Alberto Pancorbo: “Poblada Soledad”. (Acrilic on canvas)
[Para ler ao som de “Perfect Day” (Lou Reed), interpretado por Antony & The Johnsons]
"Oh, such a perfect day
You just keep me hanging on
You're going to reap just what you sow" [*]
(Lou Reed)
Meu peito estava apertado. Mas
não era angústia. Era como se eu tivesse sido acometido por alguma daquelas
enfermidades cardíacas que fazem o coração da gente crescer, inchar, entupido de
qualquer coisa podre que não é amor, até entrar em colapso e explodir necrosado
em todas as sete direções galácticas. A sensação que eu tinha, porém, era que a
qualquer momento meu coração implodiria e abriria um buraco negro bem no meio
do peito e sugaria para dentro de si tudo ao seu redor, e a mim mesmo, para o
mais profundo esquecimento. Eu estava vazio de tudo e dentro de mim algo
crescia de forma incontrolável. Silêncio e inércia sufocam a gente. Poderia ser
apenas o anúncio de um enfarte. Poderia ser algo pior e irremediável. Poderia ser
o colapso da razão. Colapso porque não dava mais para segurar tantas urgências
simultâneas gritando por dentro. Pavor. Um escuro silencioso e frio crescia,
duro, como uma estrela que chega ao fim da existência, minguando gradativamente
até transforma-se em uma anã branca, sem luz e sem condições de abrigar
qualquer manifestação de vida. Eu sentia como se tivesse me tornado um
expatriado porque dentro de mim não havia mais possibilidade de existir vida.
Meu coração estava querendo
chamar atenção? Provavelmente. Mas para que? Acho que ele só queria dizer que
estava ali, vivo, além de involuntariamente pulsante. Eu já o havia relegado ao
devido lugar de um órgão que não funciona bem e que tem um defeito congênito e incurável.
E já havia realizado o único tratamento ao qual poderia me submeter em casos
como esse: re-sig-na-ção. Eu já havia
me resignado e tentava aprender a sobreviver com um coração que não funcionava
como deveria e que jamais seria curado, porque não havia salvação para um órgão
que não cumpria somente sua função principal de bombear sangue para o restante
do corpo. Para completar, além de incapaz de cumprir suas funções essenciais,
meu coração tinha rompantes de independência dentro de mim. Ora, um coração com
vontades! Que disparate! Meu cérebro sempre foi senhor de minhas ações e um
coração que ama errado - aliás, um coração que “ama” - só poderia ser fruto de
uma mente fértil, romântica e irascível.
Minha mente e meu coração, de
fato, não estavam no mesmo compasso. E eu estava perdido entre os dois. Sentia
uma dor física que era uma dor de secura, como se acontecesse um processo de
desertificação em mim. Fui ficando infértil, árido. Eu sabia, conscientemente,
que um coração personificado era fruto de alguma coisa que não funcionava bem em
minha cabeça. Sempre fui razoavelmente autoconsciente e sabia que aquilo que
estava acontecendo não era indício de sanidade. Mas eram mais fortes que minhas
faculdades mentais esses impulsos involuntários.
Meu coração parecia crescer cada
vez mais de tanto vazio e minha mente parecia cada vez mais empenhada em
certificar esse movimento. E eu atônito, amordaçado e imobilizado, vendo minha
própria vida ser tomada de assalto por uma mente ilógica e um coração insano,
assistindo pela pequena janela da cela escura de minha alma os vultos de uma
vida interior inteira serem refletidos através sombras difusas, sem minha
participação.
