sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

DOS RITOS DE PASSAGEM

Photoallegory of Sarolta Bán 

“E é hoje o dia da faxina mental. Jogue fora tudo que te prende ao passado, ao mundinho de coisas tristes. Fotos, peças de roupa, papel de bala, ingressos de cinema, bilhetes de viagens e toda aquela tranqueira que guardamos quando nos julgamos apaixonados.
Jogue tudo fora, mas principalmente esvazie seu coração. Fique pronto para a vida, para um novo amor.”
(Carlos Drummond de Andrade – Faxina na Alma) 

“Amar é mudar a alma de casa”. Esta frase de Mário Quintana tem me perseguido nos últimos dias. Perseguição boa, diga-se. Tenho sido perseguido por memórias, afetos, lembranças de um passado distante e de um passado recente, enquanto remexo baús e reencontro coisas bonitas, que foram guardadas com carinho e acabaram esquecidas, porque esquecer é tão necessário quanto relembrar.

A frase está impressa em uma caneca de louça amarela, onde também está estampada uma caricatura do autor. Foi um presente recebido há muito tempo, de uma pessoa que foi muito importante no passado, com quem vivi durante alguns anos, mas que hoje não existe mais em minha vida. Encontrei-a guardada no fundo de um armário, quando fazia a chatíssima e sempre necessária limpeza de final de ano. Encontrá-la me fez pensar nos significados que dou às coisas. 

No início, a caneca tornou-se um objeto de decoração na “nossa casa”. Mudei minha alma de casa e a antiga morada deixou de ser “nossa”. Tempos depois, na morada seguinte, minha e da minha alma, a caneca virou um porta canetas sobre minha escrivaninha, que ficava de frente para uma janela ampla, por onde entrava toda a luz que na casa anterior eu não tinha. Um dia a luz dessa casa se foi e mais uma vez mudei-me.

Em meu novo lar, esse porta canetas virou simplesmente uma xícara. Quando recebia visitas, oferecia nela bebidas quentes aos meus visitantes. Eu mesmo usei-a pouquíssimas vezes para beber algo. Não sei conscientemente por qual razão nunca a utilizei no meu dia a dia. Vez ou outra alguém comentava algo sobre o objeto, mas para mim não passava mais de uma bonita caneca amarela com a cara do Quintana estampada num sorriso meio irônico.

Como tudo é impermanente, mudei novamente de casa. A caneca me acompanhou, por questões de necessidade, porque eu precisava do utensílio. Mais uma vez acabei substituindo-a por outras xícaras, copos e canecas, comprados ou presenteados por outras pessoas que habitaram o meu mundo. E ela foi ficando de lado, indo cada vez mais para o fundo do armário onde guardava louças, encoberta por novas lembranças.

É por isso que gosto de fazer uma faxina no fim de cada ano. Aproveito esse momento de me desfazer de coisas que não servem mais para fazer meus balanços e reavaliar todo o ano que vivi. Repenso meus erros e meus acertos e vejo no que progredi e no que regredi. Separo três caixas: na primeira aquilo que realmente necessário; na segunda, o que talvez seja; e na terceira, tudo aquilo que não me serve mais que deverá ser descartado para me libertar de toda a energia estagnada ao longo do ano. Guardo o conteúdo da primeira e os das duas outras me desfaço, dispenso, doo, coloco no lixo. Faço essas reflexões sobre minhas posturas e minhas atitudes o tempo todo, em qualquer época do ano, mas costumo esvaziar armários nesta época. Essa materialidade de separar coisas que não servem mais dá outro clima à reflexão.

Percebo que a vida tem sido um devir cada vez mais intenso. Mudei de cara e cabelos, mudei de olhos e riso, mudei de casa e de tempo, mudei de roupas e vícios, mudei minha alma de morada. Tive também minha casa abandonada por outras almas em outras situações. Mas percebi que tenho mais experiências acumuladas na primeira caixa que nas duas seguintes. Minha caixa das coisas necessárias ao coração e ao espírito está muito mais cheia neste ano que as caixas com as coisas que devem ser abandonadas.

