segunda-feira, 24 de março de 2014

O QUE NÃO TEM NOME, NEM NUNCA TERÁ

Fotografia de Georgiy Alexandrov

“O que será que me dá
Que me bole por dentro, será que me dá
Que brota à flor da pele, será que me dá
E que me sobe às faces e me faz corar
E que me salta aos olhos a me atraiçoar
E que me aperta o peito e me faz confessar
O que não tem mais jeito de dissimular”

– “O Que Será (À Flor da Pele)” - Chico Buarque -


Sabe o que é mágoa? Sim, isso mesmo que você ouviu, você sabe definir o que é mágoa? Você já sentiu isso? Essa coisa tão funda, mas tão funda, que parece que você pode segurá-la com os dedos indicador e polegar em forma de pinça? Não, não estou perguntando só para que você me dê explicações científicas ou me apresente suas construções intelectuais sobre o conceito ou sobre a etimologia da palavra. Quero saber se você pode definir para mim um sentimento como sendo isso, “Má-go-a”. Como se você fosse cego e explicasse como reconhece a cor vermelha. Ou me descrevesse o gosto de uma fruta madura apanhada do pé. Ou ainda, onde mora o amor. Lembra? Daquele filme que assistimos juntos uma vez. Traduza o que é mágoa para você. Traduza-se. Traduza-me.

Por que eu quero saber? Porque preciso urgentemente definir o que eu estou sentindo agora. Isso não pode esperar até amanhã. Por quê? Porque quando amanhecer, talvez seja tarde. Talvez a dor passe para sempre, talvez ela mude de lugar e eu nunca mais consiga reencontrá-la, talvez eu aprenda a conviver com ela até quase não perceber que ela come aos poucos minha alma, como a águia comia o fígado de Prometeu acorrentado ao Cáucaso. E não quero isso. Sei que é tarde e que você já estava dormindo, ainda lembro-me dos seus horários e sei que você precisa de oito horas ininterruptas de sono e acordar antes do sol nascer para fazer yoga e meditar. Eu dormia até mais tarde e acordava a tempo de passar café bem forte para mim e esquentar seu pão integral de duzentos e oitenta grãos, antes do seu último ásana do Yoga Sutra.

Certo, desculpe-me, serei mais objetivo. Só procurei você porque a melhor forma de definir isso que sinto agora é sabendo o que você sente e o que pensa. Eu me defino e delimito quem sou a partir dos limites do que é você. Não quero ser como você. Deixe de ser soberbo. Quero me diferenciar de você. Não, não estou menosprezando você. Não é despeito. Talvez seja mágoa. E é por isso que procurei você. Apenas quero descobrir o que eu sou e o que sinto, quero descobrir se sou algo que é o extrato, o sumo, que resultou do que eu era antes de você e da fusão que fui com você ou se sou qualquer coisa como o bagaço que sobrou do que éramos. Entende? Antes de conhecer você, eu sabia quem eu era. Agora só me restaram dúvidas e ausências. Não tem importância. Apenas queria que você respondesse a esta pergunta simples.

O motivo de perguntar isso agora é que algo está crescendo no meu peito. Sim, tentei fazer os exercícios respiratórios que você me ensinou para controlar a ansiedade. E não bebi café depois das dez da noite. Bebi aquele chá de flores que você me trouxe daquela viagem. Para onde você foi mesmo? Não adiantou. Não estou ansioso ou tenso, apenas quero saber o que é isso que cresce aqui dentro. E acho que foi provocado, de certa forma, por você. E suspeito que o que sinto é mágoa. Então, por favor, ajude-me, e diga o que é esse sentimento negro e amargo que tenho.

Não, não quero culpar você por nada. Nem quero encontrar outro culpado. Não há culpados. Sentir isso tudo agora sempre foi um risco ao qual me propus. Eu sempre assumi os riscos de estar ao seu lado. A responsabilidade é minha. Não, você está entendendo errado. Não estou querendo dizer que nunca precisei de você para nada e que sou capaz de suportar tudo sozinho, embora eu ache que isso é verdade. O que sinto agora é o resultado previsível (talvez já previsto) desse processo de permitir que você entrasse no meu mundo e não me deixasse entrar no seu. Suspeito que seu mundo tenha coisas interessantes. Não conheci essas coisas porque você fechou todas as portas para mim. Mas você também desconhece essas coisas porque nem mesmo você entrou em algumas salas. E sinto uma profunda compaixão por você. Queria conhecer você tanto quanto queria que você se conhecesse. Além disso, o que importava para mim era o meu próprio exercício de permitir que você chegasse de mãos vazias e saísse com as mãos cheias, deixando-me com as mãos vazias. Vazias de você e vazias de mim.

