Photoallegory of Sarolta Bán
“Assim
Pouco a pouco
Escolhi
O presente silêncio
Silêncio
Tão pouco querido
Oh, derradeiro momento
Silêncio
Momento
Silêncio"
(Silêncio - Madredeus)
Existe um tempo
de calar. Às vezes é preciso criar um espaço (objetivo?) para observar com
distanciamento a tempestade, a fim de que se possa ter sobre ela uma dimensão
mais ampla e para perceber que talvez ela não seja assim tão grande. E caso
seja imensa e impossível de ser atravessada sem marcas, que ao menos seja com o
menor número de arranhões possível. É preciso dar um passo atrás para conseguir
o impulso necessário para pular o precipício. Para essa tomada de fôlego, acredito
profundamente no poder do silêncio reflexivo. Por isso sumo às vezes.
Não sei se me recolher em meu bunker é uma atitude que denota prudência.
Às vezes, tenho a impressão que é por absoluta incapacidade de seguir adiante.
É catatonia, imobilização, paralisia. “Na
dúvida, não ultrapasse”, alerta o luminoso neon em minha mente, quando
estou parado sobre um cruzamento escuro da linha de trens e não ouço a
composição que se aproxima. Por outro lado, temo que avançando demais nos
escuros de mim possa desencadear a fuga de todos os fantasmas trancados no
fundo dos enormes baús que guardo, fazendo com que voltem para assombrar meus
sonhos. Eles são muitos cá dentro do meu peito - tanto sonhos quanto fantasmas.
E alguns deles – dos sonhos e dos fantasmas - são violentos e destrutivos.
Normalmente vivem – os fantasmas, não os sonhos - sob controle. Volta e meia um
ou outro – dos sonhos, não dos fantasmas - foge e tenta me roubar a paz. Quase
sempre consigo domá-los e fazer com que retornem para seus lugares. Mas temo
que nessas jornadas de introspecção, quando ando por lugares que nem eu mesmo
conheço, possa ficar desatento ou vulnerável e ser tomado de assalto por esses
pensamentos obsessivos.
Calei. Não quero oferecer uma
explicação ou uma justificativa. É apenas um desabafo, talvez sem propósito
específico. Paralisei, exauri. Não soube como olhar nos olhos dos poucos (e
cada vez em menor número) que me são caros e dizer o que sentia. Ou mais: não
só não sabia o que sentia como não sabia o que sentir. Não sabia nem ao menos
se sentia algo. Claro que sentia, percebi depois de passado o tempo e o torpor.
Sempre sentimos algo, seja bom, neutro ou ruim.
A dúvida essencial de não
saber-me e o temor de talvez não ser nada me alertaram para algo que estava por
vir. A imagem da lagarta que entra no casulo para tornar-se borboleta é
apropriada nessa hora. Porém, entrei e saí do casulo uma inefável lagarta. Alguns
não nasceram para ser borboleta. Já ouvi de bocas otimistas que seria
necessário eu fechar a concha para formar uma pérola. Não consegui, porém, usar
minhas mágoas para transformar em pérolas os corpos estranhos que entraram em
minha concha. Queria transformar, alquimicamente, cinzas em ouro. Queria sim poder
fazer das minhas enzimas que produzo no interior de minha concha um pingente
para ornar o pescoço de quem se abriga em meu regaço. Não foi possível. Queria
juntar todas as marcas acumuladas pelo caminho e transformá-las em retalhos
multi coloridos, com eles costurar uma colcha, pedaço a pedaço, e jogá-la sobre
o corpo de quem gostaria que ela aconchegasse e aquecesse nas madrugadas frias.
Tampouco isso foi possível. Por isso parei. Por isso voltei. Por isso dei três
passos atrás.
Eu tinha um emblemático hematoma
na unha do polegar direito – e isto não é uma alegoria -, adquirido no dia que
foi o marco do fim de um grande, profícuo e doloroso ciclo. Essa marca, de tom
entre o negro e o violáceo, localizada junto à raiz da unha, acompanhou-me por
muitos meses. Ao longo do tempo foi transformando-se e movendo-se, passando do
negro intenso para o roxo acinzentado, até tornar-se uma mancha levemente
esverdeada na ponta do dedo que eu observo diariamente, como faço agora. Cortei
a unha cuidadosa e pacientemente, lasca a lasca. Hoje foi cortado o último resquício
daquele estigma negro, fazendo-o desaparecer definitivamente. Esse foi o sinal
que me fez pensar em tudo o que estava relacionado àquela marca e a todas as
outras que existem em mim. Algumas não são visíveis, a maioria é possível de
ser identificada em poucos instantes de observação detida sobre mim. Algumas
são permanentes, outras transitórias. Algumas guardo com carinho e orgulho,
outras tento esconder. Com algumas consigo conviver, outras prefiro nem ver.
Mas todas elas fazem parte do que sou.
