quarta-feira, 15 de maio de 2013

DE JUNIOR A RUSSO: A NÓS, QUE NÃO SOMOS MAIS TÃO JOVENS



Com atuações mornas e um recorte temporal desconexo e pouco justificável, filme de Antonio Carlos da Fontoura não chega a atingir o ponto de satisfazer a todos os corações oitentistas apaixonados por Legião Urbana

Já nos preparativos para ir ao cinema eu tive uma sensação quase doída de saudade, só de pensar em revisitar uma fase da minha vida que foi de grandes descobertas e transformações profundas. Sou nostálgico, isso não é segredo. Revisitei minha adolescência. Voltei a ter treze ou catorze anos. Adolescer é complicado. A gente está sempre à flor da pele - bem, eu continuo -, tudo afeta muito mais, tudo acontece mais rápido, tudo na vida são urgências e precariedades. A verdade é que crescer dói. E depois que o turbilhão de emoções passa, quando olhamos para trás e vemos de longe o que vivemos, às vezes reminiscências vem à consciência.

Quando o filme Somos Tão Jovens entrou em cartaz eu já estava predisposto a cultuá-lo e pensava nos sentimentos que seriam despertados em mim durante a exibição, ensaiando como conseguiria engolir o choro ao revisitar meu passado despertado pelas músicas e imagens de um de meus heróis mortos. Minha vida toda é cadenciada por trilhas sonoras específicas. Na adolescência isso era mais forte. Sempre foi na música, na literatura e no cinema que busquei refúgio e compreensão do mundo e de mim mesmo. E fui fã (in) condicional e ardoroso de Legião Urbana desde oitenta e bem poucos, quando eu ainda era guri de cara lisa e voz desengonçada. Supunha que o filme seria uma apoteose de imagens e sons, que seria recheado com as músicas da banda, quase um songbook ou um documentário. E ensaiava a dissimulação da catarse que teria quando os créditos subissem e as luzes do cinema acendessem. Acho que esperei demais. Ou fui invadido por outra coisa, por um sentimento inesperado, no limite entre a frustração e o desapontamento.

A produção, que foi um fenômeno de bilheteria e o maior sucesso do cinema nacional de 2013 até o momento, faz um recorte entre 1976 e 1985 da história musical do jovem Renato Manfredini Junior, um atípico adolescente de classe média que vive em Brasília no período do fim da ditadura militar. O filme de Fontoura, cujo roteiro é de autoria de Marcos Bernstein (Central do Brasil), retrata um garoto retraído e frágil física e emocionalmente, que passa de forma um tanto artificial pelo movimento punk, até realizar o sonho de ser líder de uma banda de rock de sucesso.  Assim como acontece com muitos adolescentes, a música era uma forma de autoconhecimento e de expressão para Russo. Esse momento inicial da vida e da carreira artística de Renato, de Manfredini Junior a Russo, é protagonizada nas telas pelo ator Thiago Mendonça (Dois Filhos de Francisco). Do início da carreira, com a formação da banda pós-punk Aborto Elétrico, embrião da banda Legião Urbana, à formação inicial desta última propriamente dita, são dadas algumas leves pinceladas na trajetória do autor de hinos de uma geração como "Que País é Este?", "Geração Coca Cola", "Eduardo e Mônica" e "Faroeste Caboclo".

Fontoura e Bernstein mostram um Renato mais Junior que Russo. Isso é bonito e às vezes quase consegue ser poético, mesmo forçando um pouco a barra. Eles nos apresentam um jovem que também era afetado pelas dores do mundo, que também tinha uma adolescência permeada por sofrimentos, alegrias, descobertas, frustrações e pelas limitações que o mundo impunha. Um adolescente comum que falava a linguagem de sua geração.

O filme é um intermezzo entre a formação intelectual e musical solitária de Renato nos anos 1970 e o fenômeno que foi a banda Legião Urbana entre as décadas de 1980 e 1990. Da mesma forma que o recorte escolhido pelo diretor não foi o que fez mais justiça à trajetória, nem de Renato Russo e tampouco da banda, as atuações dos principais atores foram medianas, pautadas por diálogos artificiais, em especial as expressões construídas a partir das músicas compostas por Russo. Sandra Corveloni (Linha de Passe) e Marcos Breda (Sargento Garcia e For All) são os pais de Renato. Suas atuações não merecem maiores comentários além do registro de não serem mais que bastante superficiais. Faltou entrosamento e familiaridade com a história. O próprio Thiago Mendonça parece demorar mais da metade do filme para encontrar o ponto certo do personagem, embora acerte nos trejeitos em alguns momentos e até consiga arranhar o timbre de Renato quando canta ao vivo. Porém, somente demonstra alguma veracidade mais orgânica ao lembrar vagamente Renato Russo com a barba e os óculos de grau característicos do cantor em tomadas em planos bem abertos. De resto, o filme é arrastado e demora a encontrar o tom. A primeira metade do filme é uma introdução arrastada para algo que não chega a acontecer na metade final.