Sei que posso estar exagerando. Afinal, você mesmo sempre disse que eu sou tão altivo e autossuficiente. Porque eu sempre fiz questão de parecer independente, dando a impressão que você não precisaria fazer nada para que eu fosse feliz. E sinto que minha felicidade nunca dependeu de você fazer algo, mas dependeu de você estar ali para que eu fizesse algo por você, por mim e por nós, ou pelo menos para participar do que pudéssemos fazer juntos. Você não estava lá. Um dia percebi que você não tinha ido embora; você nunca chegou, nunca esteve comigo. São minhas ilusões, você não tem culpa e não entenderia. Deixa para lá. Como cantaria Maysa, “se meu mundo caiu, eu que aprenda a levantar”.

O que você está comendo? É uma maçã? Estive pensando, coincidentemente, em maçãs. E em nós. Tivemos uma maçã e deveríamos nos alimentar dela. E deveríamos cuidar dela. Acho que o que aconteceu com a gente foi como reconhecer que nossa maçã não podia mais ser comida porque ela foi apodrecendo aos poucos. Percebíamos que ela estava apodrecendo, mas como ainda acreditávamos nela, cortávamos os pedaços podres, valorizando as partes ainda sadias, já que não restava outra alternativa porque não podíamos fazer com que ela se regenerasse. Até que percebemos que pouco ou quase nada restou de polpa sadia e isso não seria suficiente para alimentar nós dois. E precisamos jogar o caroço na terra para que as sementes germinassem e delas nascessem outras maçãs para outras pessoas. E cada um de nós foi procurar outros pomares. Certo, talvez não encontremos maçãs tão bonitas, nem tão grandes, sem aquela casca vermelho-vivo lustrosa onde quase podemos ver nossa imagem refletida, sem aquele cheiro adocicado de vida. Mas podemos encontrar mais verdade.

Então, você sabe definir o que é mágoa? Não devolva minhas perguntas com outras perguntas. Quero que você diga primeiro, por favor. Não vou dizer antes de você. Esse seu jogo é antigo. Eu sei, você sempre disse isso, sempre disse que eu tenho respostas para tudo. Eu já conheço seus passos. Eu digo, você concorda e diz que “é isso mesmo”. Eu dou-me por satisfeito e assunto encerrado. Em tempos idos, isso era o suficiente para eu voltar a dormir abraçado em você. Agora quero ouvir o que você realmente pensa. Vamos lá, diga!

Então, doutora, nesse momento tomei consciência de onde estava. Consigo sentir até agora seu hálito de maçã e gengibre, quando abriu a boca para talvez responder o que eu havia perguntado. É como se eu estivesse em transe. Só que eu estava com os olhos abertos, olhando profundamente meus olhos refletidos água turva da pia entupida. E ali, completamente sozinho, pisando o chão frio com as pontas dos pés, depois de vomitar a alma em jatos de rum e whisky, eu consegui finalmente definir o que é mágoa. 

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

O BARQUINHO VAI, A TARDINHA CAI

Série Mar de Homens, 2001. Roberto Linsker. Gelatina/prata tonalizada. 30,1 x 44,9 cm. Redonda, CE. 

