William Kentridge: “Drawing for the film Stereoscope [Felix Crying]” - 1998-1999 - Charcoal, pastel, and colored pencil on paper 47 1/4 in. x 63 in. (120.02 cm x 160.02 cm). The Museum of Modern Art, New York.
“Tu misterio es mucho
Más interesante que
Mi imaginación”
Más interesante que
Mi imaginación”
(Perotá Chingó - Canción Para El Viento)
A abundante e mansa chuva
fina que banhou meu caminho estava prevista. Ainda assim, fui pego de surpresa.
Da mesma forma que a chegada dele em minha vida, não esperava que chovesse tão
de pronto. Sempre duvidei de previsões do tempo, na mesma proporção que
desacreditei em oráculos, astrologia ou misticismos exóticos, muito embora
recorresse até mesmo ao ocultismo quando estava em apuros e ligasse o rádio de
pilhas todas as manhãs para saber como seria o clima do dia. Acho,
sinceramente, que tudo é superstição. Ignorância minha, eu sei. De fato, confio
tanto em meteorologistas quanto em analistas. E por pensar que tudo é bobagem, não
daria tratos à bola quando interpelado pela Esfinge, sendo indubitável e
inevitavelmente devorado por ela a caminho de Tebas. Como duvido das previsões,
sempre ando sem guarda-chuva. E sempre acabo molhado. Também por culpa dessa
dúvida hiperbólica cartesiana patológica abandonei todos os meus analistas e
amantes. Ou fui abandonado por eles, nunca soube ao certo porque a verdade é algo completamente fora do
meu alcance.
Preparei-me com cuidado
para esse momento. Não para a chuva, obviamente, e sim para o encontro que
teria no fim desse caminho áspero de frio e umidade que enfrentava como se
fosse um valente cavaleiro. Dispensei aquele cuidado típico de quem quer causar
boa impressão sem parecer que esse é o objetivo. Vesti um casaco escuro de
veludo de corte ajustado, que disfarçava os excessos de uma vida inteira de
desregramentos, marcados indelevelmente em minha região abdominal, uma camisa
branca meio gasta no colarinho, o velho jeans surrado e o único par de sapatos
confortáveis que tinha, porque a estrada era muito comprida e as curvas enganam
o olhar.
Apertei o passo para não
molhar-me. Foi meio em vão. Àquela altura tanto fazia. Mesmo querendo causar
boa impressão, não importava mais a aparência que eu tinha. Talvez quisesse,
bem lá no fundo, mostrar que não tinha essas máscaras, queria chegar o mais
próximo do que supunha – e queria – ser em essência, com minhas roupas largas e
velhas, minhas marcas e meu pouco senso de humor. Somente queria chegar,
desarmado, e dizer que não faria qualquer jogo. Até mesmo porque suspeitava que
desaprendera a jogar. Ou então, que nunca cheguei a aprender, afinal não
lembrava imediatamente de algum dia ter chegado a jogar e ganhar. Queria dizer
a ele que estava cansado de duelar, cansado de danças cadenciadas e marcadas. E
ela já havia me dito: “A impossibilidade
e o mistério cansaram com força seu coração”. Cansaram mesmo, Mrs.
Lispector. Queria libertar-me da carapaça. Assim, simples. Tinha vontade de
chegar e não sentir ameaças, não sentir constrangimentos. Queria somente olhar
fundo nos olhos dele e saber que seria nítido, cotidiano, que eu poderia
descalçar os sapatos apertados e as meias puídas, sem que ele reparasse no quão
feios e disformes são meus pés, muito brancos, com dedos curtos unhas irregulares.
Queria que, numa tarde qualquer de sábado, eu pudesse pousar livremente meus
pés estranhos sobre a grama fresca e sentir o cheiro de terra, deitado com os
braços abertos e os olhos fechados para senti-la fazer cócegas em minha nuca.
Queria esquecer asperezas sob o sol de junho, que eu sabia que surgiria nos
dias subseqüentes àquela chuva fina de outono. Então, ele repousaria sua cabeça
de cabelos dourados e finos sobre meu peito e não precisaríamos dizer nada
porque não havia nada a dizer. E mesmo que houvesse, prescindiríamos da palavra
falada. Bastaria sabermos que havia vida pulsando dentro de nós. Essa seria
nossa linguagem. Para mim seria suficiente sentir sua respiração tranqüila e
olhar sem pressa seus olhos de um verde-esmeralda profundo pousados nos meus,
negros como a noite.
Eu sabia que ele queria o
mesmo que eu. Ou talvez me esforçasse para reconhecer, como uma pomba
alimentando-se de farelos de pão jogados no chão pelas mãos rugosas de uma
austera senhora, os fragmentados sinais que ele não conseguira esconder.
