sábado, 17 de dezembro de 2011

OS TONS PASTÉIS DE ALMODÓVAR


Para Josi, com carinho.

Quero deixar claro que não farei spoiler aqui. Não vou ser mais um chato que sai do cinema e contando o final do filme para aqueles que estão aguardando na fila a sessão seguinte. Tampouco quero fazer uma resenha crítica. Quero fazer o que sempre faço depois do cinema (e não somente): tirar os sapatos, acender um cigarro, beber um chopp e falar sobre o que senti quando saí da sessão. E acho que todos deveriam assistir ao filme antes de ler o que escrevi aqui.


Desta vez ele chegou menos rojo y caliente. Cá entre nós, tenho a impressão que esse moço tá diferente. A crítica especializada, que não é o meu caso, diz que este filme é um marco em sua carreira, sendo um divisor de águas na filmografia do diretor. Em La Piel que Habito, a nova produção de Pedro Almodóvar, o diretor inova no gênero de terror, fazendo um Thriller que conta a história do conceituado cirurgião plástico Robert Ledgard (Antonio Bandeiras), que após sua mulher Norma (Blanca Suárez) sofrer um acidente de carro, onde tem seu corpo desfigurado na explosão do veículo, se interessa pela criação de uma pele com a qual poderia curá-la. Anos depois, ele consegue cultivar esta pele em laboratório, aproveitando os avanços da ciência e atravessando terrenos proibidos, como o da transgênese e a utilização de cobaias humanas. Esse é o ponto de partida de onde as cortinas se abrem e a trama toda se desenrola.

Em minha pobre opinião de leigo, espectador e fã - e ser fã talvez me tire o direito de criticar imparcialmente - não vi aquele Almodóvar visceral, intenso, colorido, ilógico e debochado, que contrasta alegrias e tristezas. Vi um diretor um tanto pasteurizado, numa narrativa ora fria e contida, ora contundente e violenta, porém meticulosa e de precisão cirúrgica, como o protagonista da trama. O filme é genial em vários aspectos, mas não traz aquele “fogo uterino” que arrebata e incendeia a gente por dentro na cadeira do cinema. O fato é que La Piel Que Habito não me causou a mesma estupefação dos filmes anteriores. Não sei se ando meio desacreditado em tudo, viciei o olhar na mesmice ao ponto de não ver o novo, ou se eu mesmo criei uma pele artificial para Almodóvar habitar. Pele esta que, como no filme, não era a própria e jamais seria. Por mais que eu quisesse. E faço um mea culpa: faço isso com as pessoas às vezes. E o que fiz com Almodóvar foi julgar que talvez não coubesse nele a pele de diretor de Thriller de terror psicológico, porque me identifico muito com os filmes que relatam dramas familiares com cores fortes, do ponto de vista de personagens femininos. E Almodóvar, para mim, são essas mulheres fortes, esses travestis intensos, esse vermelho explosivo. Não me atrai tanto o que é contido, frio e sisudo. Estou mais para Mulheres à Beira de Um Ataque de Nervos que para Gritos e Sussurros, mais para Tudo Sobre Minha Mãe que para Sonata de Outono. E quem me conhece entende o que quero dizer.

Para aqueles que já estão preparando as tochas e as pedras para me perseguir, reconheço que vi, lá no fundo, as “cores de Almodóvar”, apesar do estranhamento inicial. Identifico o iconoclasta “das antigas”, de muitas emoções e poucos recursos, e o cineasta mais maduro da atualidade, obcecado por explicar suas referências. Em uma entrevista o diretor chegou a dizer que tinha a intenção de fazer um filme de terror pouco convencional, ao adaptar a obra Tarantula (Mygale), do escritor francês Thierry Jonquet. E certo, ele consegue. La Piel Que Habito é um filme denso, há uma tensão e uma atmosfera de violência constante, causa desconforto e certa repulsa a algo que não identificamos o que é. Aí que vi o “velho Almodóvar”. Ele continua remexendo nossas vísceras e pondo o dedo em nossas feridas mais íntimas e escondidas, nos tirando da zona de conforto, tão cara a muitos, e nos desestabilizando bravamente.

Tecnicamente, Almodóvar investe na clausura dos ambientes, não apenas dentro bunker em que a misteriosa Vera (Elena Anaya) vive, meio mítica, mas de uma forma geral. A beleza estonteante de Elena Anaya faz com que os olhos não sejam tirados dela, sempre inebriados com aquela personagem tão paradoxal e instável. Em meio a tons frios e obras de arte que remetem diretamente ao tema central do filme, representando corpos nus e sem rosto, suas cores saltam os olhos quando aparecem meio à penumbra ou até mesmo  nos planos fechados.  É bastante utilizada a técnica de grandes planos de cima para baixo, chamados planos plongè, dando a ideia da pretensa superioridade do médico que quer brincar de Deus, quando manipula seus experimentos e as vidas das pessoas que o cercam, transgredindo normas para satisfazer seus desejos.

É possível identificar sua linguagem própria na fotografia, nas atuações de Antonio Banderas, que volta a ser o alvo da lente de Almodóvar 22 anos depois de Ata-me, e da estupenda (e eterna) Marisa Paredes, menos diva e mais mulher neste filme, e principalmente no roteiro imbricado, profuso e profícuo, apesar de algumas coisas terem escorrido por entre os dedos do diretor. Mas vi um Almodóvar em tons pastéis com algumas pinceladas de carmim e fúcsia ali e acolá. São identificáveis na narrativa os elementos do terror, obviamente, como o cientista louco e a cobaia. Porém, não chega a ser um filme de gênero porque existem simbolismos demais nas ações, bem típico do diretor, que acabam encobrindo-as, embora os símbolos presentes sejam realmente utilizados como tais, como as lâminas, as navalhas e as armas.