 [Para ler ao som de Maysa, O Barquinho]

Qual é mesmo a palavra? Estéril! ES-TÉ-RIL, soletrava ritmado, enquanto mergulhava as meias de algodão em uma espessa espuma branca. O que significa mesmo a palavra “estéril”? Aquele que não tem capacidade de procriar; quem ou aquilo que não pode produzir o resultado esperado; infecundado; vão; inútil; ineficaz; quem não possui criatividade; sem valor; escasso. Há algum tempo ele sentia algo secar por dentro, uma vastidão inominada que somente naquele momento teve uma definição: Estéril. Vontades, essas tinha muitas. Mas nada que o movesse para algo que pudesse designar “producente”. Palavrinha mais academicista, pensava com rancor. Parecia que a vida era a busca exaustiva por resultados quantificáveis, palatáveis, tabuláveis métrica e cientificamente. E esses resultados palpáveis deveriam ser divulgados nas rodas sociais para que os sujeitos pudessem ser reconhecidos como bem-sucedidos. O reconhecimento alheio é a outorga do status íntimo. Além disso, era necessário o sentimento de ser guardado por forças misteriosas superiores. Dessa forma, o sucesso seria necessário para que os bem-sucedidos pudessem agradecer-a-deus-por-tudo-de-bom-amém e encontrassem a paz interior. Ou para que desejassem outras coisas e dessem continuidade ao ciclo infinito.

Se “producente” pudesse ser considerado o contrário de “estéril”, este seria o resultado científico negativo de uma vida que não deu certo. Então, “estéril” seria um conceito tão academicista quanto “producente”. Qualificando uma existência como “estéril” ou “producente”, resulta disso uma vida bovina? Seguindo essa lógica sim. Porque uma vida bovina é aquela em que existir resume-se a pastar-defecar-dormir-pastar. “Resulta”? Que resultado poderá ser esperado ou validado do mistério de existir? Será que são necessários resultados? E se viver for a exata ausência de resultados? E se o que a vida quer de nós é que vivamos simplesmente, sem interrogá-la e sem interrogarmo-nos? Fernando Pessoa, nas Odes de Ricardo Reis, já dizia: “Vê de longe a vida. / Nunca a interrogues. / Ela nada pode / Dizer-te. / A resposta / Está além dos deuses”. E provavelmente por isso que há esterilidade, porque pensamos demais ao invés de vivermos. “Os deuses são deuses / Porque não se pensam”. Porque não se pensam. Enxotou de sua mente esses questionamentos espiralados e os pensamentos intrusos que insistiam em habitá-la e voltou a concentrar-se em suas atividades.

A vida sempre tinha sido uma cama de pregos na qual ele recostava-se todas as noites. Mas naqueles novos tempos, sentia que algo estava mudando. Em alguns momentos até parecia que a vida era uma nuvenzinha mansa, branca e fofinha. Ou uma rede sob palmeiras, embalada pela brisa e pelo som do mar. Ou, então, um quarto de hotel no décimo sexto andar de um arranha-céu em uma grande metrópole, seguro e confortável, acarpetado, com cama macia, travesseiros de plumas, lençóis de linho e temperatura constante controlada por computador, que era mais a cara dele.

Não importavam os espinhos do passado. Ele vivia tampos de doce letargia. Parecia que tudo estava finalmente em seu devido lugar. Havia uma serenidade quase búdica, coroada com uma calma de ansiolítico. Parecia, apenas parecia, que todas as energias cósmicas e psicológicas estavam alinhadas. Sua consciência alertava-o que isso era apenas uma sensação ilusória. Sabia que estava deixando de ver algumas coisas simplesmente porque havia voltado o rosto para outra direção. E talvez seu maior ato de sabedoria tenha sido simplesmente mudar de direção. Não necessariamente buscar o caminho mais fácil, mas o que tivesse mais coração, que quase sempre é o mais difícil. O segredo aparentemente era dar as costas ao passado, ou pelo menos guardá-lo em seu devido lugar; um baú empoeirado que fosse. Em alguns momentos pensava que isso não era “fazer as pazes com o passado”. Entretanto, foi o único caminho viável para serenar seu coração.

Enquanto esfregava as meias brancas buscava palavras que o definissem existencialmente. Era seu maior passatempo solitário, e de solidão ele entendia bem. A brancura das meias enxaguadas, imersas na água cristalina, trouxe à consciência um momento esquecido no passado. As lembranças eram vagas. E reminiscências, quanto mais difusas, mais insuportáveis para ele. O tecido branco atoalhado mergulhado na água fria lembrava a metáfora que escreveu (ou leu) em algum momento. A imagem era a de velas branquíssimas do veleiro deslizando calmamente sobre o mar, reluzindo contra o céu quase turquesa, o qual no horizonte se confundia com o mar, de tão azuis, deixando a sensação de formarem uma imensa bolha líquida azul-resplandecente. Por que lembrar desse maldito barco no mar? O bilhete! É isso, o bilhete que escreveu e não mandou. Ou mandou sem ler. Ou que recebeu de alguém, não tinha mais certeza. Com sorte esse bilhete estaria em uma caixa no fundo de um baú. O pedaço de papel instantaneamente tornou-se uma obsessão e encontrá-lo virou uma meta de vida.