A banda Legião Urbana foi um marco na cultura musical do país. Foi um dos principais expoentes do rock brasileiro dos anos 1980. Isso tem uma carga enorme. Mas a proposta, pelo menos ao que parece, era contar o início da carreira de Renato e até o surgimento da Legião Urbana e não a trajetória da banda ou uma biografia detalhada do cantor. A impressão que fica é que haverá uma continuação do filme. Quem sabe não vira uma trilogia do tipo Crepúsculo? Acho meio herético, but okay. A bem da verdade, faltaram elementos, faltou profundidade, faltou paixão. Sobrou superficialidade, atuações que ficaram como promessas e uma história que ao final nos deixa com a sensação de que algo se perdeu no caminho ou não foi dito por preguiça dos realizadores. A impressão é que foi retratada uma vida observada pelo buraco da fechadura. Faltou amplitude.

Como contar a biografia de um ídolo no cinema? Como fã, talvez nenhuma biografia faça justiça a um artista da envergadura de Renato Russo. Da mesma forma que alguns escritores, como Caio Fernando Abreu, Charles Bukowski, Fernando Pessoa, Clarice Lispector, outros cantores como Cazuza, Chico Buarque, Maria Bethânia e outras bandas como The Smiths e umas boy bands insípidas, Renato Russo e a Legião Urbana povoaram meu imaginário pós-infante e pré-adolescente. As músicas da Legião traduziram-me. Confortaram, desestabilizaram, transformaram meu mundo interior. Ousaria dizer que parte do que sou – ou pelo menos do que fui nessa época – devo a essa potência transformadora das letras e melodias dessa banda. Por isso eu sempre esperarei mais de uma biografia, seja contando a trajetória musical do grupo, seja contando a trajetória pessoal de Renato Manfredini Junior, o Russo.

Sua voz ecoou fundo em minha geração continuou ecoando nas gerações posteriores. Essa face de Renato permeia sua obra, sua poesia e nos faz relembrar que mesmo que nossos rostos mostrem as marcas do tempo e das batalhas nem sempre vencidas, somos jovens e ainda é cedo, cedo, cedo. Há nesse filme claramente a escolha de não se explorar as tragédias pessoais de Renato, como sua morte prematura, vitimizado pela AIDS em 1996, ou sua homossexualidade, que é tratada com sutileza e delicadeza. Respeitoso e honesto com a memória do cantor, que em raras oportunidades expôs na mídia sua vida íntima, o filme não traz novidades ao grande público, mas não faz sensacionalismos baratos. E por isso, exatamente por isso, o filme já vale a pena ser assistido. 



terça-feira, 7 de maio de 2013

QUANDO FAL(T)A O CORAÇÃO




Tem um dia da semana que é o meu predileto. É o dia em que as salas de cinema tem promoção de meia entrada. É meu dia de cinema barato em Wonderland. Nesse dia, chego cedo para conseguir comprar ingressos e para não enfrentar muitas filas. Nestas terras longínquas ao sul do equador as pessoas cultivam filas como entes queridos. Às vezes, porém, sou surpreendido.

Cheguei na hora do início da sessão. Imaginava ter que enfrentar uma multidão. Enganei-me. Não havia fila. Nem ao menos a moça da bilheteria estava em seu posto. Tampouco a moça da pipoca ou a que recebe os bilhetes controla a entrada dos espectadores. Aliás, nesse caso, a da pipoca e a da porta eram a mesma pessoa. Além de ser essa mesma moça quem higienizava os sanitários, como ela mesma comentou. Sinais da crise? A sala de exibição estava completamente vazia. As duas funcionárias do cinema, cujas funções eram acumuladas, não pareciam estranhar o fato de estar acontecendo uma sessão praticamente particular, o que me leva a crer que é um fato corriqueiro. O fato de o filme não cair no gosto do público brasileiro não me espanta. Não existe uma política de formação de público por estas paragens. Os espectadores aqui não são talhados para esse tipo de produção porque o ritmo diferente do blockbuster americano é estranho ao olhar.

