René Magritte - The Lovers. 1928. Oil on canvas. 54.2
x 73 cm. Private collection
Para Aline,
pelos elos lírico-afetivo-existenciais invisíveis que tecem nossa trama amorosa
para sempre.
"E você baby vai, vem, vai
E você baby vem, vai, vem
Belezas são coisas acesas por dentro
Tristezas são belezas apagadas pelo sofrimento"
(Lágrimas Negras - Jorge Mautner)
O céu limpo estava
coalhado de estrelas. Noite quente, mesmo sendo o primeiro dia de pleno inverno
de julho. Melhor para ela, que adorava verão, embora detestasse sol, praia,
pouca roupa, aquela alegria carnavalesca e a luz ofuscante dos dias escaldantes
ferindo sua pele. Ele, por outro lado, adorava inverno e todos os aconchegos e
recolhimentos relacionados à estação, mesmo que reclamasse dos pés gelados nas
noites intermináveis e solitárias dos solstícios eternos. Não discutiam sobre essas
divergências, contudo. No calor buscavam refresco, no frio mantinham-se
aquecidos. Programa cotidiano em noites de inverno quentes como aquela: cinema
ou teatro, algum jantar não planejado para fugirem da eterna dieta e o circuito
dos botecos de sempre, onde já eram conhecidos pelo nome. Mau sinal ser
conhecido na portaria do bar pelo nome completo. E eles eram.
Ambos tinham o riso
frouxo, na mesma medida que as lágrimas, dependendo do assunto, do dia e das
unidades alcoólicas. Revezavam-se entre riso e choro, o que tornava a relação singular
e, pasme, saudável. Tinham uma ou outra mágoa contida, engolida rascante goela
abaixo, porque sabiam que determinadas coisas não deveriam ser ditas. Cumplicidade
tácita. Alguns assuntos, pessoas e lugares foram feitos para serem esquecidos.
E ser esquecido não era ruim, era apenas uma forma de colocar cada coisa em seu
devido lugar, na tentativa de dar alguma ordem ao caos interior. E quando ambos
lamentavam e choravam suas mazelas, sempre conseguiam rir juntos das próprias
desgraças. Também das desgraças do outro, claro, prova de que existem coisas
que somente a intimidade pode proporcionar.
Esperavam desde março
que julho chegasse. Sem muitos motivos específicos, apenas umas superstições
aqui, uns insights lá, feelings acolá, teorias e suposições
traçadas milimetricamente a quatro mãos num guardanapo de papel ao som dos
Beatles e com as gargantas molhadas por generosas doses de qualquer coisa, uma
ou outra previsão de algum tarólogo, cartomante, pai de santo ou site de
relacionamentos que fornecesse mapas astrais em seis parcelas fixas no cartão
de crédito. Esperaram. E esperaram. Previsões nunca deviam falhar e a espera
pela realização delas é mais angustiante que esperar o cumprimento de uma
promessa feita por um quase/ex/futuro amante, daquelas bem piegas, com direito
a Jane Birkin e Serge Gainsbourg gemendo “Je
t’aime moi non plus” ao fundo, com voz rouca e olhos marejados, o que
pessoas como eles certamente adoravam, mesmo que soubessem que não iria dar em
nada porque já sabiam de cor o roteiro da trama folhetinesca.
Astrologia e ocultismos
diversos eram coisas sérias. A cigana havia lido seus destinos. E aquela era a
noite da profecia. Naquela fase da lua, naquele dia de julho, naquele horário
cabalístico, com aquela companhia, em uma mesa num canto de algum bar. Uma
previsão tão específica não poderia estar errada. Obviamente eles estariam
prontos e abertos ao destino traçado nas linhas das suas mãos. E Bingo: a porta
se abriria e seria possível dizer que sim, que a Pitonisa de Tebas estava certa
porque quem entrava era o esperado, aquele que possuía no corpo a marca do
escolhido, e todos poderiam identificá-lo. Mas não, isso nunca aconteceu. Devia
haver algum erro no mapa astral, alguma imprecisão de cálculo, alguma falha no
dia e hora do nascimento, uma nuvem de poeira cósmica e zodiacal - se é que
existe isso - algum mau orgasmo que gerou uma nuvem de energia negríssima sobre
as cabeças deles, algum “trabalho feito”. Ou então interpretaram mal as
metáforas ditas pela vidente gitana
com voz castelhana. Para eles, que acreditavam que algo superior às forças e às
faculdades humanas sempre agia em suas vidas de forma determinante, seus corpos
funcionavam como para-raios de energias negativas e sempre poderia haver algo
sobrenatural agindo para impedi-los de serem felizes. Sempre! Desamarra, pai!
Previsões astrológicas
à parte, estatisticamente era necessário que eles estivessem em determinados
lugares ou expostos a determinadas situações. Porque leram em alguma revista de
alguma sala de espera de algum consultório de dentista que em lugares como
aqueles que frequentavam tinham dez vezes mais chances de conhecer alguém para
um relacionamento sério em potencial. Não eram eles que diziam, eram as
estatísticas. Era comprovado. E iam sempre aos mesmos lugares e viam as mesmas
pessoas. Não que quisessem desesperadamente conhecer alguém. E não que não
quisessem. Não que fossem solitários. Não que não fossem. Mas não, não era bem esse
o ponto. Tinham um ao outro e viviam bem sozinhos. Talvez não tão bem, mas não
chegava a ser um tormento aparente. Por fora eram bem resolvidos e
independentes. Ele fazia o gênero cool-analisado-equilibrado-vegano-transcendental,
ela a linha femme-fatale-super-moderna-senhora-soberana-de-sua-libido.
