São para mim os aplausos. São para ti as lágrimas
que luto para não derramar cada vez que te vais. Pode ser para nós o brinde?
Não, nunca poderá. O brinde é também todo meu.
Tranquei a
porta do camarim, fechei as janelas e chorei,
chorei, até ficar com dó de mim*. Quero que os aplausos cessem. Quero que
as vozes cessem. Quero que as palavras cessem. Quero que os ruídos, interiores
e exteriores, silenciem. Existem muitos ruídos aqui dentro de mim. Desejei (e
como desejei!) ter junto a ti silêncios povoados de significados indizíveis,
aqueles momentos em que os silêncios seriam maculados por palavras.
Ficaríamos quietos em nós mesmos e um no outro, enquanto veríamos o tempo
rasgar vagarosamente nossas vidas, delegando ao justo esquecimento nossos
passados.
Mas silêncios
são complexos. Para distinguirmos os férteis dos inférteis é necessário que
conheçamos ao outro intimamente. Quanto a nós, nunca chegamos a nos conhecer. Como
diz a música, “existe um preconceito
muito forte separando você de mim**. Mas não me vitimizo. A culpa foi minha
também. Nunca consegui ultrapassar o abismo dos teus olhos esverdeados e
brilhantes. Da mesma forma, nunca compreendeste o que calou minha boca seca.
Não esperei
grandes demonstrações tuas. Queria as “minimalezas”,
as sutilezas, as gentilezas e as cotidianidades. Queria anoitecer e amanhecer contigo.
E quando anoitecesse, queria apenas garantias de que amanheceríamos juntos. Queria
que tivesses para onde voltar das tuas longas jornadas. Queria a certeza de que
eu poderia ir e teria um porto para atracar quando voltasse. Mas sempre voltei
para a casa vazia e para a cama fria.
O que precisei
a vida toda - e nunca tive de ti - é presença. Nunca foi companhia o que te pedi
em todos os momentos de mendicância extrema e indigna. Tampouco me satisfaziam os
presentes raros que trazias de além-mar. Tu saías antes do sol nascer porque o
cais é apenas uma parada provisória. E deixavas tuas migalhas sobre o
criado-mudo esperando calar-me. Quanto a mim, navegar não é preciso. Viver é
preciso. Mas exigir isso de ti é muito, não é mesmo? Teu espírito é elevado
demais para satisfazer meus desejos tão primitivos e egomaníacos.
Disparatado
da minha parte desejar que me quisesses quando estavas aqui olhando-me nos
olhos, como dizias querer-me nas cartas, escritas com caligrafia impecável, que
mandavas dos portos onde chegavas. Tuas cartas tinham o cheiro dos lugares por
onde passavas e se eu inspirasse profundamente o papel conseguia sentir o
cheiro acre das tuas mãos hábeis em iludir-me. Sabes , teve um tempo no qual eu seria
capaz de identificar de onde o sujeito vinha pelo cheiro de sua bagagem. Os
lugares tem cheiros característicos. Este lugar, por exemplo, cheira a mofo. Este
é o seu cheiro, por mais que limpem e perfumem com flores, essências e incensos. E a casa que eu queria que fosse nossa cheira a morte, principalmente agora.
Soou a
primeira campainha, preciso terminar de vestir-me. Mas não é isso que queria
dizer. Minha teoria é que as cidades têm cheiros característicos e que eu
consigo identificá-los porque sempre fui um andarilho atento. Pretensão minha?
Talvez. Assim como foi pretensão minha achar que serias capaz de transformar
nossas vidas ou que eu seria capaz de manter-te junto a mim por vontade tua.
Assim como sou um astuto em identificar aromas, sou persuasivo para satisfazer
minhas vontades. Eu quis que ficasses porque cansei de ser um cavaleiro andante.
Talvez agora tenha conseguido fazer-te permanecer, não? Mas agora não quero que
fiques. Acho que teu lugar é o mundo, tua casa são os sete mares. Por isso
quero despedir-me definitiva e dignamente de ti.
Defendo-me
de ti mostrando-me a ti. Soou a segunda campainha. Hora de entrar no palco mais
uma vez. Preciso da peruca colorida, do meu nariz e do sorriso falso. É triste
ser reduzido a um personagem, porém esses elementos são minha marca e jamais
serei alguém sem eles. Agora eu sou o personagem, a máscara grudou
definitivamente em minha cara e devo aceitá-la. Logo precisarei retornar ao que
chamamos precariamente de lar para encontrar-te, meu querido. Preciso limpar as
marcas do nosso último encontro, recolher os cacos espalhados pelos cantos,
arejar e incensar todos os cômodos para as boas energias entrarem, dar-te um
beijo de despedida na testa e após carregar até o porto a arca onde o teu corpo
que um dia quis meu e jogá-la ao mar.
* Trecho da
música Bastidores – Chico Buarque de Holanda
** Trecho da
música Preconceiro – Antonio Maria e Fernando Lobo
Amei o texto. Demais, se superando a cada página que escreves querido Luc. Beijo no coração!
ResponderExcluirCada vez que você pára pra escrever, os pensamentos inundam sua mente e você os transforma em palavras montando um quebra-cabeças chamado texto, o qual saboreamos sempre com vontade de quero mais. Parabéns querido Luc. Beijo no coração!
ExcluirObrigado pelos comentários!
ExcluirJair, obrigado pelos comentários. Abraço forte, amigo.
ExcluirVoltei de viagem e mergulho neste teu texto denso! Tens sempre o dom de me fazer "parir" lembranças entranhadas, mascaras coladas na pele da cara, vida impossível de viver é preciso coragem... Mas aprendi a fazer escolhas, pq a vida precisa seguir. Navegar, navegar... Beijo, Luciano.
ResponderExcluirÉ bom parir (socraticamente) novas ideias ou ideias antigas revisitadas. Vidas impossíveis também são vidas. Para vivê-las é preciso coragem. E sempre seguir. Obrigado pelos comentários.
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