Lucian Freud: Rose 1990 Oil on canvas 50.2 x 61 cm 19¾ x 24"
[Para ler ao som de Nancy Sinatra: "Bang Bang"]
"Sempre haverá momentos em que duvidaremos se nossos amados existem na realidade como os imaginamos em nossas mentes - ou se não são apenas uma alucinação que inventamos para impedir o inevitável colapso sem amor."
Bang! Bang! He shot me down. Bang! Bang! I hit the ground. Alguém batia à porta. Isso causou nele um estranhamento desconfortável. Há tempos ninguém chegava tão perto do batente de sua porta. E ele havia desaprendido a reagir a essas situações inusitadas, como receber visitas inesperadas ou ter alguém sentado em seu sofá, recostado em suas almofadas. Não sabia ao certo quem estava batendo. Em seu coração, porém, aquela série de socos secos de punhos cerrados contra a madeira da pesada porta de imbuia de duas folhas, ornada de arabescos pintados de preto, reverberavam como ecos no vazio de seu peito árido. Na vitrola antiga a voz de Nancy Sinatra rasgou o ar, derradeira e melancólica: “Bang bang, my baby shot me down...”
O chiado característico do vinil cessou. Ele atravessou o corredor até o hall sem fazer ranger o assoalho de tábuas velhas. Sentiu a presença vagamente conhecida do lado de fora. Era capaz de ouvir o som familiar daquela respiração pesada, da mesma forma que conseguia ouvir as batidas do seu próprio coração reverberando nas paredes do sobrado impregnadas de memórias. Um cheiro de sabonete de lavanda, que não sabia se vinha do seu próprio corpo ou do outro lado da porta, exalava por todos os cantos, trazendo-lhe uma sensação de lar há muito perdida. Em pé, inerte e em silêncio, pensava nos motivos que a vida, o destino ou Deus teriam para colocá-lo naquela situação outra vez. Por que bateriam à porta novamente? Ergueu a mão. Hesitou, porém, e não conseguiu levá-la à maçaneta de bronze.
Chaves e trancas há muito não faziam parte de sua vida. Apenas havia dado as costas para a porta entreaberta, sem trancá-la, porque não queria ver aquele ser, em quem depositou suas melhores esperanças e lembranças de amor, ir embora para sempre sem que pudesse evitar. Sabia, em seu íntimo, que poderia ter feito algo. Poderia ter chorado, gritado, se jogado no chão aos prantos e pedido para que ficasse, sem carinhos, sem cobertas, no tapete atrás da porta. Poderia ter pedido para que o outro mudasse de ideia, mesmo sabendo que seria em vão. Mas não fez. E jamais faria porque é orgulhoso. Engoliu seu pranto, sufocou a mágoa e canalizou sua dor em lides cotidianas. Ele não se permitiria chorar na frente de alguém, demonstrar fraquezas ou transparecer necessidades. Mesmo sendo necessidades tão intensas e vitais quanto essas.
Já eram suas velhas conhecidas as dores da vida que havia escolhido. Não tinha remorso, não carregava arrependimentos. Tinha a consciência que amor era projeção e que tudo na vida era ilusão, em última instância. Mas sempre havia uma fagulha de luz, lá no fundo. Um sopro de lucidez que o trazia à tona dessa deliciosa nuvem que era o amor. Mas se ele fosse perguntado se preferia viver a realidade ou uma grande ilusão de amor, mesmo que consciente, sempre escolheria o que o amor proporcionava. Sentia plenamente que não importava onde pudesse chegar, desde que o amor fosse o caminho. Precisava manter uma certa "fé precária na espécie" como disse um certo escritor em uma passagem de um livro qualquer que chegou às suas mãos por acaso. E essa fé na espécie era amor. Tinha uma necessidade imensa de acreditar nas ilusões da vida para ultrapassá-las sentir-se vivo.
Vivo e aconchegado. “Amar é recostar-se em almofadas”, dizia em momentos de emoção de bourbon. Para ele, elas eram sinônimo de carinho, de afeto, de aconchego. O amor era, em si, uma almofada, em sua ingênua e romântica concepção. Tinha consciência que essas almofadas, com as quais se cercava e se protegia, eram quimeras. Sabia que se apaixonava pela necessidade que tinha de descansar suas costas doloridas das sovas que a vida lhe dava. E isso ara puro desejo. Amava, portanto, o amor que sentia. Ou mais: amava a possibilidade do amor que podia vir a sentir. Narcisismo, alguns podiam julgar. Ficava pensando nos motivos pelos quais suas relações não davam certo, porque as pessoas se desencontravam antes de se descobrirem. Talvez fosse porque elas não necessitavam amar o amor. Então, aquela pessoa que estava ali, talvez amando, não era o correspondente desse sentimento anterior a ela. Uma delas, pelo menos, não necessitava dessa almofada.