O jato de água da torneira leva
consigo, pragmática, os resquícios do passado que estavam sob as unhas que
acabei de cortar. Vejo cada pedaço ir ralo abaixo, rumo ao esquecimento eterno,
que é como acredito que as lembranças do passado devem ser guardadas. Retiro a
mecha de cabelos grisalhos da face para poder olhar novamente e com mais
nitidez meus olhos no espelho embaçado do pequeno banheiro de azulejos úmidos. Mas
por enquanto já basta tentar ver o que não tem certeza nem nunca terá, o
que não tem conserto nem nunca terá, o que não tem juízo nem nunca terá,
o que não tem tamanho. É chegada a hora de tentar ao menos brincar de viver,
mesmo que calado.
O Lú consegue colocar em palavras os sentimentos de forma única. A cada nova crônica um espelho de nós mesmos em momento distintos e sentimentos diversos...
ResponderExcluirPerfeito! Viajei lendo seu texto. Sempre com sabias mensagens. Parabéns meu amigo!!!! É sempre muito bom ler seus textos!
ResponderExcluirSempre muito especial e me fez lembrar versos do Neruda:
ResponderExcluirMe gustas quando callas y estás como distante.
Y estás como quejándote, mariposa em arrullo.
Y me oyes desde lejos, y mi voz no te alcanza:
Déjame que me calle com el silencio tuyo.
Beijo
Obrigado, Douglas. Fico feliz que tenha gostado. Abração
ResponderExcluirLi teu texto e achei maravilhoso, digno de uma publicação a nível de revista ou algo do gênero. Você no seu "silêncio temporario", voltou com tudo na arte da escrita, e a capacidade de envolver-nos na história. Esperamos novas publicações. Abração.
ResponderExcluirObrigado pelos comentários, Edelmarson. E obrigado por ler meu blog. Abração!!!
ResponderExcluirMeu amigo querido, no silêncio da minha casa (... da minha vida) li seu conto que é tão lindo e significativo para mim e sei que tu sabes disso. Lembrei de imediato de uma musica da Françoise Hardy 'La Question' que cantarolava ainda hoje, mas, senti ainda mais quando lia suas palavras e pensava no silêncio dolorido, que grita dentro de nós, que nos inquieta... silenciar, não é uma tarefa fácil como tu mesmo dizes! Parabéns Luc Benitez, já com saudades da tua companhia.
ResponderExcluirCarlos, querido irmão! Fico sempre sensibilizado e lisonjeado com tuas palavras. É maravilhoso poder dividir esses sentimentos com pessoas como tu, que é parte de mim. Eu adoro essa música da Hardy, inclusive já referenciei essa música em um conto publicado no blog há tempos. Silenciar é mesmo uma tarefa difícil. Acho que é no silêncio que nossa voz fala mais alto. E ouvirmos nossa(s) voz(es) interior(es) pode ser doloroso. Mas no fundo, acho que esse deve ser o único caminho de redenção...Saudades, amigo!
ResponderExcluir"É preciso dar um passo atrás para conseguir o impulso necessário para pular o precipício. Para essa tomada de fôlego, acredito profundamente no poder do silêncio reflexivo. Por isso sumo às vezes." - E é bem assim. O Luc Benitez sabe o que diz. (Luciano, quando tu demora mais, é sempre melhor!) Estava com saudade disso.
ResponderExcluirBenitez, o Tempo. Ah, o Tempo! "Tempo Tempo Tempo Tempo. És um dos deuses mais lindos!"
ResponderExcluirLindo! Me fez pensar sobre as minhas marcas...
ResponderExcluirperfeito como sempre!!adoro ler os teus textos, momento vida inteligente no pampa!
ResponderExcluirFranciane, o que me motiva a continuar escrevendo é justamente poder compartilhar meus "pentimentos" (pensamentos e sentimentos) com pessoas que sentem e pensam as mesmas coisas. Obrigado. Beijo
ResponderExcluirGelsa, obrigado pelos comentários. Saudades dos nossos papos regados a chimarrão
ResponderExcluirPerfeito como sempre! Um espelho ora emoldurado outras vezes sem moldura seus posts refletem como espelhos
ResponderExcluirAlexandre, querido...obrigado pelos comentários. Saudades.
ResponderExcluirLindo! Conheço bem a hora que me escondo em minha querida conchinha, fico o tempo necessário para conseguir recolher o bem, o bom, o tranquilo, o amor e a paz que sei que existe dentro de mim. Querido amigo Luc Benitez, tu és especial, pessoa de luz que ilumina quem convive contigo. Adoro o que escreve, embora não consiga traduzir em palavras o que sinta quando leio teus posts, o poeta é tu meus amigo. Bjos com carinho!
ResponderExcluirAna, querida! Muito obrigado pelos comentários. Fico imensamente feliz que tenhas gostado do texto e te identificado. Beijo carinhoso.
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