Foi então que resolvi ir até lá e
bater à porta novamente, mesmo sem avisar, mesmo sem ser convidado, mesmo
parecendo um completo paspalho. E pareci realmente. Tinha a consciência que era
alta madrugada. Chovia e eu andava sem guarda-chuva. Sabia que poderia adoecer
fisicamente ainda mais, mas isso me importava menos que a impressão que eu
causaria, chegando no meio da noite, todo encharcado e sem avisar. Não importava
mais minha saúde física, não importava mais a impressão que eu causaria, não
importava mais minha sanidade mental. Bati. Bati novamente. Na terceira e mais
vigorosa vez que bati à porta ela se abriu. Por dois segundo quis sair correndo
porque sabia o que poderia parecer eu estar ali, assim despido de todos panos
coloridos com os quais cobria minha face da verdade. Uma luz fraca iluminou meu rosto molhado.
Senti-me mais uma vez um miserável. Mas era tarde demais para voltar atrás.
- Sei que você deve estar
estranhando eu estar aqui. Na verdade eu também estranho, porque quase não me
reconheço nesta atitude impensada. Sinto-me meio ridículo vindo aqui a uma hora
dessas, sem avisar, numa noite como esta, sem nem ao menos saber exatamente o
que esperar ou o que dizer ou se você me receberia. Mas vim porque sinto que existem coisas que quero
dizer e preciso dizer agora. Sei que estou com hálito de álcool. Apenas tive
energia e coragem para vir depois de algumas doses. Mas não quero importunar
você com meus sofrimentos. Só vim... na verdade nem sei direito porque vim...
Certo, tentarei formular claramente... eu vim porque queria dizer umas coisas
que estão me atormentando a razão desde aquele dia que você chegou e me disse
aquelas coisas bonitas naquele bar, me olhou daquele jeito tão terno e gentil,
bem dentro dos olhos como se pudesse ver minha alma e me despiu de todas as
defesas com seus olhos amendoados meio umedecidos, negros e brilhantes, e me
trouxe aqui para sua casa. Não, não acho que você me usou para satisfazer seus
impulsos básicos. Bem, acho que sim, acho que você queria de mim naquele dia
menos que eu quis de você nos dias seguintes. Não vim cobrar minha pureza
perdida. Eu não sou puro há muito tempo e não tinha nada perder. Tampouco tinha
algo a oferecer a você de puro, raro ou intocado. Ambos há muito perdemos a
inocência. Ambos não chegamos – e talvez nunca cheguemos - à idade da razão. E
ambos sabíamos exatamente o que estava acontecendo e no que aquilo poderia resultar.
Afinal, somos adultos e maduros e conscientes e práticos e perfeitamente
capazes de suportar ausências ou negativas. Mas no caminho entre minha cabeça,
meu coração e minha pélvis algo que eu sentia fugiu do meu controle. Eu sempre
fui aparentemente seguro, você sabe, e sempre soube lidar bem com situações
como a que vivemos. Atração física sempre foi um assunto que distingui
completamente de qualquer afetividade. Não, não é isso. Não vim aqui para falar
de especulações acerca de qualquer espécie de afetividade entre nós. O que
estou dizendo? Não vim aqui para falar sobre o que você pensa do que aconteceu
entre nós. Vim aqui somente para falar uma coisa. Espera, eu vou conseguir... É
que meu coração mandou meu cérebro calar-se. E ele obedeceu, fugindo completamente
de qualquer racionalidade. E é por isso que estou aqui, porque não é racional. Acho que estou aqui porque meu pensamento
fugiu a toda lógica, porque sou apenas desejo agora neste momento, desejo errante
e selvagem, molhado de chuva, de suor e de algumas lágrimas que não consegui
conter, meio zonzo de tantos pensamentos fragmentados e sentimentos
arrebentados, talvez um torpor causado pela combinação de álcool e café preto depois
de muitas horas de estômago - e alma - vazios. Vou dizer uma coisa correndo o
risco de ser ridicularizado ou de você sentir medo de mim. Várias vezes eu
passei aqui pela frente da sua casa e olhei para a janela, de madrugada, e vi a
luz do nosso, quer dizer, do SEU...do seu quarto acesa, e via dois vultos
distintos caminhando ao redor da cama. Você tem todo o direito e reconstruir a
sua vida, e eu a minha... na verdade não é uma reconstrução, porque não tivemos
vidas destruídas. A bem da verdade, nem construímos uma vida juntos. Nossa
história se resumiu a alguns filmes juntos, com roçares acidentais de mãos no
escuro, enquanto lhe oferecia pipoca, mesmo sabendo que você detesta, no máximo
meia dúzia de beijos roubados quando subiam os créditos e alguns poucos
jantares, regados a gentilezas frias, como eu lhe passar a cesta de pães provavelmente
dormidos do couvert ou você servir
vinho na minha taça sempre vazia. Mas me doeu ver você com sua vida distante da
minha, me doeu a possibilidade de alguém deitar sobre os travesseiros onde
revelei meus sonhos secretos a você, enquanto você acariciava minha testa, e
senti-me meio miserável por não poder ao menos dizer o que estou sentindo agora,
porque só restou de você em mim uma saudade de algo que nem sei se foi ou
poderia ter sido, uma promessa esmaecida de Polaroid e seu cheiro adocicado e
meio agreste impresso em minha pele tatuada de ausências e ressecada de amarguras.
