Série
Mar de Homens, 2001. Roberto Linsker. Gelatina/prata tonalizada. 30,1 x 44,9 cm . Redonda, CE.
[Para
ler ao som de Maysa, O Barquinho]
Qual
é mesmo a palavra? Estéril! ES-TÉ-RIL, soletrava ritmado, enquanto mergulhava
as meias de algodão em uma espessa espuma branca. O que significa mesmo a palavra “estéril”?
Aquele que não tem capacidade de procriar; quem ou aquilo que não pode produzir
o resultado esperado; infecundado; vão; inútil; ineficaz; quem não possui
criatividade; sem valor; escasso. Há algum tempo ele sentia algo secar por
dentro, uma vastidão inominada que somente naquele momento teve uma definição:
Estéril. Vontades, essas tinha muitas. Mas nada que o movesse para algo que
pudesse designar “producente”. Palavrinha
mais academicista, pensava com rancor. Parecia que a vida era a busca exaustiva
por resultados quantificáveis, palatáveis, tabuláveis métrica e
cientificamente. E esses resultados palpáveis deveriam ser divulgados nas rodas
sociais para que os sujeitos pudessem ser reconhecidos como bem-sucedidos. O
reconhecimento alheio é a outorga do status
íntimo. Além disso, era necessário o sentimento de ser guardado por forças
misteriosas superiores. Dessa forma, o sucesso seria necessário para que os
bem-sucedidos pudessem agradecer-a-deus-por-tudo-de-bom-amém
e encontrassem a paz interior. Ou para que desejassem outras coisas e dessem
continuidade ao ciclo infinito.
Se
“producente” pudesse ser considerado o contrário de “estéril”, este seria o
resultado científico negativo de uma vida que não deu certo. Então, “estéril”
seria um conceito tão academicista quanto “producente”. Qualificando uma
existência como “estéril” ou “producente”, resulta disso uma vida bovina?
Seguindo essa lógica sim. Porque uma vida bovina é aquela em que existir
resume-se a pastar-defecar-dormir-pastar. “Resulta”? Que resultado poderá ser
esperado ou validado do mistério de existir? Será que são necessários
resultados? E se viver for a exata ausência de resultados? E se o que a vida quer
de nós é que vivamos simplesmente, sem interrogá-la e sem interrogarmo-nos? Fernando
Pessoa, nas Odes de Ricardo Reis, já dizia: “Vê
de longe a vida. / Nunca a interrogues. / Ela nada pode / Dizer-te. / A
resposta / Está além dos deuses”. E provavelmente por isso que há
esterilidade, porque pensamos demais ao invés de vivermos. “Os deuses são deuses / Porque não se pensam”. Porque não se
pensam. Enxotou de sua mente esses questionamentos espiralados e os pensamentos
intrusos que insistiam em habitá-la e voltou a concentrar-se em suas
atividades.
A
vida sempre tinha sido uma cama de pregos na qual ele recostava-se todas as
noites. Mas naqueles novos tempos, sentia que algo estava mudando. Em alguns
momentos até parecia que a vida era uma nuvenzinha mansa, branca e fofinha. Ou
uma rede sob palmeiras, embalada pela brisa e pelo som do mar. Ou, então, um
quarto de hotel no décimo sexto andar de um arranha-céu em uma grande metrópole,
seguro e confortável, acarpetado, com cama macia, travesseiros de plumas, lençóis
de linho e temperatura constante controlada por computador, que era mais a cara
dele.
Não
importavam os espinhos do passado. Ele vivia tampos de doce letargia. Parecia
que tudo estava finalmente em seu devido lugar. Havia uma serenidade quase búdica,
coroada com uma calma de ansiolítico. Parecia, apenas parecia, que todas as
energias cósmicas e psicológicas estavam alinhadas. Sua consciência alertava-o que
isso era apenas uma sensação ilusória. Sabia que estava deixando de ver algumas
coisas simplesmente porque havia voltado o rosto para outra direção. E talvez seu
maior ato de sabedoria tenha sido simplesmente mudar de direção. Não
necessariamente buscar o caminho mais fácil, mas o que tivesse mais coração,
que quase sempre é o mais difícil. O segredo aparentemente era dar as costas ao
passado, ou pelo menos guardá-lo em seu devido lugar; um baú empoeirado que
fosse. Em alguns momentos pensava que isso não era “fazer as pazes com o
passado”. Entretanto, foi o único caminho viável para serenar seu coração.
Enquanto
esfregava as meias brancas buscava palavras que o definissem existencialmente.