Fechou a torneira, largou a bacia com roupas, enxugou as mãos na barra da camiseta e arrastou os chinelos pela casa até a saleta onde ficava um baú antigo, uma arca de memórias que nem sempre faziam sentido individualmente, mas que juntas reconstruíam sua própria história. Retirou os objetos que estavam sobre o móvel e ergueu a pesada tampa. Uma golfada de um cheiro morno de mofo, poeira e amarguras chegou como um tapa em sua cara suada de janeiro. Num canto no fundo do baú estava ela.

Limpou mais uma vez as mãos na camiseta e segurou a pequena caixa envernizada, ornada com arabescos em marchetaria. Essa caixa havia sido um presente de um amor antigo que se foi. Originalmente, vinham trufas delicadas e perfumadas. O cheiro do chocolate ainda permanecia vívido, assim como algumas manchas de licor no fundo, resultado de sua incurável falta de jeito. Sentou-se sobre os pés e abriu a caixa de pandora. Pôs-se, então, a vasculhar seu conteúdo. Nela eram guardadas outras memórias, de outras pessoas, algumas fotos, uns cartões postais de Paris, Praga e Roma – lugares que ele nunca conheceu - uns bilhetinhos coloridos deixados sobre o travesseiro ou no meio de um livro, propositalmente esquecidos. As memórias dentro das memórias, e essas dentro de outras memórias, como uma Matrioshka, as bonecas russas.

Não sabia ao certo porque revisitar essas lembranças depois de tanto tempo. Abrir o baú era sempre um misto de saudades infindas, dores pontiagudas e emoções recalcadas por durezas da vida que retornavam com intensidade. Bravamente covarde - ou covardemente bravo - ele enfrentava o baú de tempos em tempos. Talvez para lembrar que ele era constituído por essas dores também. Ao melhor estilo cristão, açoitando com flagelo a própria carne para que sentisse as dores de Jesus na cruz e mantivesse viva a consciência que Ele sofreu por todos nós, enfrentava seu passado para lembrar que ele próprio havia sofrido para se tornar o que era naquele momento. Mas também porque vez ou outra ele queria rever algum de seus mortos para que não ficassem para sempre esquecidos.

Tentou não olhar detidamente todo o conteúdo da caixa. Algumas coisas não deveriam ser lembradas naquela hora. Mas não adiantava. Seu coração palpitava a cada retrato, a cada bilhete, a cada cartão postal e a cada carta de (des)amor. Seu objetivo era outro: queria simplesmente lembrar das palavras em um pedaço de papel que falavam sobre as velas de um barco. Era como lembrar um samba antigo, do qual sabia o ritmo tamborilando os dedos, mas a letra fugia à lembrança. Curiosidade obsessiva. Ele não gostava de esquecer quando era necessário lembrar. Da mesma forma que não gostava de lembrar quando era inevitável esquecer. Achou o bilhete no fundo da pequena caixa. Estava com uma mancha marrom de calda licorosa das trufas. Pela caligrafia e pela amargura das palavras havia sido escrito por ele. Era um rascunho coalhado de rasuras. Ele sempre titubeou para escrever, reescrevendo exaustivamente sem nunca dar-se por satisfeito. Não sabia se havia enviado. E se enviou, não saberia jamais se o bilhete foi lido. Talvez triste, talvez providencial. As palavras eram as seguintes:

“Deixei que a vida se encarregasse de traçar um curso para minha caminhada, seguir o meu destino, regar minhas plantas e amar as minhas rosas. Porque o resto é sombra de árvores alheias, já dizia Pessoa, docemente interpretado por Bethânia. Pelo pouco que lembro, a partir do teu silêncio, desde o dia em que te convidei para um jantar e não recebi mais que a resposta evasiva habitual, decidi ajustar as velas no sentido do vento. Não tenho escrito para ti desde então porque escrever era um processo psicoterápico. Catarse, sabe? Como voltei para a análise, não tenho sentido tanta falta de escrever, tento somente viver. E tem funcionado. De resto, tudo anda no mesmo ritmo. Mas é um passo bom, sereno e perto da tranquilidade. Existem ausências, existem faltas e lonjuras, mas existem recompensas doces também. Espero que a vida não ande sendo madrasta contigo.”

