quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

PEQUENO RETRATO

Luc B.: Calles de Buenos Aires, 2011.

Depois que você foi embora, a cidade virou um imenso cemitério. Está tudo do mesmo jeito, mas nunca mais nada será igual. Você era minha única referência afetiva neste lugar. Depois de ter você, para que servem as ruas? Protelei o quanto pude este momento. Mas hoje, depois de ficar um tempo impossível de ser contado deitado inerte sobre o tapete que tantas vezes foi nossa cama, neste quarto que tantas vezes foi nosso reino, olhando para o teto que tantas vezes nos protegeu do mundo exterior, resolvi remexer nos baús de nossas memórias. Precisava organizar minhas lembranças, colocar para fora o que estava me atrapalhando de continuar meu caminho e você de continuar o seu. Onde quer que você esteja, espero que seu caminho seja doce, seja bonito, seja iluminado. Assim como tenho tentado tornar iluminados os meus dias sem você. Mesmo tropeçando, mesmo indo por caminhos escuros ou pedindo ajuda para as pessoas erradas, mesmo fingindo que você está aqui e que poderá voltar para me salvar.

Peguei mais uma taça de vinho, meu companheiro depois que você se foi, sentei-me no chão e comecei o doloroso trabalho de deixar você partir definitivamente, embora eu saiba que você nunca sairá de dentro mim. Sempre restará seu cheiro no meu travesseiro, seus carinhos na minha pele e seu abraço envolvendo minha cintura, um pijama esquecido no armário, a escova de dente escondida dos olhos no fundo do armário, um pé de meia solitário, abandonado e inútil num canto da gaveta, a aliança que usávamos guardada no fundo da carteira, uma fotografia em um canto qualquer, físico ou virtual. Engraçado como a gente esquece determinadas coisas. Acho que deixei rastros seus por todos os lugares, como migalhas para que eu não me perdesse pelo caminho.

Deixei sinais seus espalhados pela casa para que não me perdesse de mim. Guardei um sem-número de coisas nossas, pequenas, aparentemente insignificantes. Encontrei o último cartão que tinha para você. Eu deveria tê-lo entregue na última vez em que nos encontramos, alguns dias antes de você desaparecer. O cartão deveria acompanhar o presente que lhe entreguei. Ele estava em branco e eu sem vontade de escrever. Então, não lhe entreguei o cartão, só o presente. Lembro que ainda comentei, em tom irônico, que daquela vez não haveria cartão, que não tinha escrito nada porque não tinha nada a dizer. Ele ficou esquecido numa gaveta, em branco.

Hoje o cartão é a representação de tudo que não tive tempo de lhe dizer. E queria dizer tanto! Lembro que nessa oportunidade você me deu uma imagem de Buda esculpida em madeira, que hoje ela enfeita minha sala. Para cada lugar que olho aqui tem algo que me lembra você e a vida breve e intensa que tivemos. Minha casa, a casa sem jardim que um dia eu quis que fosse nossa, tornou-se uma espécie de templo de nós dois. Uma das inúmeras marcas indeléveis que você me deixou. Não sei o que foi feito das memórias que você tem (ou tinha) de nós. Mas acho que a vida, o destino e essas forças externas tão fortes que levaram você daqui, trataram de apagar minhas memórias em você. Mas não importam essas coisas. O que importa é que dentro de mim você ficou.

Hoje é o dia em que relembro sua chegada, neste mundo e em minha vida. Há alguns dias atrás relembrei o dia de sua partida deste lugar, não da minha vida. Daqui a alguns dias será o dia em que eu cheguei, neste lugar e em sua vida. Em um breve intervalo de tempo minha vida será revisitada a partir dessas lembranças. É estranho como o tempo existe dentro de mim. Você se foi e depois chegou. E eu cheguei depois de você ter partido. E no então, estamos todos aqui o tempo todo. Chegadas, partidas, ausências e permanências são partes de um mesmo todo cíclico e complementar. É mágico, não? A vida é mágica e interessante.