A porta estava destrancada e aquele que chegara sabia disso. O caminho, depois de transposto o obstáculo de negros arabescos, era conhecido e ambos sabiam o que deviam fazer. Num misto de medo e desamparo, porém, ele retornou ao interior do sobrado. Na sala, espanou e afofou freneticamente as almofadas indianas coloridas, sacudiu as pesadas mantas artesanais dos sofás, posicionou melhor sua bergére de veludo verde musgo em direção à luz que entrava pela janela. Rapidamente tirou as cinzas de incensos da pequena mesa nacarada de centro, arrumou as imagens de Shiva, Buda e Nossa Senhora, acendeu uma vela aromática e um incenso, deixando o ambiente pronto para receber quem chegava ou simplesmente para realizar uma ação habitual qualquer, a fim de desviar a atenção dos rumores cada vez mais intensos e incontroláveis que ecoavam dentro de si.
Mais três socos secos ecoaram pela casa, vindos da porta. “É o amor outra vez, veio sem me avisar”, soprou Bethânia em seu ouvido. Seu coração disparou. Não sabia o que fazer. Foi para a cozinha. Encheu de água a chaleira de cobre e colocou-a no fogo. Do armário pegou um vidro com chá de hibiscos e outro com lascas de gengibre desidratados. Em uma bandeja arrumou com esmero duas xícaras de porcelana ornadas com delicadas gueixas e uma tigela com damascos desidratados e amêndoas. No bule, decorado com os mesmos motivos das xícaras, colocou porções das pétalas de hibiscos e de gengibre.
Os sons vindos da porta cessaram. Por breves instantes foi possível ouvir o tempo ruindo através das paredes caiadas. O silêncio da casa foi cortado pelo apito da água fervendo na chaleira. De costas para a porta que dava acesso ao hall de entrada, observava as flores que explodiam em cores no jardim interno do sobrado, emolduradas pela janela cinza da cozinha. Desligou o fogo e despejou a água fervente no bule. Então, um súbito arrepio frio percorreu-lhe a espinha partindo da nuca, seguido por um calor que se irradiou por todo o corpo, do plexo solar até as extremidades. A cozinha foi invadida pelo cheiro adocicado de lavanda misturado ao de hibiscos do chá recém preparado. E sentiu-se, finalmente, abraçado e aconchegado pelas almofadas que lhe eram tão caras. “Remember when we used to play? Bang Bang, I shot you down.”
(Alain De Botton)
Bang! Bang! He shot me down. Bang! Bang! I hit the ground. Alguém batia à porta. Isso causou nele um estranhamento desconfortável. Há tempos ninguém chegava tão perto do batente de sua porta. E ele havia desaprendido a reagir a essas situações inusitadas, como receber visitas inesperadas ou ter alguém sentado em seu sofá, recostado em suas almofadas. Não sabia ao certo quem estava batendo. Em seu coração, porém, aquela série de socos secos de punhos cerrados contra a madeira da pesada porta de imbuia de duas folhas, ornada de arabescos pintados de preto, reverberavam como ecos no vazio de seu peito árido. Na vitrola antiga a voz de Nancy Sinatra rasgou o ar, derradeira e melancólica: “Bang bang, my baby shot me down...”
O chiado característico do vinil cessou. Ele atravessou o corredor até o hall sem fazer ranger o assoalho de tábuas velhas. Sentiu a presença vagamente conhecida do lado de fora. Era capaz de ouvir o som familiar daquela respiração pesada, da mesma forma que conseguia ouvir as batidas do seu próprio coração reverberando nas paredes do sobrado impregnadas de memórias. Um cheiro de sabonete de lavanda, que não sabia se vinha do seu próprio corpo ou do outro lado da porta, exalava por todos os cantos, trazendo-lhe uma sensação de lar há muito perdida. Em pé, inerte e em silêncio, pensava nos motivos que a vida, o destino ou Deus teriam para colocá-lo naquela situação outra vez. Por que bateriam à porta novamente? Ergueu a mão. Hesitou, porém, e não conseguiu levá-la à maçaneta de bronze.
Chaves e trancas há muito não faziam parte de sua vida. Apenas havia dado as costas para a porta entreaberta, sem trancá-la, porque não queria ver aquele ser, em quem depositou suas melhores esperanças e lembranças de amor, ir embora para sempre sem que pudesse evitar. Sabia, em seu íntimo, que poderia ter feito algo. Poderia ter chorado, gritado, se jogado no chão aos prantos e pedido para que ficasse, sem carinhos, sem cobertas, no tapete atrás da porta. Poderia ter pedido para que o outro mudasse de ideia, mesmo sabendo que seria em vão. Mas não fez. E jamais faria porque é orgulhoso. Engoliu seu pranto, sufocou a mágoa e canalizou sua dor em lides cotidianas. Ele não se permitiria chorar na frente de alguém, demonstrar fraquezas ou transparecer necessidades. Mesmo sendo necessidades tão intensas e vitais quanto essas.
