sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

ALEGORIA DE ANO NOVO

Katshusika Hokusai.  The Wave.  c. 1830.

“Llegaras mañana
Para el fin del mundo
O el año nuevo
Mañana te mato
Mañana te libro
Estoy adelante ya no
Ya no tengo miedo
Mañana te digo que el amor
Que el amor se ha ido”
(Lhasa de Sela – Para El Fin Del Mundo O El Año Nuevo)


Eu já tinha pulado as sete ondas. Calça dobrada até o meio da canela, salpicada de areia, a barra molhada, a camisa desabotoada. Estava exausto de fazer contagens regressivas e de receber de peito aberto e alma limpa um ano que fosse realmente cheio de todas aquelas coisas que mentalizava, enquanto tomava o banho de ervas, me vestia de branco dos pés à cabeça e me jogava no mar à meia noite. Já havia comido as sete uvas, as romãs e as lentilhas e guardado as sementes no bolso da calça. Já havia bebido a mistura de alecrim, alfazema, louro, sálvia, manjericão, frutas, cidra e mel, porque alguém disse que daria sorte também. Talvez não para o meu fígado. Se é verdade que tudo isso funciona eu nunca saberei, mas realizei esses rituais.

Em postura de lótus sentei-me na areia, voltado para o mar, quando finalmente findou a maratona que exige que sejamos espiritualizados, bem relacionados, felizes e desapegados, que perdoemos nossos inimigos e beijemos nossos algozes, além de desejarmos coisas boas, grandiloqüentes e positivas a todos, indistintamente. Desejos nos quais, bem lá no fundo, nem nós mesmos acreditamos. Cansei de sorrir e, quase entre lágrimas, rogar para que o novo ano fosse maravilhoso para quem cansou de ter esperanças, que fosse o melhor de todos para quem perdeu tudo, que fosse de sorte para quem nunca quis arriscar nada na vida, que fosse repleto de amor para quem jamais será capaz de reconhecê-lo quando encontrá-lo, que fosse de saúde para o moribundo crônico, de riqueza para o irremediavelmente miserável e de felicidade para o infeliz por escolha pessoal. Cansei de desejar “todas as coisas boas do mundo” para as pessoas que cruzavam meu caminho, como se fosse possível existir no mundo – e fora dele – disponibilidade suficiente do que desejei neurótica e exaustivamente aos quatro ventos nesses dias. Não que tenha sido inautêntico com as pessoas, foram desejos sinceros no momento. Só que sinceridade nem sempre anda de braços dados com a lógica. Não há felicidade para todo mundo, assim como não há recursos suficientes para tornar todos saudáveis, ricos, bem alimentados e bem amados. A realidade é triste: nem todos serão felizes. E mais, suspeito que talvez eu não seja um dos felizardos dessa loteria. Mas fico meio anestesiado nesta época, quando sou tomado de assalto por um sentimento de amor externo a mim. Inconsciente coletivo? Catarse coletiva! Alienação coletiva!

Restavam em mim uns poucos desejos e pensamentos positivos, depositados num ramo de rosas brancas embebidas em mel e perfume, ofertadas no mar à Iemanjá. Na hora não pensei muito no que estava fazendo. Era mais um dos rituais irrefletidos desta época caótica. Será que ela saberia que aquelas flores eram minhas? Será que deveria ter colocado um cartão com meu nome completo ou um “De: / Para: / Por favor, me atenda. Com carinho.”? Será que eu precisava ter jogado tudo aquilo no mar para ela saber o que eu desejava intimamente? Não bastaria ter uma conversa, à noite, deitado na cama, na hora das minhas orações? Dizem os entendidos no assunto que se a oferenda volta para a beira da praia logo depois de entregue é porque o orixá não aceitou. Tive medo. Joguei as rosas brancas no mar e saí sem olhar para trás. Não suportaria ser rejeitado. Mas depois pensei que a ressaca traria tudo de volta para a praia, invariavelmente. E amanhã de manhã haverá um monte de restos espalhados na contramão, atrapalhando o trânsito. Senti-me egoísta, porque pensava em agradar Iemanjá para que ela me concedesse o que desejo e nem me preocupei com a aquela velha onda direitista politicamente correta de preservação ambiental encharcada de culpa cristã. Iemanjá, me ajuda a ser menos egoísta e menos neurótico no próximo ano?

Pensei em  oferecer também uma garrafa de espumante junto com as flores. Mas achei que ela não diferenciaria champanhe de cidra ou que não faria diferença um ou outra. Ou ainda, que ela devia gostar mais de cidra, afinal era o que todo mundo oferecia. Então preferi sentar na areia, sozinho como sempre, olhando para o mar sem fim desta noite estrelada de ano novo, com minha única e suada garrafa de Moët & Chandon, oferecer alguns goles para Iemanjá e outros - mais generosos - para mim, no gargalo mesmo. Acho que ela me acompanhou naqueles breves momentos. E acho que ela esteve por lá, me observado e quem sabe me guardando.

Não sei se ela atendeu aos meus pedidos, porque não sei claramente o que pedi. Acho que fiz pedidos grandes, vagos. Não do tipo “acabe com a fome na África” e “traga a paz no mundo”, mas algo menos particular que especificidades das minhas próprias tristezas e asperezas. Porque me sinto meio ridículo pedindo coisas muito pequenas do tipo “me traga um amor, o emprego dos sonhos e me faça emagrecer dez quilos”. Não que eu não precise emagrecer, ter um emprego melhor e um amor ou que não queira ver o mundo em paz e as pessoas sem fome. Seja como for, na hora não sabia o que seria digno pedir porque não havia me programado para pedir nada. Só sabia que queria que fosse algo para mim e para todos. Ou se não para todos, pelo menos para alguns que são importantes na minha vida e de cujos rostos recordaria de pronto sem precisar pensar muito.

Sabe, acho que Iemanjá me atendeu. Por isso você chegou tão de repente. Foi ela quem lhe trouxe. Do mar, talvez. Eu podia ter pedido para que ela me trouxesse alguém ou que me trouxesse você de volta do passado ou do futuro. Mas acho que nem precisei pedir. E você veio, vestido de mar, trajado de branco, envolto em linho, nessa calça larga e nessa bata indiana de cambraia bordada, mostrando parte do peito nu, os cabelos ralos e dourados em desalinho, seus finos e brancos pés descalços molhados e quase desaparecidos na areia fofa, esse ar despretensioso, lento, altivo e levemente arrogante de quem sabe o que quer. E eu deixei você ficar, porque você chegou de mansinho, sentou ao meu lado, estendeu a mão pedindo um gole da minha Chandon e em troca me abraçou docemente. Você não disse nada, você nunca diz nada. E nem precisa dizer. Seus olhos tristes e sua pele cheirando a lavanda já me dizem tudo. Consigo ver seu passado todo através dos seus grandes, profundos e escuros olhos marejados e das marcas no seu rosto queimado de sol. Você pode permanecer calado porque eu sei quem você é e eu já lhe esperava, embora você seja uma projeção minha, a representação de todos os meus desejos mais secretos. Mesmo você não existindo de fato, porque eu criei você para este Ano Novo, você veio para me fazer companhia nesta noite vazia de mim. Então, façamos um brinde a tudo o que inicia a partir deste momento. Porque agora que você chegou, tenho certeza que Iemanjá aceitou minhas flores.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Diga o que pensa...