Era seu maior passatempo solitário, e de solidão ele entendia bem. A brancura
das meias enxaguadas, imersas na água cristalina, trouxe à consciência um
momento esquecido no passado. As lembranças eram vagas. E reminiscências,
quanto mais difusas, mais insuportáveis para ele. O tecido branco atoalhado
mergulhado na água fria lembrava a metáfora que escreveu (ou leu) em algum
momento. A imagem era a de velas branquíssimas do veleiro deslizando calmamente
sobre o mar, reluzindo contra o céu quase turquesa, o qual no horizonte se
confundia com o mar, de tão azuis, deixando a sensação de formarem uma imensa
bolha líquida azul-resplandecente. Por que lembrar desse maldito barco no mar? O
bilhete! É isso, o bilhete que escreveu e não mandou. Ou mandou sem ler. Ou que
recebeu de alguém, não tinha mais certeza. Com sorte esse bilhete estaria em
uma caixa no fundo de um baú. O pedaço de papel instantaneamente tornou-se uma obsessão
e encontrá-lo virou uma meta de vida.
Fechou
a torneira, largou a bacia com roupas, enxugou as mãos na barra da camiseta e
arrastou os chinelos pela casa até a saleta onde ficava um baú antigo, uma arca
de memórias que nem sempre faziam sentido individualmente, mas que juntas reconstruíam
sua própria história. Retirou os objetos que estavam sobre o móvel e ergueu a
pesada tampa. Uma golfada de um cheiro morno de mofo, poeira e amarguras chegou
como um tapa em sua cara suada de janeiro. Num canto no fundo do baú estava
ela.
Limpou
mais uma vez as mãos na camiseta e segurou a pequena caixa envernizada, ornada
com arabescos em marchetaria. Essa caixa havia sido um presente de um amor
antigo que se foi. Originalmente, vinham trufas delicadas e perfumadas. O cheiro
do chocolate ainda permanecia vívido, assim como algumas manchas de licor no
fundo, resultado de sua incurável falta de jeito. Sentou-se sobre os pés e
abriu a caixa de pandora. Pôs-se, então, a vasculhar seu conteúdo. Nela eram guardadas
outras memórias, de outras pessoas, algumas fotos, uns cartões postais de
Paris, Praga e Roma – lugares que ele nunca conheceu - uns bilhetinhos
coloridos deixados sobre o travesseiro ou no meio de um livro, propositalmente
esquecidos. As memórias dentro das memórias, e essas dentro de outras memórias,
como uma Matrioshka, as bonecas
russas.
Não
sabia ao certo porque revisitar essas lembranças depois de tanto tempo. Abrir o
baú era sempre um misto de saudades infindas, dores pontiagudas e emoções
recalcadas por durezas da vida que retornavam com intensidade. Bravamente
covarde - ou covardemente bravo - ele enfrentava o baú de tempos em tempos.
Talvez para lembrar que ele era constituído por essas dores também. Ao melhor
estilo cristão, açoitando com flagelo a própria carne para que sentisse as
dores de Jesus na cruz e mantivesse viva a consciência que Ele sofreu por todos
nós, enfrentava seu passado para lembrar que ele próprio havia sofrido para se
tornar o que era naquele momento. Mas também porque vez ou outra ele queria
rever algum de seus mortos para que não ficassem para sempre esquecidos.
Tentou
não olhar detidamente todo o conteúdo da caixa. Algumas coisas não deveriam ser
lembradas naquela hora. Mas não adiantava. Seu coração palpitava a cada retrato,
a cada bilhete, a cada cartão postal e a cada carta de (des)amor. Seu objetivo
era outro: queria simplesmente lembrar das palavras em um pedaço de papel que falavam
sobre as velas de um barco. Era como lembrar um samba antigo, do qual sabia o
ritmo tamborilando os dedos, mas a letra fugia à lembrança. Curiosidade
obsessiva. Ele não gostava de esquecer quando era necessário lembrar. Da mesma
forma que não gostava de lembrar quando era inevitável esquecer. Achou o
bilhete no fundo da pequena caixa. Estava com uma mancha marrom de calda
licorosa das trufas. Pela caligrafia e pela amargura das palavras havia sido
escrito por ele. Era um rascunho coalhado de rasuras. Ele sempre titubeou para
escrever, reescrevendo exaustivamente sem nunca dar-se por satisfeito. Não
sabia se havia enviado. E se enviou, não saberia jamais se o bilhete foi lido.