De Coração Aberto (À Coeur Ouvert) é uma produção franco-argentina e conta com a participação da musa francesa Juliette Binoche (Mila) e do venezuelano Edgar Ramírez (Javier) nos papéis principais. Binoche, que já participou dos pungentes Os Amantes da Ponte Neuf (1991), A Liberdade é Azul (1993), do aclamado O Paciente Inglês (1996) e do interessantíssimo Cópia Fiel (2010), fica apagada nesta produção. Reconhecidamente uma das grandes atrizes francesas da atualidade, parece que nos últimos anos ela não tem feito boas escolhas. Ramírez, por sua vez, talvez esteja no auge da carreira. Somente em 2012 participou de três produções: A Hora Mais Escura, Fúria de Titãs 2 e De Coração Aberto. Desses assisti somente o último, confesso. O roteiro e a direção ficam a cargo de Marion Laine. Este é o segundo longa da diretora, que também assina a direção do sensível e intimista Un Coeur Simple, de 2008, baseado na obra do escritor francês Gustave Flaubert.

À Coeur Ouvert é um filme interessante. A trama é repleta de símbolos possui vários pontos atrativos. Javier e Mila formam um casal de cirurgiões cardíacos apaixonados, independentes, alternativos, descolados e bem longe do padrão dos casais convencionais. São parceiros na vida e no trabalho. Ele é um latino que conseguiu reconhecimento na Europa. Ela é francesa. Ele é competente e alcoólatra. Ela é talentosa e uma ameaça profissional a ele. Vivendo juntos há dez anos, são surpreendidos por uma gravidez inesperada, o que melindra a relação e traz à tona medos e angústias individuais de ambos. E isso é mostrado quase de forma explicativa logo nas primeiras cenas do filme. Daí em diante, existe pouca – ou quase nenhuma – surpresa.

O esvaziamento das salas nas exibições desse filme deveria ser um sinal. Já havia lido que a produção foi um fracasso de bilheteria em seu país de origem, mas não via isso como um sintoma. Porém, após a exibição saí da sala com a sensação de que os atores estavam um tanto descompassados com a atmosfera do filme e entre si, o que me dispersou e me fez olhar o relógio várias vezes. Em alguns momentos a narrativa é arrastada e há dissintonia entre discurso e ação.  Com a falta de uma boa direção, os protagonistas ficaram sem um balizador do tom de suas atuações. Binoche estava um tom abaixo e Ramirez um tom acima. A delicadeza quase etérea dela e a voracidade hercúlea dele em uma narrativa, que ao que parece aspirava ser naturalista, ficaram negativamente acentuadas e desconexas. Ao invés de serem exploradas as chagas de corações abertos em uma relação em crise, parece que foi realizada, de forma febril e inconseqüente, a crônica de um amor louco que beirava a histeria.

Nessa geléia de enganos de uma narrativa repleta de obviedades e truculências, os diálogos superficiais e monótonos não chegaram sequer a ser um rascunho do que talvez fosse a ideia do filme. Existem tentativas de instigar o espectador com metáforas e simbologias artificiais, como a relação bem óbvia da profissão de ambos com o título do filme e com a ideia de corações partidos e a casa onde eles vivem, que se deteriora à medida que a relação se transforma. Mesmo que eu não esperasse a redenção do amor, ou tivesse criado qualquer expectativa com relação aos destinos da trama, parece-me que desfecho foi abrupto, como uma necessidade premente de encerramento porque os recursos – financeiros e narrativos - escassearam. Ademais, a atmosfera realista e naturalista da trama se dilui em um final alegoricamente fantástico repleto de artificialidades.

Apesar de algumas virtudes do roteiro e do talento dos protagonistas, o filme se perde em superficialidades e falhas de direção. É um filme que não é mais que tangente. Tangencia os temas centrais, tangencia a profundidade da relação dos protagonistas, tangencia as simbologias que aponta ao longo da narrativa. Mesmo com uma boa fotografia, que se percebe pelo cuidado com alguns detalhes de luz e textura, o filme tem algumas quebras que tiram a atenção do espectador de forma inevitável. Talvez tenha faltado traquejo à Marion Laine. Faltou jeito e um olhar mais sensível na direção dos atores, na condução das tomadas, na montagem (que às vezes é bem sofrível). No fim da sessão entendi os motivos do fracasso. E embora não justifique a sala onde assisti ao filme estar vazia - porque os motivos aqui no Brasil são outros - faz sentido uma sessão praticamente vazia. É lastimável porque o filme tinha tudo para dar certo. Porém, o pulso de Laine foi frouxo. Espero que ela tenha mais sorte (e lucidez) na próxima investida.