Almodóvar brinca de Hitchcock, deixando várias pistas sobre a trama, aparentemente desimportantes, enquanto transita pela narrativa através dos característicos flashbacks. A trilha sonora original, a cargo de Alberto Iglesias, é bastante apropriada à atmosfera da trama e a participação da cantora Concha Buika é primorosa. Há uma referência bem clara ao interessantíssimo filme Les Yeux Sans Visage (Os Olhos Sem Rosto), de Georges Franju, de 1960, e também ao famoso personagem do Dr. Frankenstein, de Mary Shelley. Em todos os casos há a figura do homem da ciência, vaidoso, soberbo, talentoso e sem qualquer escrúpulo, ultrapassando limites éticos e morais, brincando de Deus não só por mera ambição, mas em nome da primazia de uma conquista ou da superação de uma culpa excruciante, um homem sem limites para atingir seu gozo e estabelecer uma lógica particular de justiça.

Assim como no clássico Frankenstein, o criador Robert Ledgard é traído. Sua obra, a pele indestrutível e perfeita criada para ser habitada por Vera, não lhe coube. Ele quis mudar de pele, retroceder no tempo, vingar-se, satisfazer seus impulsos, mas foi traído pela soberba e pela perfeição de sua obra. Como Basil Hallward, cuja obra de arte eternizou a beleza e juventude de Dorian Gray, no livro O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, a beleza e a perfeição não foram suficientes, por serem instáveis e efêmeras, e ambos sucumbiram. Vera tem um corpo construído para corresponder a uma imagem perdida. Ela é uma espécie de Eva que se constrói por subtração e vive no limbo da vaga memória da forma original mítica. Ledgard não tem limites para seus experimentos e castra completamente a liberdade de Vera que, por sua vez, desenvolve por ele uma dependência bastante controversa. Paralelamente, Marília (Marisa Paredes), a fiel empregada da casa de Ledgard, tem a função a ajudá-lo, sempre à sua sombra, porém com papel fundamental.

Almodóvar brinca brilhantemente com questões profundas e feridas abertas de nossa sociedade. Lança um olhar sarcástico sobre as formas de alienação frente à angústia, voyeurismo e fantasias de castração, além de trazer temas recorrentes, como a transexualidade, transgressões sexuais e relações de poder. O transtorno psicológico dos personagens é apresentado de forma interessante, fazendo com que ali não tenhamos vilões nem mocinhos, mas pessoas presas em mundos diversos e novos, ultrapassando os limites do possível e do real para levar a cabo um ideal de verdade, concretizar uma realidade existente apenas no interior de uma mente doentia. Somos levados a questionar quantas vezes não infringimos regras éticas e morais nas nossas relações, transgredindo normas e negligenciando pessoas para que um mundo criado por nós faça sentido. A todo tempo, questionamos a paixão do protagonista pela ciência contraposta à paixão por sua esposa, ou mesmo a angústia sobre os acontecimentos relacionados à sua filha.

Claro que existe toda sorte de leituras psicanalíticas possíveis para essa história. Arrisco uma, talvez, que diz respeito ao mistério sobre o corpo próprio, o corpo sexuado, as construções relacionais do ego dadas pela via do corpo, a primeira forma de relação estabelecida entre indivídulo e mundo exterior, a memória do corpo, e a diferença entre os sexos. Pensemos no Banquete, de Platão, onde é apresentado o ser andrógino que estaria na origem dos sexos. Cindido, esse ser teria dado origem ao macho e à fêmea, ao masculino e ao feminino. A androginia, nesse sentido, seria expressão da nostalgia de um estado original, inscrito no inconsciente coletivo, que ganha forma na mitologia.

Saí da sessão com me interrogando, angustiado: Mas afinal que pele habito? Que pele quero construir para vestir a mim e aos outros? Quantas vezes tentamos fazer uma pele perfeita, resistente, para cobrir o corpo alheio, estranho, na esperança de que essa pele seja assumida como própria? Construímos uma pele artificial para outro ser habitar. Projetamos nossos anseios, nossos desejos, nossos sentimentos de solidão, dor, perda, vingança para um ser externo ao nosso mundo, tentando adequá-lo às nossas necessidades, forçosamente. Por mais que tentemos criar uma nova pele para habitarmos ou para ser vestida por outro, sempre tem algo de essencial que permanece e isso vem à tona, hora ou outra.

Almodóvar não deixou de ser Almodóvar. Mas é outro Almodóvar, em outro momento, com outra narrativa. Ele não criou uma pele para habitar, talvez tenha mudado espontaneamente de pele, o que é natural. Ele mostra que é possível mudar de rumo sem perder a essência. Por isso sugeri que este texto somente fosse lido por aqueles que já assistiram ao filme previamente. Além de ser um convite para um chopp, mesmo virtual, depois da sua sessão, não quero criar uma pele para você habitar.


 [link da música “Por El Amor de Amar” - Concha Buika].



Ficha Técnica: La Piel Que Habito. Espanha, 2011. Direção: Pedro Almodóvar. Roteiro: Pedro Almodóvar, Thierry Jonquet(romance). Elenco: Antonio Banderas (Robert Ledgard), Elena Anaya (Vera Cruz), Marisa Paredes (Marilia), Jan Cornet (Vicente), Roberto Álamo (Zeca), Eduard Fernández (Fulgencio), José Luis Gómez (Presidente del Instituto de Biotecnología), Blanca Suárez (Norma Ledgard), Susi Sánchez (Vicente’s Mother), Bárbara Lennie (Cristina), Fernando Cayo (Médico).

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