Talvez triste, talvez providencial. As palavras eram as seguintes:
“Deixei que a vida se encarregasse de
traçar um curso para minha caminhada, seguir o meu destino, regar minhas
plantas e amar as minhas rosas. Porque o resto é sombra de árvores alheias, já
dizia Pessoa, docemente interpretado por Bethânia. Pelo pouco que lembro, a
partir do teu silêncio, desde o dia em que te convidei para um jantar e não
recebi mais que a resposta evasiva habitual, decidi ajustar as velas no sentido
do vento. Não tenho escrito para ti desde então porque escrever era um processo
psicoterápico. Catarse, sabe? Como voltei para a análise, não tenho sentido
tanta falta de escrever, tento somente viver. E tem funcionado. De resto, tudo
anda no mesmo ritmo. Mas é um passo bom, sereno e perto da tranquilidade.
Existem ausências, existem faltas e lonjuras, mas existem recompensas doces
também. Espero que a vida não ande sendo madrasta contigo.”
Ele
reconhecia que poderia ser amargo e rancoroso, bastando um pequeno estímulo.
Sabendo desse monstro prestes a sair de dentro de si e espargir fel, exercitava
todas as manhãs seu silêncio. Será que essas palavras tiveram um destinatário?
Evidente que sim. O mais provável é que fosse ele mesmo. Mais que ser ouvido,
ele queria dizer para ouvir sua própria voz. Falar com as paredes, esmurrá-las
quiçá, poderia libertar de todo o mal. Se existia algo muito maior em sua alma
era sua capacidade de espargir amor. E ele sabia que seu fel era a face oculta
de seu amor, o lado escuro que deveria ser neutralizado ou banido, embora
tivesse a mesma essência e a mesma origem do amor.
Firmara
um contrato, um pacto tácito selado com Buda, com Jung, com Jesus, com Freud e com
as forças do universo de não falar tudo o que pensava, especialmente quando
iria ferir alguém ou prejudicar a si próprio. Nem Iluminado, nem anticristo,
tão somente um ser errático tentando não pisar as flores do jardim. Era a velha
metáfora do caminho do meio, tão difícil de encontrar no escuro em meio à
tempestade. Esse bilhete era uma resposta a uma provocação ou era uma
provocação à espera de resposta? Não fazia diferença. As palavras eram duras,
eram amargas, mas eram verdadeiras. Porque para que as flores do jardim
sobrevivam é preciso arrancar as ervas daninhas. E esse poderia ser o caminho
do meio.
Depois
desse bilhete outros foram escritos. Não do mesmo remetente e não para o mesmo
destinatário, provavelmente. Ou quem sabe sim. Afinal, se era um processo catártico,
narcisista e egomaníaco, o que ele queria escrevendo não era ferir o outro, mas
expurgar o que do outro feria as camadas mais profundas da sua epiderme.
Escrevia como se falasse em frente ao espelho, para que visse a si próprio
através do outro. Não importava, em última instância, em que consistia o outro
ou quais eram suas ações, importava o que ele fazia daquilo que o outro era de
diferente de suas projeções.
Ainda
sentado sobre o tapete de juta da diminuta saleta, foi transportado para o
pequeno barco de velas brancas, navegando calmamente sobre o mar. Sentia o
calor brando do sol. Deitado no convés, tentava olhar para o sol, como fazia na
infância, na tentativa de desafiá-lo, como se pudesse ser maior e mais forte
que a natureza. A luminosidade cegava-o e essa cegueira momentânea assustava e
divertia porque era o limite: Temia ficar cego para sempre, mas divertia-se com
a retomada paulatina da visão, como num milagre. Subverter a ordem natural do
universo sempre foi seu maior desafio, mesmo que fosse através de milagres. Ajustou
as velas no sentido do vento e deixou o barco levá-lo ao seu destino.
Abriu
os olhos, como se saído do estado meditativo. Já era quase noite. Ele precisava
correr contra o tempo. Havia muito a ser feito. Deveria colocar o vinho branco
para resfriar, terminar de preparar o jantar e arrumar a mesa com o esmero que
a ocasião merecia, separando a louça e a prataria polida previamente, as taças
cristalinas e reluzentes de tão limpas, acendendo velas aromáticas nos
castiçais de bronze, diminuindo a luz ambiente e colocando na vitrola um samba-canção
sereno e alegre, como era alegre a ocasião. Precisava ainda escolher cuidadosamente
a roupa e o perfume que usaria. Era imprescindível causar uma boa primeira impressão.
Pelo brilho da lua cheia de São Jorge, lua deslumbrante, que entrava pela
janela e inundava a sala, aquela pressagiava ser uma noite especial. E foi.
"Apanhei-te". Acrilico sobre tela - Teresa Gil
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