Mais uma vez refaço trajetos e ressignifico experiências. É neste momento que me reencontro com essa caneca. Fiquei um tempo com ela nas mãos, como se fosse um relicário, resgatando e reconstruindo memórias. Então, embrulhei-a em jornais velhos e coloquei-a na primeira caixa. E junto com ela, as memórias de todas as pessoas que passaram pela minha vida neste ano. Algumas dessas pessoas ficaram, outras seguiram seus caminhos, mas de alguma forma todas ficarão gravadas indelevelmente nas minhas retinas. A caneca vai comigo para minha nova morada, porque agora é hora de mudar a alma de casa mais uma vez. Talvez sirva para eu preparar cup cakes para meus queridos, cobertos com confeitos coloridos ou chantilly, ou para colocar ração para o meu gato, quando eu tiver um.  

E nesses dias de retrospectiva, no meio de toda a agitação consumista, festiva e espiritualista desta época, onde sempre tem um novo patuá para amarrar na cueca da cor do orixá regente do ano, para que o ano que vem seja “o ano”, penso nas minhas maneiras de viver, de buscar amor e de guardar memórias. Penso na minha forma de atravessar meus ritos de passagem e em como construí minha história até agora.

Não acredito em listas de metas, porque não costumo atingi-las, nem de desejos, porque sempre quero muito, mesmo que pareça ser modesto, tampouco faço promessas para o ano que vem, porque no fundo sei que não cumprirei. Apenas renovo esperanças. Não no ano que começa, nem nas pessoas, mas em mim mesmo. Talvez seja o máximo de generosidade que consiga exercitar comigo. Deixo que a vida me leve, que se seja suave, que seja consciente, que seja plena. Lembro-me de Drummond, que falava sobre o Ano Novo e sobre as possibilidades de renovarmos esperanças e zerarmos os contadores de tempo. É dele a frase: “É dentro de você que o Ano Novo cochila e espera desde sempre”. 

Acho que é isso. Não é no calendário maia que está a resposta para nossas vidas. A verdade nunca esteve lá fora, contrariando o que diziam no seriado. O Ano Novo vai ser o início de mais uma sequência de dias, que inicia e finda, finda e inicia e vice versa, mesmo que digam as más línguas (maias) que será o último. Para muitos será mesmo o último, para outros será o primeiro, mas para a maioria será apenas um ano a mais, parafraseando Saramago. Não sei ainda o que o destino reserva para a caneca amarela do Quintana ou para mim. Quem sabe no próximo ano ela e eu tenhamos lugares completamente novos. 

sábado, 17 de dezembro de 2011

OS TONS PASTÉIS DE ALMODÓVAR


Para Josi, com carinho.

Quero deixar claro que não farei spoiler aqui. Não vou ser mais um chato que sai do cinema e contando o final do filme para aqueles que estão aguardando na fila a sessão seguinte. Tampouco quero fazer uma resenha crítica. Quero fazer o que sempre faço depois do cinema (e não somente): tirar os sapatos, acender um cigarro, beber um chopp e falar sobre o que senti quando saí da sessão. E acho que todos deveriam assistir ao filme antes de ler o que escrevi aqui.


Desta vez ele chegou menos rojo y caliente. Cá entre nós, tenho a impressão que esse moço tá diferente. A crítica especializada, que não é o meu caso, diz que este filme é um marco em sua carreira, sendo um divisor de águas na filmografia do diretor. Em La Piel que Habito, a nova produção de Pedro Almodóvar, o diretor inova no gênero de terror, fazendo um Thriller que conta a história do conceituado cirurgião plástico Robert Ledgard (Antonio Bandeiras), que após sua mulher Norma (Blanca Suárez) sofrer um acidente de carro, onde tem seu corpo desfigurado na explosão do veículo, se interessa pela criação de uma pele com a qual poderia curá-la. Anos depois, ele consegue cultivar esta pele em laboratório, aproveitando os avanços da ciência e atravessando terrenos proibidos, como o da transgênese e a utilização de cobaias humanas. Esse é o ponto de partida de onde as cortinas se abrem e a trama toda se desenrola.