Encaixotando imensas recordações impressas em pequenos mimos que trocamos, encontrei um livro de Fernando Pessoa que lhe dei. Entre as páginas havia um bilhete com a minha caligrafia, dedicado a você. Nele transcrevi o trecho: “[...] de tão interessante que é a todos os momentos, / A vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger, / A dar vontade de dar gritos, de dar pulos, de ficar no chão, de sair / Para fora de todas as casas, de todas as lógicas e de todas as sacadas, / E ir ser selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos.” Esse bilhete foi escrito num bloco de notas qualquer, na mesa da cafeteria onde nos encontrávamos, enquanto esperava você chegar, acompanhado por um café forte e sem açúcar. Nas semanas seguintes, você recostava sua cabeça dourada no meu colo e deitava seus olhos amendoados nas páginas do livro, enquanto recitava trechos para mim, com sua voz mansa e profunda, quase em falsete, entre goles de conhaque e acordes de Coltrane.

Ecoa agora pelo quarto a música Los Paraguas de Buenos Aires. Anja Stöhr, que você adorava, inunda minha alma: “Y cruza lluvias de hace mucho tiempo: / la que al final mojó tu cara triste, / la que alegró el primer abrazo nuestro, / la que llovió sin conocernos, antes.” Em uma caixa de madeira que você me presenteou com trufas, encontrei dois cartões do metrô de Buenos Aires que utilizamos. E olha a grande coincidência: no verso, o bilhete está datado de um ano atrás, exatamente no dia em que nos conhecemos. Junto com eles, fotos que você tirou de mim e outras que eu tirei de você pelas ruas da capital porteña, flagrantes de quando você não estava prestando atenção. Não chovia naquele dia em Buenos Aires e sua cara era de felicidade. “Na fotografia estamos felizes”, diria Chico.

Assim como você, carrego um pequeno retrato seu na carteira. Um recorte de um desses momentos especialmente mágicos que a vida nos presenteia vez ou outra. Tínhamos apenas o pacto de vivermos intensamente o amor enquanto fosse possível. E cumprimos. Por isso quero dizer a você (e sei que você poderá receber meu recado) que continuo cumprindo o que combinamos. Ainda tento sorrir, busco migalhas de alegrias fugazes e cotidianas, tento amar intensamente até o fim. Mesmo não sabendo para onde estou indo, eu vou até o fim. Ainda quero ver o brilho nos olhos das pessoas, como vi nos seus doces e tristes olhos amendoados, sentir meu coração batendo forte, sentir-me vivo. Assim manterei você vivo dentro de mim. Assim cumprirei para sempre nosso pacto de amor humano, intenso e finito.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

SOBRE ALMOFADAS

Lucian Freud: Rose 1990 Oil on canvas 50.2 x 61 cm    19¾ x 24"

[Para ler ao som de Nancy Sinatra: "Bang Bang"]

"Sempre haverá momentos em que duvidaremos se nossos amados existem na realidade como os imaginamos em nossas mentes - ou se não são apenas uma alucinação que inventamos para impedir o inevitável colapso sem amor."

(Alain De Botton)

Bang! Bang! He shot me down. Bang! Bang! I hit the ground. Alguém batia à porta. Isso causou nele um estranhamento desconfortável. Há tempos ninguém chegava tão perto do batente de sua porta. E ele havia desaprendido a reagir a essas situações inusitadas, como receber visitas inesperadas ou ter alguém sentado em seu sofá, recostado em suas almofadas. Não sabia ao certo quem estava batendo. Em seu coração, porém, aquela série de socos secos de punhos cerrados contra a madeira da pesada porta de imbuia de duas folhas, ornada de arabescos pintados de preto, reverberavam como ecos no vazio de seu peito árido. Na vitrola antiga a voz de Nancy Sinatra rasgou o ar, derradeira e melancólica: “Bang bang, my baby shot me down...”

O chiado característico do vinil cessou. Ele atravessou o corredor até o hall sem fazer ranger o assoalho de tábuas velhas. Sentiu a presença vagamente conhecida do lado de fora. Era capaz de ouvir o som familiar daquela respiração pesada, da mesma forma que conseguia ouvir as batidas do seu próprio coração reverberando nas paredes do sobrado impregnadas de memórias. Um cheiro de sabonete de lavanda, que não sabia se vinha do seu próprio corpo ou do outro lado da porta, exalava por todos os cantos, trazendo-lhe uma sensação de lar há muito perdida. Em pé, inerte e em silêncio, pensava nos motivos que a vida, o destino ou Deus teriam para colocá-lo naquela situação outra vez. Por que bateriam à porta novamente? Ergueu a mão. Hesitou, porém, e não conseguiu levá-la à maçaneta de bronze.