Entretanto, como não creio nas minhas impressões sobre o mundo, tampouco em
meus próprios sentimentos e nos insights
que tenho, achei que poderia estar enganado. Se fosse realmente um engano,
jamais me recuperaria do fracasso. Aliás, reconheço tantos fracassos acumulados
que há tempos jazeu aquela sensação confortante que me fazia crer que as dores
do mundo me tornariam mais forte. Protejo-me do mundo justamente porque reconheço
minha precariedade e a cada nova marca na pele fico mais vulnerável,
fragilizado e dolorido. Por isso visto minha armadura de lata e saio pelo
mundo, buscando incansavelmente um coração.
Não queria mais
sofrimentos. Sendo assim, não dava muitos passos no escuro. Mas ainda restava
alguma coragem, embora também parca, que me impulsionava em direção a novas
possibilidades. E ele era uma possibilidade, eu via e era nítido para mim. Por
isso enfrentei uma noite escura e sem estrelas, por isso não amaldiçoei o
momento em que começou a chover e eu estava sem qualquer proteção. Eu estava
realmente sem qualquer proteção e era uma escolha consciente. Queria chegar
assim, mesmo molhado, ofegante e desalinhado e dizer que estava de peito aberto
e alma leve, que não estava pronto, mas estava inteiro ali naquele momento.
Não sabia exatamente quem
ele era, nem física e muito menos psicológica e emocionalmente. Não conseguia
sequer recordar-me dos detalhes de seu rosto. Talvez isso faça parte do
mecanismo de defesa que minha mente ergue quando existe uma possibilidade de vida
fora de meu casulo autoimposto. Eu acessava minhas memórias difusas para que
não houvesse a chance de abordar um desconhecido. Mas não, isso não
aconteceria, eu sabia intimamente. Porque quando o visse saberia que seria ele,
mesmo lembrando apenas de detalhes impalpáveis e esparsos como um olhar
profundo, uma sensação leve de roçar de cabelos ou um gosto de mar ou
lágrimas.
Cheguei cedo. Sou ansioso.
Sentei-me num canto e puxei um livro do bolso do casaco. Clarice Lispector, “O Lustre”. De tempos em tempos ela
retorna e me faz companhia. Respirei fundo, tentei achar uma posição
confortável no banco frio de concreto, protegido das intempéries em um coreto
coberto de glicínias roxas. Cruzei as pernas, abri o livro sobre elas,
mantendo-o aberto colocando ambas as mãos espalmadas sobre margens das páginas,
e pousei os olhos no seguinte trecho: "Ele
estava vivendo longe. Eu te sinto em alguma parte e não sei onde estás -
conseguia ela pensar em
palavras. Seu amor era tão fino que ela sorriu constrangida,
atravessada por uma frígida sensação de existir. Parecia-lhe extremamente
estranho que nessa mesma noite ele vivesse nesse mesmo mundo, que não
estivessem juntos e ela não visse o que ele fazia, tão mais forte que a
distância era o seu pensamento de amor. Amor era assim, não se compreendia a
separação - concluía com docilidade". Se eu fosse dado a crenças
místicas nos mistérios da vida, acharia que era um sinal do universo. Talvez
uma mensagem de Clarice, talvez de Deus, talvez d’Ela a pedido d’Ele, talvez d’Ele
através d’Ela e do livro que eu tinha em mãos. O fato é que sinto que Clarice me
entenderia, se estivesse sentada ao meu lado naquele banco do coreto da praça
da matriz. Se eu pudesse sentar com ela e conversar sobre a vida, eu diria que
estava sentindo, no momento em que li essas palavras, exatamente o que ela
tinha dito naquelas páginas.
Olhei na contracapa a data
da publicação da obra: 1946. Provavelmente escrito entre 1943 e 1944. Isso era
o menos relevante. Ocorreu-me que esse livro havia sido escrito muitos anos
antes do meu nascimento. E lembrei-me de um pensamento infantil que era
recorrente até minha adultez: quão estranho é imaginar que existia vida antes
de nascermos! Que desconcertante é imaginar que coisas próximas – e importantes
- já estavam lá antes de existirmos! Eu tinha plena consciência que era soberba
minha pensar que nada de importante que se relacione à minha vida poderia
existir antes do meu nascimento, mas como disse, era um pensamento infantil. É
diferente de pensar na existência do Rei de Portugal ou na Rainha da França,
eles eram mitos distantes. Mas pensar que Clarice escreveu aquelas palavras que
eu lia e que pareciam escritas para mim, que pareciam diálogos que ela travava
comigo, era surreal demais para meu pobre coração. Quis voltar no tempo e
encontrá-la, especificamente nos dias em que ela escreveu aquelas palavras, a
fim de que ela própria confirmasse que ambos somos feitos do mesmo barro.
Impossível, naturalmente, afinal sempre fui um homem inviável constituído de
impossibilidades.
Será que ele eu éramos
feitos do mesmo barro? Para isso eu não precisaria desejar voltar no tempo.