Em minha pobre opinião de leigo, espectador e fã - e ser fã talvez me tire o direito de criticar imparcialmente - não vi aquele Almodóvar visceral, intenso, colorido, ilógico e debochado, que contrasta alegrias e tristezas. Vi um diretor um tanto pasteurizado, numa narrativa ora fria e contida, ora contundente e violenta, porém meticulosa e de precisão cirúrgica, como o protagonista da trama. O filme é genial em vários aspectos, mas não traz aquele “fogo uterino” que arrebata e incendeia a gente por dentro na cadeira do cinema. O fato é que La Piel Que Habito não me causou a mesma estupefação dos filmes anteriores. Não sei se ando meio desacreditado em tudo, viciei o olhar na mesmice ao ponto de não ver o novo, ou se eu mesmo criei uma pele artificial para Almodóvar habitar. Pele esta que, como no filme, não era a própria e jamais seria. Por mais que eu quisesse. E faço um mea culpa: faço isso com as pessoas às vezes. E o que fiz com Almodóvar foi julgar que talvez não coubesse nele a pele de diretor de Thriller de terror psicológico, porque me identifico muito com os filmes que relatam dramas familiares com cores fortes, do ponto de vista de personagens femininos. E Almodóvar, para mim, são essas mulheres fortes, esses travestis intensos, esse vermelho explosivo. Não me atrai tanto o que é contido, frio e sisudo. Estou mais para Mulheres à Beira de Um Ataque de Nervos que para Gritos e Sussurros, mais para Tudo Sobre Minha Mãe que para Sonata de Outono. E quem me conhece entende o que quero dizer.

Para aqueles que já estão preparando as tochas e as pedras para me perseguir, reconheço que vi, lá no fundo, as “cores de Almodóvar”, apesar do estranhamento inicial. Identifico o iconoclasta “das antigas”, de muitas emoções e poucos recursos, e o cineasta mais maduro da atualidade, obcecado por explicar suas referências. Em uma entrevista o diretor chegou a dizer que tinha a intenção de fazer um filme de terror pouco convencional, ao adaptar a obra Tarantula (Mygale), do escritor francês Thierry Jonquet. E certo, ele consegue. La Piel Que Habito é um filme denso, há uma tensão e uma atmosfera de violência constante, causa desconforto e certa repulsa a algo que não identificamos o que é. Aí que vi o “velho Almodóvar”. Ele continua remexendo nossas vísceras e pondo o dedo em nossas feridas mais íntimas e escondidas, nos tirando da zona de conforto, tão cara a muitos, e nos desestabilizando bravamente.

Tecnicamente, Almodóvar investe na clausura dos ambientes, não apenas dentro bunker em que a misteriosa Vera (Elena Anaya) vive, meio mítica, mas de uma forma geral. A beleza estonteante de Elena Anaya faz com que os olhos não sejam tirados dela, sempre inebriados com aquela personagem tão paradoxal e instável. Em meio a tons frios e obras de arte que remetem diretamente ao tema central do filme, representando corpos nus e sem rosto, suas cores saltam os olhos quando aparecem meio à penumbra ou até mesmo  nos planos fechados.  É bastante utilizada a técnica de grandes planos de cima para baixo, chamados planos plongè, dando a ideia da pretensa superioridade do médico que quer brincar de Deus, quando manipula seus experimentos e as vidas das pessoas que o cercam, transgredindo normas para satisfazer seus desejos.

É possível identificar sua linguagem própria na fotografia, nas atuações de Antonio Banderas, que volta a ser o alvo da lente de Almodóvar 22 anos depois de Ata-me, e da estupenda (e eterna) Marisa Paredes, menos diva e mais mulher neste filme, e principalmente no roteiro imbricado, profuso e profícuo, apesar de algumas coisas terem escorrido por entre os dedos do diretor. Mas vi um Almodóvar em tons pastéis com algumas pinceladas de carmim e fúcsia ali e acolá. São identificáveis na narrativa os elementos do terror, obviamente, como o cientista louco e a cobaia. Porém, não chega a ser um filme de gênero porque existem simbolismos demais nas ações, bem típico do diretor, que acabam encobrindo-as, embora os símbolos presentes sejam realmente utilizados como tais, como as lâminas, as navalhas e as armas.

Almodóvar brinca de Hitchcock, deixando várias pistas sobre a trama, aparentemente desimportantes, enquanto transita pela narrativa através dos característicos flashbacks. A trilha sonora original, a cargo de Alberto Iglesias, é bastante apropriada à atmosfera da trama e a participação da cantora Concha Buika é primorosa. Há uma referência bem clara ao interessantíssimo filme Les Yeux Sans Visage (Os Olhos Sem Rosto), de Georges Franju, de 1960, e também ao famoso personagem do Dr. Frankenstein, de Mary Shelley. Em todos os casos há a figura do homem da ciência, vaidoso, soberbo, talentoso e sem qualquer escrúpulo, ultrapassando limites éticos e morais, brincando de Deus não só por mera ambição, mas em nome da primazia de uma conquista ou da superação de uma culpa excruciante, um homem sem limites para atingir seu gozo e estabelecer uma lógica particular de justiça.

