“Den Döende Dandyn” – (The Dying Dandy): Nils Von Dardel, 1918 [*]
“Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...”
(“Aniversário” - Fernando Pessoa (Álvaro de Campos))
[Para ler ao som de Bon Anniversaire
– Charles Aznavour]
Dei uma última olhada no espelho bisotê emoldurado em ferro fundido com motivos florais em estilo rococó sobre o aparador antigo de mármore. Ainda tenho a mania de esperar que milagres aconteçam no caminho do quarto até a sala e que minha aparência milagrosamente melhore no exato instante em que certifico o feito no espelho do corredor. Não aconteceu, obviamente. Suspirei para buscar fôlego e continuar andando, arrumei uns fios rebeldes do cabelo que caíram sobre a testa já lustrosa devido ao nervosismo habitual da situação. Passei as mãos na lapela do casaco branco para retirar possíveis fios de cabelo, também brancos, caídos de minha cabeça cada vez mais calva. Vesti o sorriso mais forçado e adentrei a sala.
Todos esperavam por mim. Aplausos e abraços, risos altos e beijos estalados. Detesto esses contatos físicos próximos, principalmente quando penso que envolvem centenas de milhares de perdigotos jogados em minhas faces no final. Cumpri à risca o protocolo, que envolvia dizer a idade que estava completando e ouvir sorridente que “nem parece”, quando na verdade parecia, que eu estou “super bem para a idade...”, quando na verdade todos sabíamos que não estava, ouvir atento e interessado receitas para finalmente encontrar um bom casamento, já que a vida toda fui solitário e é inconcebível sê-lo por escolha pessoal na idade que tinha atingido, parar de fumar, porque “existem cinco minutos presos em cada cigarro”, parar de beber - porque prazeres hedonistas não são sóbrios - e de dormir até muito tarde em dias ensolarados de primavera, “porque o sol faz bem pros ossos, ainda mais depois de certa idade”, praticar exercícios e ter uma alimentação saudável. Enfim, eu deveria deixar de ser eu mesmo. Não existe coisa mais pedante que pessoas politicamente corretas. Sim, existe. São insuportavelmente pedantes as pessoas politicamente corretas que tem intimidade conosco e acham-se no direito de intervirem em nossos hábitos autodestrutivos. Agora que havia entrado nessa “nova era” dos quarenta anos deveria casar, ter filhos, uma casa com varanda e quintal, poupança, plano de aposentadoria, uma vida sem vícios. Resumidamente, queriam que eu trocasse de jaula. Uma nova prisão para um dândi de meia idade. Uma prisão mais digna do status que eu deveria ter com a idade que me alcançou, a idade da razão, que nem sei se algum dia terei.
Aturdido, peguei uma taça de vinho branco e fui para um canto do salão. É reconfortante sentir todas as papilas serem inundadas pelas notas delicadas de um doce néctar de boa safra. Fechei os olhos e tentei me imaginar longe dali. Não funcionou. Ouvi gritarem meu nome. Acordei do breve transe nos braços de Dionísio. A realidade é pior que o sonho, sempre. Levantei-me e tentei parecer feliz. Caminhei em direção à grande mesa onde estava disposto um bolo com meu nome escrito com glacê. As pessoas não se cansam de serem cafonas com os outros e de expô-los a situações vexatórias?
A hora do “parabéns pra você” é a pior desde que tenho três anos de idade. Tortura medieval seria menos dolorosa. Neste ano, como se não bastasse, eles aprenderam a cantar Parabéns em todas as línguas de todos os países por onde andei ao longo de alguns anos, na tentativa desesperada e frustrada de fugir de todos aqueles que naquele momento rendiam-me homenagens. Começaram a cantar em minha língua materna e terminaram gritando, “en choeur”: “JOYEUX ANNIVERSAIRE”.
Enchi os pulmões de ar, inclinei meu corpo para frente e expeli o ar vigorosamente pela boca, cuidando para fechar os olhos como se estivesse fazendo um pedido especial (que evidentemente não fiz porque meu único desejo, o de sumir dali, não seria realizado no momento em que precisava). Pronto. Apaguei as dezenas de velas brancas pequenas dispostas sobre o bolo de chocolate confeitado. Alguém entusiasmado disse que ele era feito de ganache de chocolate meio amargo, morangos e uma crosta de amêndoas caramelizadas. “Ma-ra-vi-lha!”, eu disse, com forte entonação na separação silábica. A vontade que tinha, porém, era de dizer que sempre achei o cúmulo do lugar comum à combinação de morangos e chocolate. Não consegui contar as velas, mas provavelmente o vexame completo era que elas representavam cada uma um ano da minha vida. Precisava esfregar a realidade na minha cara e fotografar para registrar para a posteridade a minha ruína?