Pelo contrário, desejava que o tempo passasse mais rápido, desafiando todas as
leis da lógica e da natureza, e que ele chegasse logo para que eu pudesse olhar
em seus olhos claros, que eu supunha indisfarçavelmente tristes, e confirmar o
que meu coração e minha mente suspeitavam, para que ele confirmasse que minha
pulsação alterada era indício da sabedoria do meu corpo sobre os mistérios de
existir. Algo em mim vibrava quando sentia a aproximação dele, mesmo que não
física. Eu gostava da sensação de sabê-lo próximo. Apesar da ansiedade e da
tensão desse encontro, do desconforto do banco onde estava sentado e da
ausência etérea da voz de Clarice, que em momentos como aquele me arrebatava
ainda mais, eu estava em paz porque encontraria alguém que dava indícios – pelo
menos em meu imaginário – de ser uma possibilidade de amor.
Éramos tão desconhecidos e
ao mesmo tempo tão próximos. E embora fosse angustiante essa esfera vermelha
que se expandia em meu peito, eu estava arrebatado. Vivíamos de limites, de
precariedades, de antagonismos. Minha mente era inundada por pensamentos
contraditórios. Sentia um prazer enorme por saber que existia alguém que se interessava
por mim do jeito que eu era e logo pensava que muito provavelmente ele não me
conhecia, porque eu mesmo devia ter me mostrado com algumas nuances abrandadas
para ser mais facilmente aceito. Sentia uma paz quase búdica por saber que eu
poderia criar um elo profundo com alguém sem necessitar de defesas e sem
sentir-me ameaçado. E encadeada com essa sensação eu era invadido por uma
insegurança tremenda por pensar que essas experiências eram apenas projeções de
um sujeito inquieto e solitário que, em última instância, somente queria amar e
ser amado. Sentia uma ponta de medo pulsando no estômago por pensar que assim
como eu projetava nele meus sonhos de amor, ele fazia o mesmo, tentando fazer
de mim a peça quadrada que encaixaria no redondo espaço vazio de sua
existência. Será que ele me via de verdade ou via algo que queria ver? Será que
eu conseguiria corresponder às suas expectativas? O que ele queria, afinal, de
mim? A cada passo que eu dava em direção ao local marcado para nosso encontro
surgia um novo questionamento. Porém, ao invés de ser refreado em meus impulsos
na direção dele com esses pensamentos, comecei a andar mais rápido, como se
pudesse deixar toda dúvida para trás se corresse ao seu encontro.
Caiu a noite, dura e fria.
A garoa cessara e as luzes dos postes refletiam fugidias nas poças d’água das
sarjetas. A rua, antes frenética de automóveis e pedestres, silenciara. Era
como se o tempo tivesse parado. Não havia sons externos, não havia movimento
fora de mim. Havia somente Clarice, a espera e eu. Eu conseguia ouvir meus
batimentos cardíacos, sentia minha pulsação acelerar e uma sudorese viscosa na
testa, que tentava secar passando a manga do casaco. Ele estava sensivelmente
atrasado, mas tentei achar uma desculpa, como habitualmente faço. Em mais de
duas horas muitas coisas poderiam acontecer: Poderia ser o trânsito; ele
poderia ter tido problemas mecânicos com o carro, com o táxi, com o ônibus, van
ou lotação, com o Zeppelin, balão ou helicóptero, porque não sabia de que forma
chegaria; poderia ser um acidente com ele; poderia ser um acidente com outra
pessoa que impediu a circulação porque a pista estaria inundada por produtos
químicos altamente tóxicos; poderia ter errado o caminho e ter se perdido na
cidade que mal conhecia, até acabar em uma boca de fumo, sendo seqüestrado por
uma facção terrorista da Al-Qaeda na América Latina; podia ser medo, dor de
barriga, ataque cardíaco fulminante, aneurisma cerebral, falta de vontade,
falta de jeito, falta de interesse, bomba nuclear, abdução alienígena,
convocação militar para defender nossas fronteiras de ataques do Irã. Poderia
ser ele, poderia ser eu. Poderia não ser nada. Nada disso.
Esperei. Pensei. Busquei
justificativas. Segurava o telefone entre as mãos quase numa súplica para que
tocasse. Silêncio. Não resisti e tentei fazer uma chamada. Caixa postal.
Escrevi uma mensagem dizendo que estava aguardando no lugar marcado, que
entendia o atraso, supunha que algo de grave estava acontecendo e que ficaria
esperando por ele, mas não tive coragem de enviá-la. Ainda restava em mim algum
orgulho ordinário e descabido. Tentei recobrar a calma voltando às páginas
finais do livro. As últimas palavras de Clarice para mim naquela noite foram:
“[...] de súbito, numa primeira
experiência de vergonha, ele sentiu dentro de si um movimento horrivelmente
livre e doloroso, um vago ímpeto de grito ou choro, alguma coisa mortal abrindo
no seu peito uma clareira violenta que talvez fosse um novo nascimento”.
E foi um novo nascimento. Será que ele eu éramos feitos do mesmo barro? Nunca saberei. Engoli o choro, coloquei Clarice no bolso interno do casaco para protegê-la do mundo, ergui a gola, coloquei as mãos nos bolsos e saí rua afora sem rumo certo, saltando sobre as poças d’água, como fazia quando criança, até exaurir os pés ou até as poças e as lágrimas secarem.
* [Clarice Lispector: “O Lustre” (1946)]
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