Ele reconhecia que poderia ser amargo e rancoroso, bastando um pequeno estímulo. Sabendo desse monstro prestes a sair de dentro de si e espargir fel, exercitava todas as manhãs seu silêncio. Será que essas palavras tiveram um destinatário? Evidente que sim. O mais provável é que fosse ele mesmo. Mais que ser ouvido, ele queria dizer para ouvir sua própria voz. Falar com as paredes, esmurrá-las quiçá, poderia libertar de todo o mal. Se existia algo muito maior em sua alma era sua capacidade de espargir amor. E ele sabia que seu fel era a face oculta de seu amor, o lado escuro que deveria ser neutralizado ou banido, embora tivesse a mesma essência e a mesma origem do amor.

Firmara um contrato, um pacto tácito selado com Buda, com Jung, com Jesus, com Freud e com as forças do universo de não falar tudo o que pensava, especialmente quando iria ferir alguém ou prejudicar a si próprio. Nem Iluminado, nem anticristo, tão somente um ser errático tentando não pisar as flores do jardim. Era a velha metáfora do caminho do meio, tão difícil de encontrar no escuro em meio à tempestade. Esse bilhete era uma resposta a uma provocação ou era uma provocação à espera de resposta? Não fazia diferença. As palavras eram duras, eram amargas, mas eram verdadeiras. Porque para que as flores do jardim sobrevivam é preciso arrancar as ervas daninhas. E esse poderia ser o caminho do meio.

Depois desse bilhete outros foram escritos. Não do mesmo remetente e não para o mesmo destinatário, provavelmente. Ou quem sabe sim. Afinal, se era um processo catártico, narcisista e egomaníaco, o que ele queria escrevendo não era ferir o outro, mas expurgar o que do outro feria as camadas mais profundas da sua epiderme. Escrevia como se falasse em frente ao espelho, para que visse a si próprio através do outro. Não importava, em última instância, em que consistia o outro ou quais eram suas ações, importava o que ele fazia daquilo que o outro era de diferente de suas projeções.

Ainda sentado sobre o tapete de juta da diminuta saleta, foi transportado para o pequeno barco de velas brancas, navegando calmamente sobre o mar. Sentia o calor brando do sol. Deitado no convés, tentava olhar para o sol, como fazia na infância, na tentativa de desafiá-lo, como se pudesse ser maior e mais forte que a natureza. A luminosidade cegava-o e essa cegueira momentânea assustava e divertia porque era o limite: Temia ficar cego para sempre, mas divertia-se com a retomada paulatina da visão, como num milagre. Subverter a ordem natural do universo sempre foi seu maior desafio, mesmo que fosse através de milagres. Ajustou as velas no sentido do vento e deixou o barco levá-lo ao seu destino.

Abriu os olhos, como se saído do estado meditativo. Já era quase noite. Ele precisava correr contra o tempo. Havia muito a ser feito. Deveria colocar o vinho branco para resfriar, terminar de preparar o jantar e arrumar a mesa com o esmero que a ocasião merecia, separando a louça e a prataria polida previamente, as taças cristalinas e reluzentes de tão limpas, acendendo velas aromáticas nos castiçais de bronze, diminuindo a luz ambiente e colocando na vitrola um samba-canção sereno e alegre, como era alegre a ocasião. Precisava ainda escolher cuidadosamente a roupa e o perfume que usaria. Era imprescindível causar uma boa primeira impressão. Pelo brilho da lua cheia de São Jorge, lua deslumbrante, que entrava pela janela e inundava a sala, aquela pressagiava ser uma noite especial. E foi.

"Apanhei-te". Acrilico sobre tela - Teresa Gil