Eu via como um estrangeiro aquela agitação alusiva ao dia em que eu fazia anos. Não era para mim, não era comigo, não era eu. Ali havia um duplo de mim, oco e sem essência. Uma carapaça sorridente e compassiva atrás da qual o “Verdadeiro Eu” se escondia para satisfazer as necessidades alheias. Queria sentar no alto do morro mais alto, de onde podia ver todas as luzes deste povoado medieval parado no tempo acenderem, até as mais distantes, enquanto bebia meu Bourbon de qualidade duvidosa e fumava um cigarro marroquino de cravo. A vontade que sentia naquela hora, sabendo que era realmente amado por todos aqueles que festejavam a minha existência, era de dizer: “Certo, já sei que vocês me amam, agora preciso sair e ficar sozinho. Bebam e comam por mim. Somos todos bacantes!” Mas tenho crises atrozes de comiseração cristã. Eu jamais feriria essas pessoas com meu egoísmo.
Há anos vim parar aqui nestas longínquas e isoladas tierras de España. Nem sei bem o porquê. Só queria fugir. Não consegui. Carrego, marcada na alma, a cidadela na fronteira com o Uruguai que deixei, carrego no peito os amores que deixei, carrego na pele as cicatrizes das lutas contra o Rei. E cercado de pessoas que supunha me amarem, felizes por terem preparado uma festa especialmente para mim, mesmo eu sabendo que não merecia tamanha honraria, tal como um bolo ostentando velas na quantidade dos meus anos, um prato generoso de pisto, tortillas variadas, tapas finamente adornadas e uma sangria forte, sentia claramente que eu era uma fraude.
Ofereceram-me mais um copo de sangria, porque tinham certeza que eu adoro - mas detesto profundamente e não diria jamais porque não tenho coragem de ser sincero e correr o risco de ser rejeitado. Minha necessidade de ser amado é maior que minha necessidade de dizer o que realmente penso. E por mais que fosse opressiva essa situação que via com distanciamento e estranhamento, pior seria se estivesse sozinho em casa com meu gato, sentados à mesa comendo comida enlatada fria ou então passando horas preparando um jantar sofisticado, composto por entrada, prato principal e sobremesa, harmonizado com bom vinho tinto, somente para mim.
É uma tradição familiar que conservo desde a mais tenra infância a de transmitir afeto através da culinária. Todos em minha família costumavam abrir as portas de suas casas e receber as pessoas calorosamente com jantares ou almoços longos e fartos, impecavelmente apresentados e com cardápio invejável. Os prazeres sensoriais da boa mesa sempre foram nossa moeda de barganha. Eu não teria me tornado chef de cozinha profissional se não tivesse esse desejo de seduzir meus convivas com a alquimia exerço na cozinha. Além disso, é a única forma autêntica que conheço de demonstrar afeto. O resto é um grande espetáculo artificial. Mesmo sem refletirem muito sobre isso, todos em minha casa materna sabiam que não existia forma mais fácil e eficaz de dar e receber carinho que através da boa mesa e que não existiria, numa família emocionalmente desestruturada, outros momentos de comunhão – embora interessada – além dos proporcionados ao redor da mesa de refeições, onde cores, sabores e cheiros traziam à mente aconchegos longínquos ou recriavam carícias inexistentes.
Cordato, sentei-me à cabeceira da grande mesa cuidadosamente posta, como gosto e como costumo fazer quando recebo os que me são caros. A toalha alva de cambraia bordada com arabescos pendia graciosamente nas laterais da mesa, os guardanapos de linho estavam milimetricamente dobrados e presos por anéis de alpaca polidos à exaustão e pousados do lado esquerdo dos pratos de delicada porcelana branca, as taças de água, vinho branco e vinho tinto eram de cristal alemão à direita, e os talheres de prata estavam irretocavelmente lustrados e perfeitamente dispostos. Irrepreensível. Todos se acomodaram em seus lugares ao redor da mesa, aparentemente eufóricos com o momento que supus ser o ponto alto da noite. Então, ouvi uma agitação maior. Aumentando gradativamente, surgiram palmas, sapateados, castanholas e uma guitarra soando de forma envolvente. E pelas minhas costas surgiu um carrinho trazendo um opulento jantar típico da minha terra de origem, preparado especialmente por um dos meus queridos ali presente. As baixelas de prata traziam toda sorte de cortes bovinos, ovinos e suínos, assados em brasas, vísceras que eu sequer seria capaz de identificar, carnes gordas e mal passadas. Uma refeição típica de bárbaros mongóis (ou latinos). O grupo musical, composto por homens alinhados em ternos negros e dançarinas exuberantes com vestidos de renda carmim, cercou a mesa. Todos acompanharam o ritmo da música com danças e palmas, enquanto os pratos eram cuidadosamente colocados em frente aos comensais, como se fosse uma oferenda aos deuses. Fiquei lisonjeado com o carinho e com a singeleza profunda do ato, embora abomine veementemente todos aqueles pratos. O cheiro da comida e a música tomaram conta de todo o ambiente e me deixaram mareado. Disfarcei e recobrei as forças com um gole d’água. Bati palmas, sorri e agradeci por tudo aquilo que estava sendo feito por mim. Intimamente, no entanto, eu estava completamente desolado com todo aquele circo.