Assim como no clássico Frankenstein, o criador Robert Ledgard é traído. Sua obra, a pele indestrutível e perfeita criada para ser habitada por Vera, não lhe coube. Ele quis mudar de pele, retroceder no tempo, vingar-se, satisfazer seus impulsos, mas foi traído pela soberba e pela perfeição de sua obra. Como Basil Hallward, cuja obra de arte eternizou a beleza e juventude de Dorian Gray, no livro O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, a beleza e a perfeição não foram suficientes, por serem instáveis e efêmeras, e ambos sucumbiram. Vera tem um corpo construído para corresponder a uma imagem perdida. Ela é uma espécie de Eva que se constrói por subtração e vive no limbo da vaga memória da forma original mítica. Ledgard não tem limites para seus experimentos e castra completamente a liberdade de Vera que, por sua vez, desenvolve por ele uma dependência bastante controversa. Paralelamente, Marília (Marisa Paredes), a fiel empregada da casa de Ledgard, tem a função a ajudá-lo, sempre à sua sombra, porém com papel fundamental.

Almodóvar brinca brilhantemente com questões profundas e feridas abertas de nossa sociedade. Lança um olhar sarcástico sobre as formas de alienação frente à angústia, voyeurismo e fantasias de castração, além de trazer temas recorrentes, como a transexualidade, transgressões sexuais e relações de poder. O transtorno psicológico dos personagens é apresentado de forma interessante, fazendo com que ali não tenhamos vilões nem mocinhos, mas pessoas presas em mundos diversos e novos, ultrapassando os limites do possível e do real para levar a cabo um ideal de verdade, concretizar uma realidade existente apenas no interior de uma mente doentia. Somos levados a questionar quantas vezes não infringimos regras éticas e morais nas nossas relações, transgredindo normas e negligenciando pessoas para que um mundo criado por nós faça sentido. A todo tempo, questionamos a paixão do protagonista pela ciência contraposta à paixão por sua esposa, ou mesmo a angústia sobre os acontecimentos relacionados à sua filha.

Claro que existe toda sorte de leituras psicanalíticas possíveis para essa história. Arrisco uma, talvez, que diz respeito ao mistério sobre o corpo próprio, o corpo sexuado, as construções relacionais do ego dadas pela via do corpo, a primeira forma de relação estabelecida entre indivídulo e mundo exterior, a memória do corpo, e a diferença entre os sexos. Pensemos no Banquete, de Platão, onde é apresentado o ser andrógino que estaria na origem dos sexos. Cindido, esse ser teria dado origem ao macho e à fêmea, ao masculino e ao feminino. A androginia, nesse sentido, seria expressão da nostalgia de um estado original, inscrito no inconsciente coletivo, que ganha forma na mitologia.

Saí da sessão com me interrogando, angustiado: Mas afinal que pele habito? Que pele quero construir para vestir a mim e aos outros? Quantas vezes tentamos fazer uma pele perfeita, resistente, para cobrir o corpo alheio, estranho, na esperança de que essa pele seja assumida como própria? Construímos uma pele artificial para outro ser habitar. Projetamos nossos anseios, nossos desejos, nossos sentimentos de solidão, dor, perda, vingança para um ser externo ao nosso mundo, tentando adequá-lo às nossas necessidades, forçosamente. Por mais que tentemos criar uma nova pele para habitarmos ou para ser vestida por outro, sempre tem algo de essencial que permanece e isso vem à tona, hora ou outra.

Almodóvar não deixou de ser Almodóvar. Mas é outro Almodóvar, em outro momento, com outra narrativa. Ele não criou uma pele para habitar, talvez tenha mudado espontaneamente de pele, o que é natural. Ele mostra que é possível mudar de rumo sem perder a essência. Por isso sugeri que este texto somente fosse lido por aqueles que já assistiram ao filme previamente. Além de ser um convite para um chopp, mesmo virtual, depois da sua sessão, não quero criar uma pele para você habitar.


 [link da música “Por El Amor de Amar” - Concha Buika].