Chaves e trancas há muito não faziam parte de sua vida. Apenas havia dado as costas para a porta entreaberta, sem trancá-la, porque não queria ver aquele ser, em quem depositou suas melhores esperanças e lembranças de amor, ir embora para sempre sem que pudesse evitar. Sabia, em seu íntimo, que poderia ter feito algo. Poderia ter chorado, gritado, se jogado no chão aos prantos e pedido para que ficasse, sem carinhos, sem cobertas, no tapete atrás da porta. Poderia ter pedido para que o outro mudasse de ideia, mesmo sabendo que seria em vão. Mas não fez. E jamais faria porque é orgulhoso. Engoliu seu pranto, sufocou a mágoa e canalizou sua dor em lides cotidianas. Ele não se permitiria chorar na frente de alguém, demonstrar fraquezas ou transparecer necessidades. Mesmo sendo necessidades tão intensas e vitais quanto essas.

Já eram suas velhas conhecidas as dores da vida que havia escolhido. Não tinha remorso, não carregava arrependimentos. Tinha a consciência que amor era projeção e que tudo na vida era ilusão, em última instância. Mas sempre havia uma fagulha de luz, lá no fundo. Um sopro de lucidez que o trazia à tona dessa deliciosa nuvem que era o amor. Mas se ele fosse perguntado se preferia viver a realidade ou uma grande ilusão de amor, mesmo que consciente, sempre escolheria o que o amor proporcionava. Sentia plenamente que não importava onde pudesse chegar, desde que o amor fosse o caminho. Precisava manter uma certa "fé precária na espécie" como disse um certo escritor em uma passagem de um livro qualquer que chegou às suas mãos por acaso. E essa fé na espécie era amor. Tinha uma necessidade imensa de acreditar nas ilusões da vida para ultrapassá-las sentir-se vivo.

Vivo e aconchegado. “Amar é recostar-se em almofadas”, dizia em momentos de emoção de bourbon. Para ele, elas eram sinônimo de carinho, de afeto, de aconchego. O amor era, em si, uma almofada, em sua ingênua e romântica concepção. Tinha consciência que essas almofadas, com as quais se cercava e se protegia, eram quimeras. Sabia que se apaixonava pela necessidade que tinha de descansar suas costas doloridas das sovas que a vida lhe dava. E isso ara puro desejo. Amava, portanto, o amor que sentia. Ou mais: amava a possibilidade do amor que podia vir a sentir. Narcisismo, alguns podiam julgar. Ficava pensando nos motivos pelos quais suas relações não davam certo, porque as pessoas se desencontravam antes de se descobrirem. Talvez fosse porque elas não necessitavam amar o amor. Então, aquela pessoa que estava ali, talvez amando, não era o correspondente desse sentimento anterior a ela. Uma delas, pelo menos, não necessitava dessa almofada.

A porta estava destrancada e aquele que chegara sabia disso. O caminho, depois de transposto o obstáculo de negros arabescos, era conhecido e ambos sabiam o que deviam fazer. Num misto de medo e desamparo, porém, ele retornou ao interior do sobrado. Na sala, espanou e afofou freneticamente as almofadas indianas coloridas, sacudiu as pesadas mantas artesanais dos sofás, posicionou melhor sua bergére de veludo verde musgo em direção à luz que entrava pela janela. Rapidamente tirou as cinzas de incensos da pequena mesa nacarada de centro, arrumou as imagens de Shiva, Buda e Nossa Senhora, acendeu uma vela aromática e um incenso, deixando o ambiente pronto para receber quem chegava ou simplesmente para realizar uma ação habitual qualquer, a fim de desviar a atenção dos rumores cada vez mais intensos e incontroláveis que ecoavam dentro de si.

Mais três socos secos ecoaram pela casa, vindos da porta. “É o amor outra vez, veio sem me avisar”, soprou Bethânia em seu ouvido. Seu coração disparou. Não sabia o que fazer. Foi para a cozinha. Encheu de água a chaleira de cobre e colocou-a no fogo. Do armário pegou um vidro com chá de hibiscos e outro com lascas de gengibre desidratados. Em uma bandeja arrumou com esmero duas xícaras de porcelana ornadas com delicadas gueixas e uma tigela com damascos desidratados e amêndoas. No bule, decorado com os mesmos motivos das xícaras, colocou porções das pétalas de hibiscos e de gengibre.

