terça-feira, 25 de junho de 2013

SOBRE FÁBULAS E GIGANTES


Ontem ouvi um relato com o qual fiquei profundamente tocado. Um amigo comentava sobre um tempo em que trabalhou com integrantes do Movimento Sem-Terra (MST) em um assentamento nos confins deste imenso país. Ele falava sobre as dificuldades dessas pessoas sem condições dignas de moradia, sem escola, sem alimentação, sem higiene, vivendo em barracões e dormindo em camas de varas e em constante tensão, devido às represálias violentas de latifundiários e capatazes de fazendas. Uma vida dura que a maioria de nós, urbanóides de classe média, só conhece pelos jornais e pelas frestas das janelas que abrimos vez ou outra para ver como é o mundo do lado de fora do nosso bunker climatizado a acarpetado.

O trabalho dele era prestar apoio emocional e espiritual a essas famílias, tão privadas e carentes de tudo. Um dia, ele decidiu fazer um momento de reflexão com um grupo. Abriu, então, espaço para quem desejasse falar sobre o que sentia, para que fizessem pedidos ou expressassem desejos íntimos. Nesse momento, uma senhora, mãe de dois filhos, ergue a mão. A palavra é concedida a ela. Então ela diz que desejava que Deus permitisse que naquela região existissem mais flores. Disse que queria que essas flores desabrochassem porque os beija-flores estavam quase sem alimento, uma vez que a seca na região estava sendo severa e a vegetação estava morrendo.

Na hora, contou-me ele, a primeira coisa que pensou foi: “Uma pessoa que está em uma situação tão extrema se preocupar com a alimentação dos beija-flores? Com tanta coisa para se preocupar, com filhos fora da escola, vai pensar em pássaros? Tem alguma coisa errada nisso”. A reflexão que meu interlocutor me deixou foi a de que, mesmo nas situações mais adversas, mesmo sendo privados de tudo, não podemos deixar que a vida nos embruteça. E ele me dizia que levava para sua própria vida, desse momento com essa senhora humilde, uma grande lição: a de manter vivo dentro dele o que existe de mais humano. E confessou a mim que desde então traz consciente um esforço diário para não deixar de pensar nas necessidades daqueles que o cercam, preocupar-se com as necessidades dos beija-flores, mesmo que suas costas doam e sua barriga ronque de fome. E eu consegui sentir a verdade do que ele dizia através de sua voz serena e seu olhar profundo.

Tenho tentado ver de perto o que está acontecendo no país. Pinço aqui e ali informações sobre essas manifestações que invadem as ruas, que em última instância clamam por um país melhor e mais justo, tentando deixar de lado minhas emoções, quase sempre afloradas e erráticas. Tenho o sentimento de que essas mobilizações públicas são o retrato de um país que ainda engatinha no que se refere à democracia. Um país que está aprendendo a reivindicar coletivamente nas ruas seus direitos, que não conhece ainda o que é ter liberdade de expressão e que, num dado momento, renega a coletividade de determinados grupos mais heterogêneos. E principalmente que é manipulável por um poder paraestatal e estatal, orquestrado pela mídia e por alguns partidos políticos que estabelecem diferenças maniqueístas do tipo "nós, os bonzinhos" e "eles, os malvados". Acho que a questão é maior que esse debate dicotômico “pacifismo VS. Violência”, partidário contra não partidário, a luta do rochedo com o mar, do Estado com (contra?) o cidadão.