Ficha Técnica: La Piel Que Habito. Espanha, 2011. Direção: Pedro Almodóvar. Roteiro: Pedro Almodóvar, Thierry Jonquet(romance). Elenco: Antonio Banderas (Robert Ledgard), Elena Anaya (Vera Cruz), Marisa Paredes (Marilia), Jan Cornet (Vicente), Roberto Álamo (Zeca), Eduard Fernández (Fulgencio), José Luis Gómez (Presidente del Instituto de Biotecnología), Blanca Suárez (Norma Ledgard), Susi Sánchez (Vicente’s Mother), Bárbara Lennie (Cristina), Fernando Cayo (Médico).

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

REVEZ(S)ES

Rafael Perez: “Relationship VIII


[Para ler ao som de Juan Carlos Cobian – Nostalgias]

 
Então temos um trato: Você me dispensa e eu fico arrasado. Eu continuo lhe querendo, mesmo de longe, e você pode seguir sua vida como se eu não tivesse atravessado seu caminho. Voltamos à estaca zero, fica tudo igual, zeramos os cronômetros. Ou nada disso aconteceu e foi o mundo que virou do avesso.



Trouxe este presente para agradecer seu carinho. Espero que você goste. Não escolhi muito, não. Nem tinha pensado em fazer uma surpresa para você. Vi uma vitrine e lembrei-me dos seus olhos, tão doces e tão tristes, e achei que esta pequena prenda deveria ser sua. Além desta entrega especial, vim aqui lhe dizer que lhe quero um bem enorme. E dizer que a gente não manda no coração, que ninguém é inocente neste jogo de brincar de viver e nem sempre fazemos escolhas certas.

Sem querer fazer um grande drama, mas já fazendo, porque essa é definitivamente minha natureza, estou acostumado a ser dispensado. Sou bem cafoninha quando estou apaixonado, você sabe. Sou de tentar grandes gestos, grandes façanhas, grandes feitos. E sou das coisas simples também, das singelezas cotidianas, de café da manhã na cama, esperar para alcançar uma toalha sequinha no banho e entregar chinelos para confortar os pés cansados no fim do dia.

Até que encaro numa boa o fato de ter sido quase sempre abandonado. Sempre tem uma música que cante minha dor de cotovelo e mais uma dose para me consolar, desde mi triste soledad e sempre tem a minha mesa no mesmo bar para emborachar mi corazón. Você me conhece há muito tempo, não é mesmo? Quanto? Uns cinco anos? Quantas vezes eu fui abandonado e quantas vezes abandonei alguém? Você lembra? Acho que nunca abandonei ninguém, sempre foi meu papel sofrer por ter sido abandonado. Você acompanhou, com lealdade impecável, todos mis fracassos y mis angustias de sentirme abandonado. Mi vida es un tango, Hermano.

Faz um bem danado ser cortejado, né? Eu não tive muitas experiências dessas de ser objeto de desejo. Isso mexe com meus brios. É delicioso ver que tem alguém cujos olhos brilham só de ver você. E quem disser que não fica envaidecido, mente. Mas não, não gosto dessa situação. Estou tão acostumado a ir à luta e batalhar (muito!) pelo que quero que não precisar fazer nada além de existir, sorrir e estar ali é meio despropositado para mim. Fica uma sensação que a outra pessoa precisa saber algo sobre mim que não está conseguindo ver. E fica uma obrigação cheia de culpa cristã, meio amarga e meio pesada, de retribuir o carinho ofertado. Fico angustiado porque não sei muito bem lidar nem com as minhas próprias frustrações, quanto mais com as frustrações que sou capaz de causar nas pessoas.

Por falar em angústias e frustrações, vim aqui por um motivo em especial. É muito triste ver alguém que gosta da gente realmente e não sentimos nada, absolutamente nada, além do carinho que dispensamos a qualquer ser humano que faz de tudo para nos agradar. Quero dizer que sempre me coloco no seu lugar. No fundo, sei que essas operações tendem, invariavelmente, a se tornarem kamikazes. E quem se ferra sou eu porque serei detestado no momento seguinte e pelo resto da vida. La verdad es que sos um tango en mi vida, Hermano, un tango gris.

A situação de ter que dizer “não quero” é muito mais desconfortável para mim que para você. Y aquí vengo para eso, Hermano: O fato é que você tem interesses e desejos que não poderei satisfazer. Porque eu quero outras coisas e não poderei ser o que você espera de mim. Além disso, você espera de mim coisas que não sou e não poderei jamais ser. É... você me criou. Esse ser que você diz amar não existe. Não vou poder dizer que e problema não é com você. Porque é com você, sim. E é comigo também, claro.