Os sons vindos da porta cessaram. Por breves instantes foi possível ouvir o tempo ruindo através das paredes caiadas. O silêncio da casa foi cortado pelo apito da água fervendo na chaleira. De costas para a porta que dava acesso ao hall de entrada, observava as flores que explodiam em cores no jardim interno do sobrado, emolduradas pela janela cinza da cozinha. Desligou o fogo e despejou a água fervente no bule. Então, um súbito arrepio frio percorreu-lhe a espinha partindo da nuca, seguido por um calor que se irradiou por todo o corpo, do plexo solar até as extremidades. A cozinha foi invadida pelo cheiro adocicado de lavanda misturado ao de hibiscos do chá recém preparado. E sentiu-se, finalmente, abraçado e aconchegado pelas almofadas que lhe eram tão caras. “Remember when we used to play? Bang Bang, I shot you down.”


sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

ALEGORIA DE ANO NOVO

Katshusika Hokusai.  The Wave.  c. 1830.

“Llegaras mañana
Para el fin del mundo
O el año nuevo
Mañana te mato
Mañana te libro
Estoy adelante ya no
Ya no tengo miedo
Mañana te digo que el amor
Que el amor se ha ido”
(Lhasa de Sela – Para El Fin Del Mundo O El Año Nuevo)


Eu já tinha pulado as sete ondas. Calça dobrada até o meio da canela, salpicada de areia, a barra molhada, a camisa desabotoada. Estava exausto de fazer contagens regressivas e de receber de peito aberto e alma limpa um ano que fosse realmente cheio de todas aquelas coisas que mentalizava, enquanto tomava o banho de ervas, me vestia de branco dos pés à cabeça e me jogava no mar à meia noite. Já havia comido as sete uvas, as romãs e as lentilhas e guardado as sementes no bolso da calça. Já havia bebido a mistura de alecrim, alfazema, louro, sálvia, manjericão, frutas, cidra e mel, porque alguém disse que daria sorte também. Talvez não para o meu fígado. Se é verdade que tudo isso funciona eu nunca saberei, mas realizei esses rituais.

Em postura de lótus sentei-me na areia, voltado para o mar, quando finalmente findou a maratona que exige que sejamos espiritualizados, bem relacionados, felizes e desapegados, que perdoemos nossos inimigos e beijemos nossos algozes, além de desejarmos coisas boas, grandiloqüentes e positivas a todos, indistintamente. Desejos nos quais, bem lá no fundo, nem nós mesmos acreditamos. Cansei de sorrir e, quase entre lágrimas, rogar para que o novo ano fosse maravilhoso para quem cansou de ter esperanças, que fosse o melhor de todos para quem perdeu tudo, que fosse de sorte para quem nunca quis arriscar nada na vida, que fosse repleto de amor para quem jamais será capaz de reconhecê-lo quando encontrá-lo, que fosse de saúde para o moribundo crônico, de riqueza para o irremediavelmente miserável e de felicidade para o infeliz por escolha pessoal. Cansei de desejar “todas as coisas boas do mundo” para as pessoas que cruzavam meu caminho, como se fosse possível existir no mundo – e fora dele – disponibilidade suficiente do que desejei neurótica e exaustivamente aos quatro ventos nesses dias. Não que tenha sido inautêntico com as pessoas, foram desejos sinceros no momento. Só que sinceridade nem sempre anda de braços dados com a lógica. Não há felicidade para todo mundo, assim como não há recursos suficientes para tornar todos saudáveis, ricos, bem alimentados e bem amados. A realidade é triste: nem todos serão felizes. E mais, suspeito que talvez eu não seja um dos felizardos dessa loteria. Mas fico meio anestesiado nesta época, quando sou tomado de assalto por um sentimento de amor externo a mim. Inconsciente coletivo? Catarse coletiva! Alienação coletiva!