Serviram-me sem parcimônia alguma, ao melhor estilo latino no qual estávamos todos imersos. Remexendo a comida no prato com a ponta da faca pensava: Que pedaços são esses sangrentos e gordurosos no meu prato? Eram as vísceras de um boi, imaginei. Engoli seco. O que é isto? Frango? Ah, não, é o coelho da paella valenciana. Salivei, nauseado. Separei todos os pedaços de carne e tentei comer o restante do que me foi servido. Alternadamente bebia generosos goles de vinho ou água para conseguir deglutir a comida. Esta foi a maior das torturas já realizadas naquele vilarejo, desde sua fundação, em meados do século XVI. Não tive coragem de dizer a eles que eu sou vegetariano macrobiótico há anos, temendo estupefação geral e desprezo indistinto. Da mesma forma que jamais diria àquele grupo de católicos fervorosos, que fez uma oração em um dialeto basco em frente aos pratos servidos, que sou muçulmano e que havia me convertido já em idade adulta, porque tive uma louca paixão por um iraniano, cujo nome e rosto deliberadamente desapareceram da minha mente no dia em que ele resolveu explodir a si mesmo e à embaixada do meu país em Jerusalém, cidade onde vivíamos. Meu amor literalmente explodiu, mas minhas crenças permaneceram. Frágeis, mas existentes.
Consegui, na profusão de pratos, taças e talheres, me livrar de toda carne servida a mim sem chamar atenção. Continuei sorrindo e conversando cordialmente com todos, afinal era essa minha obrigação. Por dentro, no entanto, a cada sorriso, sentia uma lança atravessar meu peito destruído. Tentei sair da mesa e ir fumar em um canto qualquer, longe da confusão. Impossível. Era hora da sobremesa. Servem espumante produzido nas redondezas do vilarejo. Razoável (bem razoável!), mas não digo nada porque era uma cortesia do produtor, que estava presente. Ergo um brinde e agradeço a cada um por toda a atenção e carinho dispensados ao longo de todos os dias, em especial naquele. Salud!
Cabia-me, como é tradicionalmente feito, a incumbência de servir e dedicar o primeiro pedaço do bolo com algumas frases de efeito. Polidamente servi e ofereci à primeira pessoa que vi, aleatoriamente. E dirigi-lhe gentilezas genéricas que diria a qualquer um ali presente. Cortez, nada além disso. Sem que pudesse dizer que estava farto e não comeria naquela hora o bolo de chocolate, serviram-me uma fatia generosa, onde era possível ver a inicial do meu nome. Não pude dizer que sou intolerante à lactose e alérgico às amêndoas da crosta crocante do recheio, tampouco teria coragem de dizer que detesto chocolate e amêndoas, ainda mais cobertos de confeitos coloridos.
Tomei, então, uma decisão radical. Era isso que eles esperavam de mim, que eu fosse grato e me deleitasse com o amor que me era ofertado até ser consumido por ele? Então, que seja. Entreguei-me. Bebi o restante do espumante da taça em minha frente em um único gole. Respirei fundo, fechei os olhos e concentrei-me na garfada do bolo, a qual levei à boca vagarosamente. Minhas papilas foram invadidas pelo doce enjoativo dos confeitos açucarados. Mastiguei a crocância das amêndoas. Engoli. Em volta todos observavam sorridentes. Sorri para acompanhar e assenti, olhando cada um dos presentes diretamente nos olhos. Ainda ouvi as risadas, os aplausos e os gritos de todos ficando cada vez mais distantes. Minha visão ficou turva, tive tonturas, sudorese, alteração da pressão arterial e perdi a tonicidade muscular dos braços e pernas. O resto foi contado a mim nos dias subsequentes pelas testemunhas dos fatos: fui carregado nos braços, cianótico e inconsciente, para o hospital da cidade. Fui medicado e muitas horas depois recobrei a consciência. Estava ainda bastante atabalhoado, mas tinha uma certeza: a de pelo menos ter conseguido sair da minha própria fiesta de cumpleaños na hora que decidi. Finalmente tive um bon anniversaire.
[*] Classificado
pela história da arte como pós –impressionista, Nils Dardel é um artista sueco
do começo do século XX. De família aristocrática e biografia aventureira, ele
passou por, Cuba, Peru, México, Guatemala, Norte da África, Japão e Paris,
antes de morrer em Nova York, em 1943. O deslocamento geográfico é semelhante
ao estilístico, Dardel adotou o Cubismo, o Fauvismo, a abstração e volta e meia
aportava no realismo tradicional. É fato que em algumas obras ele
antecipou o Surrealismo. Era em vários sentidos um dândi, conhecido pela
elegância pessoal, pelas opiniões afiadas e excêntricas e pelo gosto por
morbidez e decadência. A obra mais conhecida que ele deixou se chama justamente
A morte de um dândi (de 1918, acima) até recentemente o quadro sueco vendido
pelo maior valor no mercado da arte global.