Percebo que existe uma cisão entre dois discursos ideológicos, que acabam criando dois grupos bem distintos. Vendo o que vem ocorrendo em Porto Alegre tenho isso bem claro. Em uma das noites de manifestações, nas duas vias da Av. Ipiranga, separados pelo Arroio Dilúvio, estavam dois grupos: Um, “pacífico”, “politizado”, fazendo uma marcha de cara limpa e com palavras de ordem e cartazes de protesto em punho. Do outro lado do arroio havia outro, enervado, de rostos cobertos, gritando desordenadamente e portando pedras e paus. O primeiro usa a voz para ser reconhecido. O segundo ameaça a ordem e o patrimônio. A mídia traz, de forma emblemática dentro de uma lógica de consumo capitalista, que "milhares de pessoas seguiram pacificamente pelas ruas e um pequeno grupo agiu com violência". Protesto Pacífico e Vandalismo são produtos de consumo agora. Guerra e Paz sempre venderam muito. Obviamente, a guerra é muito mais lucrativa. E não é de hoje. Essas abordagens me causam desconforto. E tenho percebido que esse discurso é sistematicamente repetido. Parece que existe uma forma certa e uma forma errada de ir às ruas. E concordo que, em certo sentido, existe mesmo. Não acho que depredação do patrimônio público e violência sejam formas eficazes de reivindicação. Pelo contrário, é são formas até um tanto burras. No fim, todo mundo paga a conta e ninguém consegue o que quer. Mas talvez a questão seja ainda mais profunda. Não é somente o vandalismo em si, mas a construção midiática – e social - que se faz do vândalo.

Agora, ergue-se a bandeira de uma manifestação sem bandeiras partidárias. Confesso que acho um tanto contraditório. O brazilian way of life “meu partido é um coração partido” é uma quimera, amigos. E tenho os três pés atrás com esse tipo de discurso. Afinal, de que forma os grupos se organizam politicamente sem um partido? Essas organizações não deveriam, independente da sigla, estarem afinadas entre si e com a totalidade do movimento? Rasgar bandeiras partidárias não será uma forma meio torpe de pulverizar as reivindicações e tirar o foco político das manifestações? Lembremos que foi um grupo (bastante!) partidário que começou esse movimento, o Movimento Passe Livre. Onde está a liberdade de expressão e a livre associação política? Que regras são essas que pululam agora que parecem querer estabelecer um modus operandi ou um código tácito e implícito de conduta para as manifestações públicas que nega sua origem? Queimar as bandeiras dos partidos políticos, levantar cartazes reivindicando questões com propósitos de origem e matrizes ideológicas bem duvidosas, literalmente vestir a bandeira do Brasil e cantar emocionadamente o Hino Nacional, reivindicando de forma vazia e imprecisa que o país simplesmente mude, parece ser a reinvenção de um ufanismo nacionalista rançoso com uma carga fascista quase patológica.

Como todo “guri” que viveu preso e é libertado do controle paterno, o Brasil saiu correndo ensandecido pelas ruas, gritando eufórico sua liberdade, querendo provar tudo, tocar em tudo, absorver tudo, desajeitado e meio inconsequente. O “gigante” parece um elefante na loja de cristais. Mas talvez estejamos provando uma falsa sensação de liberdade. Talvez estejamos ainda dentro do cercadinho que papai montou para poder nos controlar. Será que não nos tornamos os manifestantes que “eles” querem que sejamos? Será que não estamos sendo condicionados e formatados a pedir o que queremos “do jeitinho” que “eles” querem? Parece que basta, para que exerçamos nossa cidadania, para que sejamos “brasileiros, com muito orgulho, com muito amor”, vestirmos máscaras de Guy Fawkes (aquela da série V de Vingança), que a imensa maioria não tem a menor ideia de quem foi, nos enrolarmos em nossas cangas de praia com a estampa da bandeira do Brasil e redescobrirmos um amor pelo país que há muito tempo abandonamos, se é que algum dia sentimos. Esse patriotismo todo soa fake aos meus pobres olhos que já viram muita bobagem acontecer. 


O gigante não está acordando, ele é ainda um recém nascido, desengonçado e bobalhão. Não adianta obrigá-lo a andar de monociclo fazendo malabarismos se ele está aprendendo a engatinhar e a balbuciar precariamente seus desejos e necessidades. E lá no fundo, algo me diz que ele tem muito para amadurecer no que se refere a lutas sociais. Ainda temos muito para aprender. Não sei se o país anda no caminho certo. Nem sei qual seria o caminho certo. Tampouco se existe um. Que o caminho se aprende ao trilhá-lo é tudo o que sei. A gente aprende a caminhar, caminhando; a falar, falando; a reivindicar, reivindicando. E a viver em sociedade, vivendo. Independente de estarem acontecendo coisas certas do jeito errado, que pelo menos consigamos nos conectar aos nossos sentimentos mais humanos. E que não nos esqueçamos também dos beija-flores. Assim como nós, eles também tem fome. 


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