Já eram suas velhas conhecidas as dores da vida que havia escolhido. Não tinha remorso, não carregava arrependimentos. Tinha a consciência que amor era projeção e que tudo na vida era ilusão, em última instância. Mas sempre havia uma fagulha de luz, lá no fundo. Um sopro de lucidez que o trazia à tona dessa deliciosa nuvem que era o amor. Mas se ele fosse perguntado se preferia viver a realidade ou uma grande ilusão de amor, mesmo que consciente, sempre escolheria o que o amor proporcionava. Sentia plenamente que não importava onde pudesse chegar, desde que o amor fosse o caminho. Precisava manter uma certa "fé precária na espécie" como disse um certo escritor em uma passagem de um livro qualquer que chegou às suas mãos por acaso. E essa fé na espécie era amor. Tinha uma necessidade imensa de acreditar nas ilusões da vida para ultrapassá-las sentir-se vivo.
Vivo e aconchegado. “Amar é recostar-se em almofadas”, dizia em momentos de emoção de bourbon. Para ele, elas eram sinônimo de carinho, de afeto, de aconchego. O amor era, em si, uma almofada, em sua ingênua e romântica concepção. Tinha consciência que essas almofadas, com as quais se cercava e se protegia, eram quimeras. Sabia que se apaixonava pela necessidade que tinha de descansar suas costas doloridas das sovas que a vida lhe dava. E isso ara puro desejo. Amava, portanto, o amor que sentia. Ou mais: amava a possibilidade do amor que podia vir a sentir. Narcisismo, alguns podiam julgar. Ficava pensando nos motivos pelos quais suas relações não davam certo, porque as pessoas se desencontravam antes de se descobrirem. Talvez fosse porque elas não necessitavam amar o amor. Então, aquela pessoa que estava ali, talvez amando, não era o correspondente desse sentimento anterior a ela. Uma delas, pelo menos, não necessitava dessa almofada.
A porta estava destrancada e aquele que chegara sabia disso. O caminho, depois de transposto o obstáculo de negros arabescos, era conhecido e ambos sabiam o que deviam fazer. Num misto de medo e desamparo, porém, ele retornou ao interior do sobrado. Na sala, espanou e afofou freneticamente as almofadas indianas coloridas, sacudiu as pesadas mantas artesanais dos sofás, posicionou melhor sua bergére de veludo verde musgo em direção à luz que entrava pela janela. Rapidamente tirou as cinzas de incensos da pequena mesa nacarada de centro, arrumou as imagens de Shiva, Buda e Nossa Senhora, acendeu uma vela aromática e um incenso, deixando o ambiente pronto para receber quem chegava ou simplesmente para realizar uma ação habitual qualquer, a fim de desviar a atenção dos rumores cada vez mais intensos e incontroláveis que ecoavam dentro de si.
Mais três socos secos ecoaram pela casa, vindos da porta. “É o amor outra vez, veio sem me avisar”, soprou Bethânia em seu ouvido. Seu coração disparou. Não sabia o que fazer. Foi para a cozinha. Encheu de água a chaleira de cobre e colocou-a no fogo. Do armário pegou um vidro com chá de hibiscos e outro com lascas de gengibre desidratados. Em uma bandeja arrumou com esmero duas xícaras de porcelana ornadas com delicadas gueixas e uma tigela com damascos desidratados e amêndoas. No bule, decorado com os mesmos motivos das xícaras, colocou porções das pétalas de hibiscos e de gengibre.
Os sons vindos da porta cessaram. Por breves instantes foi possível ouvir o tempo ruindo através das paredes caiadas. O silêncio da casa foi cortado pelo apito da água fervendo na chaleira. De costas para a porta que dava acesso ao hall de entrada, observava as flores que explodiam em cores no jardim interno do sobrado, emolduradas pela janela cinza da cozinha. Desligou o fogo e despejou a água fervente no bule. Então, um súbito arrepio frio percorreu-lhe a espinha partindo da nuca, seguido por um calor que se irradiou por todo o corpo, do plexo solar até as extremidades. A cozinha foi invadida pelo cheiro adocicado de lavanda misturado ao de hibiscos do chá recém preparado. E sentiu-se, finalmente, abraçado e aconchegado pelas almofadas que lhe eram tão caras. “Remember when we used to play? Bang Bang, I shot you down.”
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