Ontem
ouvi um relato com o qual fiquei profundamente tocado. Um amigo comentava sobre
um tempo em que trabalhou com integrantes do Movimento Sem-Terra (MST) em um
assentamento nos confins deste imenso país. Ele falava sobre as dificuldades
dessas pessoas sem condições dignas de moradia, sem escola, sem alimentação,
sem higiene, vivendo em barracões e dormindo em camas de varas e em constante
tensão, devido às represálias violentas de latifundiários e capatazes de
fazendas. Uma vida dura que a maioria de nós, urbanóides de classe média, só conhece pelos jornais e pelas
frestas das janelas que abrimos vez ou outra para ver como é o mundo do lado de
fora do nosso bunker climatizado a
acarpetado.
O
trabalho dele era prestar apoio emocional e espiritual a essas famílias, tão
privadas e carentes de tudo. Um dia, ele decidiu fazer um momento de reflexão
com um grupo. Abriu, então, espaço para quem desejasse falar sobre o que
sentia, para que fizessem pedidos ou expressassem desejos íntimos. Nesse
momento, uma senhora, mãe de dois filhos, ergue a mão. A palavra é concedida a
ela. Então ela diz que desejava que Deus permitisse que naquela região
existissem mais flores. Disse que queria que essas flores desabrochassem porque
os beija-flores estavam quase sem alimento, uma vez que a seca na região estava
sendo severa e a vegetação estava morrendo.
Na
hora, contou-me ele, a primeira coisa que pensou foi: “Uma pessoa que está em
uma situação tão extrema se preocupar com a alimentação dos beija-flores? Com
tanta coisa para se preocupar, com filhos fora da escola, vai pensar em
pássaros? Tem alguma coisa errada nisso”. A reflexão que meu interlocutor me
deixou foi a de que, mesmo nas situações mais adversas, mesmo sendo privados de
tudo, não podemos deixar que a vida nos embruteça. E ele me dizia que levava
para sua própria vida, desse momento com essa senhora humilde, uma grande
lição: a de manter vivo dentro dele o que existe de mais humano. E confessou a
mim que desde então traz consciente um esforço diário para não deixar de pensar
nas necessidades daqueles que o cercam, preocupar-se com as necessidades dos
beija-flores, mesmo que suas costas doam e sua barriga ronque de fome. E eu
consegui sentir a verdade do que ele dizia através de sua voz serena e seu olhar
profundo.
Tenho
tentado ver de perto o que está acontecendo no país. Pinço aqui e ali
informações sobre essas manifestações que invadem as ruas, que em última
instância clamam por um país melhor e mais justo, tentando deixar de lado minhas
emoções, quase sempre afloradas e erráticas. Tenho o sentimento de que essas
mobilizações públicas são o retrato de um país que ainda engatinha no que se
refere à democracia. Um país que está aprendendo a reivindicar coletivamente nas
ruas seus direitos, que não conhece ainda o que é ter liberdade de expressão e
que, num dado momento, renega a coletividade de determinados grupos mais
heterogêneos. E principalmente que é manipulável por um poder paraestatal e
estatal, orquestrado pela mídia e por alguns partidos políticos que estabelecem
diferenças maniqueístas do tipo "nós,
os bonzinhos" e "eles, os
malvados". Acho que a questão é maior que esse debate dicotômico “pacifismo
VS. Violência”, partidário contra não partidário, a luta do rochedo com o mar,
do Estado com (contra?) o cidadão.
Percebo
que existe uma cisão entre dois discursos ideológicos, que acabam criando dois
grupos bem distintos. Vendo o que vem ocorrendo em Porto Alegre tenho
isso bem claro. Em uma das noites de manifestações, nas duas vias da Av.
Ipiranga, separados pelo Arroio Dilúvio, estavam dois grupos: Um, “pacífico”, “politizado”,
fazendo uma marcha de cara limpa e com palavras de ordem e cartazes de protesto
em punho. Do
outro lado do arroio havia outro, enervado, de rostos cobertos, gritando
desordenadamente e portando pedras e paus. O primeiro usa a voz para ser
reconhecido. O segundo ameaça a ordem e o patrimônio. A mídia traz, de forma
emblemática dentro de uma lógica de consumo capitalista, que "milhares de
pessoas seguiram pacificamente pelas ruas e um pequeno grupo agiu com
violência". Protesto Pacífico e Vandalismo são produtos de consumo agora.
