Luc B.: Calles de Buenos Aires, 2011.
Depois que você foi embora, a cidade virou um imenso cemitério. Está tudo do mesmo jeito, mas nunca mais nada será igual. Você era minha única referência afetiva neste lugar. Depois de ter você, para que servem as ruas? Protelei o quanto pude este momento. Mas hoje, depois de ficar um tempo impossível de ser contado deitado inerte sobre o tapete que tantas vezes foi nossa cama, neste quarto que tantas vezes foi nosso reino, olhando para o teto que tantas vezes nos protegeu do mundo exterior, resolvi remexer nos baús de nossas memórias. Precisava organizar minhas lembranças, colocar para fora o que estava me atrapalhando de continuar meu caminho e você de continuar o seu. Onde quer que você esteja, espero que seu caminho seja doce, seja bonito, seja iluminado. Assim como tenho tentado tornar iluminados os meus dias sem você. Mesmo tropeçando, mesmo indo por caminhos escuros ou pedindo ajuda para as pessoas erradas, mesmo fingindo que você está aqui e que poderá voltar para me salvar.
Peguei mais uma taça de vinho, meu companheiro depois que você se foi, sentei-me no chão e comecei o doloroso trabalho de deixar você partir definitivamente, embora eu saiba que você nunca sairá de dentro mim. Sempre restará seu cheiro no meu travesseiro, seus carinhos na minha pele e seu abraço envolvendo minha cintura, um pijama esquecido no armário, a escova de dente escondida dos olhos no fundo do armário, um pé de meia solitário, abandonado e inútil num canto da gaveta, a aliança que usávamos guardada no fundo da carteira, uma fotografia em um canto qualquer, físico ou virtual. Engraçado como a gente esquece determinadas coisas. Acho que deixei rastros seus por todos os lugares, como migalhas para que eu não me perdesse pelo caminho.
Deixei sinais seus espalhados pela casa para que não me perdesse de mim. Guardei um sem-número de coisas nossas, pequenas, aparentemente insignificantes. Encontrei o último cartão que tinha para você. Eu deveria tê-lo entregue na última vez em que nos encontramos, alguns dias antes de você desaparecer. O cartão deveria acompanhar o presente que lhe entreguei. Ele estava em branco e eu sem vontade de escrever. Então, não lhe entreguei o cartão, só o presente. Lembro que ainda comentei, em tom irônico, que daquela vez não haveria cartão, que não tinha escrito nada porque não tinha nada a dizer. Ele ficou esquecido numa gaveta, em branco.
Hoje o cartão é a representação de tudo que não tive tempo de lhe dizer. E queria dizer tanto! Lembro que nessa oportunidade você me deu uma imagem de Buda esculpida em madeira, que hoje ela enfeita minha sala. Para cada lugar que olho aqui tem algo que me lembra você e a vida breve e intensa que tivemos. Minha casa, a casa sem jardim que um dia eu quis que fosse nossa, tornou-se uma espécie de templo de nós dois. Uma das inúmeras marcas indeléveis que você me deixou. Não sei o que foi feito das memórias que você tem (ou tinha) de nós. Mas acho que a vida, o destino e essas forças externas tão fortes que levaram você daqui, trataram de apagar minhas memórias em você. Mas não importam essas coisas. O que importa é que dentro de mim você ficou.
Hoje é o dia em que relembro sua chegada, neste mundo e em minha vida. Há alguns dias atrás relembrei o dia de sua partida deste lugar, não da minha vida. Daqui a alguns dias será o dia em que eu cheguei, neste lugar e em sua vida. Em um breve intervalo de tempo minha vida será revisitada a partir dessas lembranças. É estranho como o tempo existe dentro de mim. Você se foi e depois chegou. E eu cheguei depois de você ter partido. E no então, estamos todos aqui o tempo todo. Chegadas, partidas, ausências e permanências são partes de um mesmo todo cíclico e complementar. É mágico, não? A vida é mágica e interessante.
Encaixotando imensas recordações impressas em pequenos mimos que trocamos, encontrei um livro de Fernando Pessoa que lhe dei. Entre as páginas havia um bilhete com a minha caligrafia, dedicado a você. Nele transcrevi o trecho: “[...] de tão interessante que é a todos os momentos, / A vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger, / A dar vontade de dar gritos, de dar pulos, de ficar no chão, de sair / Para fora de todas as casas, de todas as lógicas e de todas as sacadas, / E ir ser selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos.” Esse bilhete foi escrito num bloco de notas qualquer, na mesa da cafeteria onde nos encontrávamos, enquanto esperava você chegar, acompanhado por um café forte e sem açúcar. Nas semanas seguintes, você recostava sua cabeça dourada no meu colo e deitava seus olhos amendoados nas páginas do livro, enquanto recitava trechos para mim, com sua voz mansa e profunda, quase em falsete, entre goles de conhaque e acordes de Coltrane.
Ecoa agora pelo quarto a música Los Paraguas de Buenos Aires. Anja Stöhr, que você adorava, inunda minha alma: “Y cruza lluvias de hace mucho tiempo: / la que al final mojó tu cara triste, / la que alegró el primer abrazo nuestro, / la que llovió sin conocernos, antes.” Em uma caixa de madeira que você me presenteou com trufas, encontrei dois cartões do metrô de Buenos Aires que utilizamos. E olha a grande coincidência: no verso, o bilhete está datado de um ano atrás, exatamente no dia em que nos conhecemos. Junto com eles, fotos que você tirou de mim e outras que eu tirei de você pelas ruas da capital porteña, flagrantes de quando você não estava prestando atenção. Não chovia naquele dia em Buenos Aires e sua cara era de felicidade. “Na fotografia estamos felizes”, diria Chico.
Assim como você, carrego um pequeno retrato seu na carteira. Um recorte de um desses momentos especialmente mágicos que a vida nos presenteia vez ou outra. Tínhamos apenas o pacto de vivermos intensamente o amor enquanto fosse possível. E cumprimos. Por isso quero dizer a você (e sei que você poderá receber meu recado) que continuo cumprindo o que combinamos. Ainda tento sorrir, busco migalhas de alegrias fugazes e cotidianas, tento amar intensamente até o fim. Mesmo não sabendo para onde estou indo, eu vou até o fim. Ainda quero ver o brilho nos olhos das pessoas, como vi nos seus doces e tristes olhos amendoados, sentir meu coração batendo forte, sentir-me vivo. Assim manterei você vivo dentro de mim. Assim cumprirei para sempre nosso pacto de amor humano, intenso e finito.