Já nos preparativos para ir ao cinema eu tive uma sensação quase doída
de saudade, só de pensar em revisitar uma fase da minha vida que foi de grandes
descobertas e transformações profundas. Sou nostálgico, isso não é segredo. Revisitei
minha adolescência. Voltei a ter treze ou catorze anos. Adolescer é complicado.
A gente está sempre à flor da pele - bem, eu continuo -, tudo afeta muito mais,
tudo acontece mais rápido, tudo na vida são urgências e precariedades. A
verdade é que crescer dói. E depois que o turbilhão de emoções passa, quando
olhamos para trás e vemos de longe o que vivemos, às vezes reminiscências vem à
consciência.
Quando o filme Somos Tão Jovens
entrou em cartaz eu já estava predisposto a cultuá-lo e pensava nos sentimentos
que seriam despertados em mim durante a exibição, ensaiando como conseguiria
engolir o choro ao revisitar meu passado despertado pelas músicas e imagens de
um de meus heróis mortos. Minha vida toda é cadenciada por trilhas sonoras
específicas. Na adolescência isso era mais forte. Sempre foi na música, na
literatura e no cinema que busquei refúgio e compreensão do mundo e de mim
mesmo. E fui fã (in) condicional e ardoroso de Legião Urbana desde oitenta e
bem poucos, quando eu ainda era guri de cara lisa e voz desengonçada. Supunha que
o filme seria uma apoteose de imagens e sons, que seria recheado com as músicas
da banda, quase um songbook ou um
documentário. E ensaiava a dissimulação da catarse que teria quando os créditos
subissem e as luzes do cinema acendessem. Acho que esperei demais. Ou fui invadido
por outra coisa, por um sentimento inesperado, no limite entre a frustração e o
desapontamento.
A produção, que foi um fenômeno de bilheteria e o maior sucesso do
cinema nacional de 2013 até o momento, faz um recorte entre 1976 e 1985 da
história musical do jovem Renato Manfredini Junior, um atípico adolescente de
classe média que vive em Brasília no período do fim da ditadura militar. O
filme de Fontoura, cujo roteiro é de autoria de Marcos Bernstein (Central do
Brasil), retrata um garoto retraído e frágil física e emocionalmente, que passa
de forma um tanto artificial pelo movimento punk, até realizar o sonho de ser
líder de uma banda de rock de sucesso. Assim
como acontece com muitos adolescentes, a música era uma forma de
autoconhecimento e de expressão para Russo. Esse momento inicial da vida e da
carreira artística de Renato, de Manfredini Junior a Russo, é protagonizada nas
telas pelo ator Thiago Mendonça (Dois Filhos de Francisco). Do início da carreira,
com a formação da banda pós-punk Aborto Elétrico, embrião da banda Legião
Urbana, à formação inicial desta última propriamente dita, são dadas algumas
leves pinceladas na trajetória do autor de hinos de uma geração como "Que País é Este?", "Geração
Coca Cola", "Eduardo e Mônica" e "Faroeste Caboclo".
Fontoura e Bernstein mostram um Renato mais Junior que Russo. Isso é
bonito e às vezes quase consegue ser poético, mesmo forçando um pouco a barra.
Eles nos apresentam um jovem que também era afetado pelas dores do mundo, que
também tinha uma adolescência permeada por sofrimentos, alegrias, descobertas,
frustrações e pelas limitações que o mundo impunha. Um adolescente comum que
falava a linguagem de sua geração.
O filme é um intermezzo entre a formação intelectual e musical solitária
de Renato nos anos 1970 e o fenômeno que foi a banda Legião Urbana entre as
décadas de 1980 e 1990. Da mesma forma que o recorte escolhido pelo diretor não
foi o que fez mais justiça à trajetória, nem de Renato Russo e tampouco da
banda, as atuações dos principais atores foram medianas, pautadas por diálogos
artificiais, em especial as expressões construídas a partir das músicas
compostas por Russo. Sandra Corveloni (Linha de Passe) e Marcos Breda (Sargento
Garcia e For All) são os pais de Renato. Suas atuações não merecem maiores
comentários além do registro de não serem mais que bastante superficiais. Faltou
entrosamento e familiaridade com a história. O próprio Thiago Mendonça parece
demorar mais da metade do filme para encontrar o ponto certo do personagem,
embora acerte nos trejeitos em alguns momentos e até consiga arranhar o timbre
de Renato quando canta ao vivo. Porém, somente demonstra alguma veracidade mais
orgânica ao lembrar vagamente Renato Russo com a barba e os óculos de grau
característicos do cantor em tomadas em planos bem abertos. De resto, o filme é
arrastado e demora a encontrar o tom. A primeira metade do filme é uma
introdução arrastada para algo que não chega a acontecer na metade final.
A banda Legião Urbana foi um marco na cultura musical do país. Foi um
dos principais expoentes do rock brasileiro dos anos 1980. Isso tem uma carga
enorme. Mas a proposta, pelo menos ao que parece, era contar o início da
carreira de Renato e até o surgimento da Legião Urbana e não a trajetória da
banda ou uma biografia detalhada do cantor. A impressão que fica é que haverá
uma continuação do filme. Quem sabe não vira uma trilogia do tipo Crepúsculo?
Acho meio herético, but okay. A bem da
verdade, faltaram elementos, faltou profundidade, faltou paixão. Sobrou
superficialidade, atuações que ficaram como promessas e uma história que ao
final nos deixa com a sensação de que algo se perdeu no caminho ou não foi dito
por preguiça dos realizadores. A impressão é que foi retratada uma vida
observada pelo buraco da fechadura. Faltou amplitude.
Como contar a biografia de um ídolo no cinema? Como fã, talvez nenhuma
biografia faça justiça a um artista da envergadura de Renato Russo. Da mesma
forma que alguns escritores, como Caio Fernando Abreu, Charles Bukowski,
Fernando Pessoa, Clarice Lispector, outros cantores como Cazuza, Chico Buarque,
Maria Bethânia e outras bandas como The Smiths e umas boy bands insípidas,
Renato Russo e a Legião Urbana povoaram meu imaginário pós-infante e pré-adolescente.
As músicas da Legião traduziram-me. Confortaram, desestabilizaram,
transformaram meu mundo interior. Ousaria dizer que parte do que sou – ou pelo
menos do que fui nessa época – devo a essa potência transformadora das letras e
melodias dessa banda. Por isso eu sempre esperarei mais de uma biografia, seja
contando a trajetória musical do grupo, seja contando a trajetória pessoal de
Renato Manfredini Junior, o Russo.
Sua voz ecoou fundo em minha geração continuou ecoando nas gerações
posteriores. Essa face de Renato permeia sua obra, sua poesia e nos faz
relembrar que mesmo que nossos rostos mostrem as marcas do tempo e das batalhas
nem sempre vencidas, somos jovens e ainda é cedo, cedo, cedo. Há nesse filme claramente
a escolha de não se explorar as tragédias pessoais de Renato, como sua morte
prematura, vitimizado pela AIDS em 1996, ou sua homossexualidade, que é tratada
com sutileza e delicadeza. Respeitoso e honesto com a memória do cantor, que em
raras oportunidades expôs na mídia sua vida íntima, o filme não traz novidades
ao grande público, mas não faz sensacionalismos baratos. E por isso, exatamente
por isso, o filme já vale a pena ser assistido.
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