Restavam em mim uns poucos desejos e pensamentos positivos, depositados num ramo de rosas brancas embebidas em mel e perfume, ofertadas no mar à Iemanjá. Na hora não pensei muito no que estava fazendo. Era mais um dos rituais irrefletidos desta época caótica. Será que ela saberia que aquelas flores eram minhas? Será que deveria ter colocado um cartão com meu nome completo ou um “De: / Para: / Por favor, me atenda. Com carinho.”? Será que eu precisava ter jogado tudo aquilo no mar para ela saber o que eu desejava intimamente? Não bastaria ter uma conversa, à noite, deitado na cama, na hora das minhas orações? Dizem os entendidos no assunto que se a oferenda volta para a beira da praia logo depois de entregue é porque o orixá não aceitou. Tive medo. Joguei as rosas brancas no mar e saí sem olhar para trás. Não suportaria ser rejeitado. Mas depois pensei que a ressaca traria tudo de volta para a praia, invariavelmente. E amanhã de manhã haverá um monte de restos espalhados na contramão, atrapalhando o trânsito. Senti-me egoísta, porque pensava em agradar Iemanjá para que ela me concedesse o que desejo e nem me preocupei com a aquela velha onda direitista politicamente correta de preservação ambiental encharcada de culpa cristã. Iemanjá, me ajuda a ser menos egoísta e menos neurótico no próximo ano?

Pensei em  oferecer também uma garrafa de espumante junto com as flores. Mas achei que ela não diferenciaria champanhe de cidra ou que não faria diferença um ou outra. Ou ainda, que ela devia gostar mais de cidra, afinal era o que todo mundo oferecia. Então preferi sentar na areia, sozinho como sempre, olhando para o mar sem fim desta noite estrelada de ano novo, com minha única e suada garrafa de Moët & Chandon, oferecer alguns goles para Iemanjá e outros - mais generosos - para mim, no gargalo mesmo. Acho que ela me acompanhou naqueles breves momentos. E acho que ela esteve por lá, me observado e quem sabe me guardando.

Não sei se ela atendeu aos meus pedidos, porque não sei claramente o que pedi. Acho que fiz pedidos grandes, vagos. Não do tipo “acabe com a fome na África” e “traga a paz no mundo”, mas algo menos particular que especificidades das minhas próprias tristezas e asperezas. Porque me sinto meio ridículo pedindo coisas muito pequenas do tipo “me traga um amor, o emprego dos sonhos e me faça emagrecer dez quilos”. Não que eu não precise emagrecer, ter um emprego melhor e um amor ou que não queira ver o mundo em paz e as pessoas sem fome. Seja como for, na hora não sabia o que seria digno pedir porque não havia me programado para pedir nada. Só sabia que queria que fosse algo para mim e para todos. Ou se não para todos, pelo menos para alguns que são importantes na minha vida e de cujos rostos recordaria de pronto sem precisar pensar muito.

Sabe, acho que Iemanjá me atendeu. Por isso você chegou tão de repente. Foi ela quem lhe trouxe. Do mar, talvez. Eu podia ter pedido para que ela me trouxesse alguém ou que me trouxesse você de volta do passado ou do futuro. Mas acho que nem precisei pedir. E você veio, vestido de mar, trajado de branco, envolto em linho, nessa calça larga e nessa bata indiana de cambraia bordada, mostrando parte do peito nu, os cabelos ralos e dourados em desalinho, seus finos e brancos pés descalços molhados e quase desaparecidos na areia fofa, esse ar despretensioso, lento, altivo e levemente arrogante de quem sabe o que quer. E eu deixei você ficar, porque você chegou de mansinho, sentou ao meu lado, estendeu a mão pedindo um gole da minha Chandon e em troca me abraçou docemente. Você não disse nada, você nunca diz nada. E nem precisa dizer. Seus olhos tristes e sua pele cheirando a lavanda já me dizem tudo. Consigo ver seu passado todo através dos seus grandes, profundos e escuros olhos marejados e das marcas no seu rosto queimado de sol. Você pode permanecer calado porque eu sei quem você é e eu já lhe esperava, embora você seja uma projeção minha, a representação de todos os meus desejos mais secretos. Mesmo você não existindo de fato, porque eu criei você para este Ano Novo, você veio para me fazer companhia nesta noite vazia de mim. Então, façamos um brinde a tudo o que inicia a partir deste momento. Porque agora que você chegou, tenho certeza que Iemanjá aceitou minhas flores.