Guerra e Paz sempre venderam muito. Obviamente, a guerra é muito mais
lucrativa. E não é de hoje. Essas abordagens me causam desconforto. E tenho
percebido que esse discurso é sistematicamente repetido. Parece que existe uma
forma certa e uma forma errada de ir às ruas. E concordo que, em certo sentido,
existe mesmo. Não acho que depredação do patrimônio público e violência sejam
formas eficazes de reivindicação. Pelo contrário, é são formas até um tanto
burras. No fim, todo mundo paga a conta e ninguém consegue o que quer. Mas
talvez a questão seja ainda mais profunda. Não é somente o vandalismo em si,
mas a construção midiática – e social - que se faz do vândalo.
Agora,
ergue-se a bandeira de uma manifestação sem bandeiras partidárias. Confesso que
acho um tanto contraditório. O brazilian
way of life “meu partido é um coração partido” é uma quimera, amigos. E
tenho os três pés atrás com esse tipo de discurso. Afinal, de que forma os
grupos se organizam politicamente sem um partido? Essas organizações não
deveriam, independente da sigla, estarem afinadas entre si e com a totalidade
do movimento? Rasgar bandeiras partidárias não será uma forma meio torpe de pulverizar
as reivindicações e tirar o foco político das manifestações? Lembremos que foi
um grupo (bastante!) partidário que começou esse movimento, o Movimento Passe
Livre. Onde está a liberdade de expressão e a livre associação política? Que
regras são essas que pululam agora que parecem querer estabelecer um modus operandi ou um código tácito e
implícito de conduta para as manifestações públicas que nega sua origem? Queimar
as bandeiras dos partidos políticos, levantar cartazes reivindicando questões
com propósitos de origem e matrizes ideológicas bem duvidosas, literalmente
vestir a bandeira do Brasil e cantar emocionadamente o Hino Nacional,
reivindicando de forma vazia e imprecisa que o país simplesmente mude, parece
ser a reinvenção de um ufanismo nacionalista rançoso com uma carga fascista
quase patológica.
Como
todo “guri” que viveu preso e é libertado do controle paterno, o Brasil saiu
correndo ensandecido pelas ruas, gritando eufórico sua liberdade, querendo
provar tudo, tocar em tudo, absorver tudo, desajeitado e meio inconsequente. O
“gigante” parece um elefante na loja de cristais. Mas talvez estejamos provando
uma falsa sensação de liberdade. Talvez estejamos ainda dentro do cercadinho
que papai montou para poder nos controlar. Será que não nos tornamos os
manifestantes que “eles” querem que sejamos? Será que não estamos sendo
condicionados e formatados a pedir o que queremos “do jeitinho” que “eles”
querem? Parece que basta, para que exerçamos nossa cidadania, para que sejamos
“brasileiros, com muito orgulho, com muito amor”, vestirmos máscaras de Guy
Fawkes (aquela da série V de Vingança), que a imensa maioria não tem a menor
ideia de quem foi, nos enrolarmos em nossas cangas de praia com a estampa da
bandeira do Brasil e redescobrirmos um amor pelo país que há muito tempo
abandonamos, se é que algum dia sentimos. Esse patriotismo todo soa fake aos meus pobres olhos que já viram
muita bobagem acontecer.
O
gigante não está acordando, ele é ainda um recém nascido, desengonçado e
bobalhão. Não adianta obrigá-lo a andar de monociclo fazendo malabarismos se
ele está aprendendo a engatinhar e a balbuciar precariamente seus desejos e
necessidades. E lá no fundo, algo me diz que ele tem muito para amadurecer no
que se refere a lutas sociais. Ainda temos muito para aprender. Não sei se o
país anda no caminho certo. Nem sei qual seria o caminho certo. Tampouco se
existe um. Que o caminho se aprende ao trilhá-lo é tudo o que sei. A gente
aprende a caminhar, caminhando; a falar, falando; a reivindicar, reivindicando.
E a viver em sociedade, vivendo. Independente de estarem acontecendo coisas
certas do jeito errado, que pelo menos consigamos nos conectar aos nossos
sentimentos mais humanos. E que não nos esqueçamos também dos beija-flores. Assim
como nós, eles também tem fome.