O que quero dizer é que eu tenho sentido coisas que nem sei ao certo nominar...
Por favor, não feche a porta ainda, deixe eu terminar de falar o que tenho para
dizer. Espere! Não me deixe aqui neste escuro novamente! Abra a porta, por
favor, abra! Eu só queria dizer que...
[*] “Ah, um dia tão perfeito / Você segura a minha barra / Você vai colher só o que plantou”
o coração tem razões? Penso q sim! Talvez isso justifique às poucas vezes q voltei a bater na porta, mesmo ouvido a tua razão dizer q nosso coração está errado.O Carpinejar escreveu "Eu espero alguém que não desista de mim mesmo quando já não tem interesse." Beijo, Luciano.
ResponderExcluirBom, gurizinho, desse texto eu gostei de uma forma particular. Gostei não, me apaixonei pelas palavras, pela história. Bater na porta é necessário e libertador, mesmo que doa! Esse foi fácil de ler, esse foi muito esclarecedor. Beijo grande no coração!
ResponderExcluirParabéns filho,as colocações do teu texto são tão claras, que nos fazem pensar em provérbios antigos,um deles é"o coração tem razões que a própria razão desconhece".Continua sempre com teus propósitos,e não desiste nunca,pois tens qualidades muito grandes,e não deixa nunca que as decepções desta vida te tirem o brilho,pois já trazes esse brilho de outras vidas.Um grande beijo da Mamys corujona.
ResponderExcluirCaro Anônimo, obrigado pelas considerações. Acredito que o coração tem razões sim. Talvez nossos pensamentos mais verdadeiros e sinceros são aqueles que atribuímos ao coração. E isso já vale viver.
ResponderExcluirLuciano Dias, acho que vivermos o que desejamos pode ser libertador, desde que não sejamos escravos de nossas vontades. Agirmos conforme nossas convicções mais íntimas é libertador e principalmente vital. Obrigado pelos comentários. Abraço forte!
ResponderExcluirMamys! Tu me emociona a cada nova consideração sobre meus humildes devaneios compartilhados. Obrigado, do fundo a alma, por estar sempre ao meu lado. Te amo muito e sempre.
ResponderExcluirAinda estou pensando nesse turbilhão de emoções (melhor) livres. Difícil falar, profundo sentir.
ResponderExcluirGRACIAS LUCIANO!!!!!!!!!!!!! ESPECTACULAR! Mil gracias!
ResponderExcluirGracias a ti, Javi, por leerme! Abrazo!
ExcluirUm texto bárbaro, como sempre.... Perfect Lu!
ResponderExcluirObrigado, Tiago. Sempre gostei de dividir meus textos contigo. Abraço fraterno!
ExcluirMeu amigo. Sensacional teu conto.
ResponderExcluirLuciano, obrigado, amigo. Abração!!!
ResponderExcluirPERFEITO COMO SEMPRE... ABRAÇÃO!!!