Fico constrangido e sinto vergonha por nós dois. Por mim porque acho que não é nada nobre da minha parte essa covardia de não dizer que não adianta você fazer nada para me agradar, porque não vai ser suficiente para eu mudar meus sentimentos. Não acordarei, num passe de mágica, numa manhã ensolarada de primavera e descobrirei que te amei a vida toda e que você é a pessoa com quem quero ficar pelo resto dos meus dias. Não que não goste de você, não é isso. Eu gosto muito, mas justamente por gostar não acho honesto da minha parte apenas dar um sorriso amarelo enquanto você acha que meu sorriso é de admiração porque você fez coisas grandiloqüentes por mim, quando na verdade queria dizer: “Desista! Nada vai adiantar. Só quero que você me faça companhia, sem adereços, sem performances e sem tentar me convencer que lhe amar vai me salvar. Levante agora do chão, não é ajoelhado aos meus pés com essas promessas que você vai me persuadir. Você está sendo ridículo tentando me comprar com declarações pobres e presentes caros!”

Sinto vergonha por você porque você se humilhou todos esses anos, implorando migalhas de atenção que eu não podia oferecer. Porque embora você não veja dessa forma, acho que não foi bonita sua atitude de cercar todos os meus amigos para se infiltrar no meu mundo, fazer serenatas de madrugada debaixo da minha janela, me acordar com ligações melosas e declarações sussurradas com a voz pastosa e a língua enrolada pelo álcool, fazer vídeos com suas memórias da gente, memórias que eram só suas e não minhas. Tornou-se pesado receber seus inúmeros presentes. Você me seguia onde eu estivesse. E suas surpresas sempre vinham acompanhadas de cartões embebidos em seu perfume, porque eu tive a infeliz ideia de dizer que gostava do perfume que você usava e você começou a borrifá-lo em tudo que tocava. Passei a odiar aquele cheiro almiscarado, forte e levemente adocicado. Era o cheiro das suas mãos finas, frias, macias e úmidas. Era o cheiro que ficava impregnado na minha pele depois que você me tocava intencionalmente, sempre quando eu estava distraído ou quando não conseguia evitar contato físico. Aquele cheiro ficava impregnado em mim pelo resto do dia ou da noite, como uma marca de condenação. Eu estava condenado a ter você em mim, quisesse eu ou não.

Assusta-me ser colocado num pedestal, meio sacralizado. Foi isso que você fez. Colocou-me à força num pedestal e borrifou em mim seu sufocante perfume almiscarado que me deixa nauseado. Sei que não sou da forma como você me vê. E me sinto na obrigação de dizer que não é nada disso, ou quase nada. Você deve pensar que estou perdendo a grande chance de ser feliz ao lado de alguém que realmente gosta de mim, que você é capaz de me fazer feliz. Acredito que você tem todos esses atributos que diz ter. Acredito que você é capaz de fazer alguém feliz, sim. Você tem virtudes, tem qualidades, tem caráter. Mas não vai me fazer feliz. Porque aqui dentro de mim não pulsa aquele algo inominado que deveria pulsar toda vez que eu olhasse para você. Meu coração não dispara, minhas pupilas não dilatam, não tenho sudorese quando vejo você. Não acha isso sintomático? Eu acho. Se isso não acontece comigo só pode ser por um motivo.

Não tenho muito tato para dizer as coisas. Talvez eu seja direto demais. Em situações desconfortáveis como esta, de dizer adeus porque sou incapaz de corresponder aos seus sentimentos, tenho vontade de lhe colocar no colo, contar uma história bonita, fazendo um afago em seus cabelos e dizer: “Siga seu rumo, vai ficar tudo bem. Você vai achar alguém muito mais legal que eu. E eu vou achar alguém também, talvez não tão legal quanto você. Mas a gente não manda no coração, não é mesmo?”. Então, depois que você adormecesse, eu levantaria e iria embora sem olhar para trás. Sem ver seus olhos, ainda marejados pelo abandono, e sem mostrar os meus, marejados pela vergonha de ter abandonado você. Mas não sou assim. E é por isso que a hora de ir é agora...Y después, por los dos mi copa alzar, y así poder brindar por los fracasos del amor...