ResponderExcluirLeandro Souza, valeu pelo comentário, amigo. Abraço forte!
ResponderExcluirArrasou, meu amigo. "Como sempre" Um bom dia pra vc. Abç
ResponderExcluirLeandro, obrigado amigo. Abração!!!
ResponderExcluirNossa, sem palavras. Quase sempre Nos deparamos em muitas circunstancias que a razao e a emocao Sao os piores inimigos quando Estes estao em desarmonia. Nao sabemos em qual acreditar, se no coracao que em determinados momentos se torna bobo e tolo ou na razao , um bandido. Diane disso ficamos NA inercia sem saber o que fazer e como fazer. Muito bom. Parabens.
ResponderExcluirObrigado pelos comentários, Edelmarson. Abração!!!
ExcluirSempre Falando tudo não é assim Luc Benitez? Mto Bom. Parabéns. Sempre é boa essa leitura.
ResponderExcluirCoisas não ditas viram câncer, Antonio. Obrigado por ler meus pensamentos fragmentados. Abração.
ExcluirEu tenho certeza disso Luc Benitez, Concordo!!! Abção
ExcluirLindo! Preciso aprender a escrever, contigo. Bjs, amado!
ResponderExcluirLu, querida!! É uma grande honra para mim ser lido por ti. E eu que tenho que aprender muito (sempre) contigo. Beijo super carinhoso!
ExcluirLuc querido, lindo demais, especialmente o final tão grandioso de segredos doloridos que precisam ser revelados. Sentir amarguras inomináveis e ainda assim manter a porta aberta... eis a força interior maior em querer continuar. Parabéns!
ResponderExcluirObrigado do fundo da alma pelos comentários, amigo. Acho que é difícil manter portas abertas. Em outros momentos é impossível mantê-las fechadas. Ás vezes precisamos bater insistentemente à porta para que sejamos atendidos, às vezes é preciso arrombá-las. Acho que o que determina isso é a consciência. E talvez o que se chama de sabedoria seja justamente saber quando devemos manter abertas ou fechadas as portas para que consigamos sobreviver.
Excluirmais uma vez nos surpreendendo com suas escritas Luc Benitez. Ainda bem que na condição de cardiopata que vivo, tenho um "anjo" - CDI - que me protege em ocasiões adversas que minha vida expõe (risos). Razão X emoção; coragem X medo; verdades X mentiras ...sempre nos atormentam e nos fazem pensar a vida de várias maneiras, vários ângulos, vários caminhos. Cabe a nós fazer o movimento da escuta do nosso coração. Escuta essa, que não são levados em conta no momento,nenhum tipo de status social, cultural ou mesmo intelectual. Parece fácil...mas as vezes dói. Dói muito...
ResponderExcluirMateus, obrigado pelos comentários. Adorei. Fico feliz de ainda surpreender com o que escrevo. Toda dualidade nos faz, no mínimo, pensarmos em nossas próprias vidas. É uma parada necessárias e às vezes compulsória. Acredito que o mais difícil e fascinante de viver é conseguirmos escutar nosso coração (ou será a razão?). Pensar nos faz crescer. E pensar dói. E crescer dói. Mas vale a pena. Abraço carinhoso.
Excluire o coração nos loga de um lado ao outro,bate em portas antes de chegarmos e nao faz perguntas de etiqueta e clama sem oudores seus direitos e impulsos...assim são teus textos, tuas escritas Luc Benitez.bacio
ResponderExcluirVini, querido! Acredito que a vida somente valha a pena quando o coração nos desestabiliza positivamente. Que bom que meus textos afetam dessa forma. Obrigado pelos comentários. Bacciolli...
Excluir"Silêncio e inércia sufocam a gente" - Recomendo, para os mais sensíveis ou cardiopatas, 50 mg de Succinato de Metoprolol antes da leitura.
ResponderExcluirE para os menos ortodoxos, uma dose de vodca ou um cálice de vinho e um cigarro.
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