Porém, o que queriam, bem lá no fundo, não era apenas comprovar as
estatísticas, colocar à prova a lei das probabilidades e ver se o destino que
as ciganas haviam lido em suas mãos estava certo, mas comprovar que todas essas
coisas ditas e sonhadas, todas essas crenças no invisível e no intangível,
poderiam se tornar realidade. Porque eles tinham desejos secretos de ter uma
vidinha comum, das oito às dezoito, com cadeiras preguiçosas na varanda,
jardim, cachorro, cerca branca, churrasco no domingo e férias em família na
praia. O encontro podia acontecer em qualquer lugar, numa fila de supermercado
(um sonho antigo e antiquado dele) ou numa manhã qualquer de sábado, quando a
campainha inesperadamente tocasse e fosse o rapaz da TV a cabo que por engano
chegou ao seu endereço (sonho fetichista dela). Não importava onde, não
importava quando, importava que o universo devolvesse tudo aquilo que eles
entregavam-lhe entre goles de vodca e fumaça de cigarro.
Sentados no meio fio da
calçada, vendo o céu estrelado e uma lua tão imensa, clara e próxima que
parecia estar prestes a se chocar contra eles, contemplaram o julho que não passaria
despercebido, mesmo que não fosse o marco de qualquer mudança.
- Mas por que diabos tu não quer que ele de volta? - perguntou ele entre
um gole e outro de cerveja já meio morna.
- Porque cansei - disse ela seca, soltando a fumaça do cigarro e
batendo a cinza com desdém.
- Cansaço de que? – ele continuou, meio atônito.
- De mim, dos outros, de tudo - completou, amarga.
- Só que as pessoas nos surpreendem - continuou ele com olhos baixos,
sem muita convicção.
- É, mas gente nunca sabe o que elas são capazes de dizer quando querem
levar-nos para a cama. Muitas vezes esses discursos amorosos funcionam, apesar
de sabermos, lá no fundo, que tudo é uma grande e deliciosa falácia. Seria tão
mais simples se fosse tudo nítido, claro. Assim: Eu estou aqui e do outro lado
da rua passaria “Ele”, lindo, luminoso, cabelos desgrenhados, barba por fazer. E
eu saberia quem ele era porque meu coração ou meus hormônios diriam.
Trocaríamos um longo olhar de reconhecimento e desejo e saberíamos mutuamente
que nos reconhecíamos. Não diríamos nada, porque não seria necessário, apenas nos
olharíamos profundamente e saberíamos – disse ela com olhos brilhantes
perdidos no vazio e a mão erguida como se estivesse prestes a apanhar uma fruta
madura. Ele interrompe, cortante como uma lança samurai:
- Tá, e em câmera lenta tu jogaria os cabelos contra o vento e tocaria
uma música do Kenny G, daí tu atravessaria a rua, abraçaria esse “Ele”, que
provavelmente seria uma espécie de hipster escabelado e barbudo, que não usaria
a camisa branca de cambraia, aberta mostrando o dorso bem desenhado e alguns pelos
cobrindo uma pele lisa e dourada que povoa nosso imaginário erótico por toda a
vida, mas seria uma camisa xadrez sobre uma camiseta de banda indie escondendo
uma pele lisa e muito branca de falta de sol e vitaminas, e vocês viveriam
felizes para sempre, rodando, rodando, rodando abraçados enquanto subissem os
créditos. Me passa o cigarro?
- Quanta amargura! Isso foi
maldade! Me deixa sonhar, por favor. Posso ter uma ilusão romântica sem ser
usurpada pela TUA realidade sensata, madura e fria? Não me rouba mais isso, por
Dios! - resmunga ela, chorosa.
- Como assim roubar “mais isso”? Alguma vez te roubei algo? Darling, as
tuas perdas são só tuas, não são minhas. Eu nunca te tirei nada. Aliás, te
ajudo a recuperar o que tu perdeu sozinha, de brincos a amantes. E nem precisa
me fazer uma oferenda para te trazer a pessoa amada em três dias, basta me
pagar uma ou duas doses de tequila.
-
Tu nunca me trouxe de volta a pessoa amada! - ela retruca
rancorosa.
-
Mas tu nunca perdeu a pessoa amada, Coração - ele
complementa ácido. Como vou trazer de
volta o que tu nunca teve?
-
E tu fala isso porque tu já perdeu o teu hipster dourado, lembra? “O Rapto do
Hipster Dourado”, dá um bom nome para um filme. As férias acabaram e acabou o
sonho, antes mesmo do verão acabar. Tu piscou e toda a magia se desfez num passe de mágica. Tu tem razão,
honey, a realidade é mesmo bem dura e a vida tem sido bem madrasta contigo.
- Não lembro dessa pequena perda, não vivo do passado - ele
desconversa. E não tenho sonhos de uma
noite de verão. Mentira... vivo sim, mas não tem importância. Eu sobrevivo aos
meus sonhos naufragados. Me guardei para quando o Carnaval chegasse e não
sobrevivi à quarta-feira de cinzas. Fatal, né? E plagiar nomes de filmes dos
anos 80 é super over. Tá, não tocou Kenny G para mim no último verão e talvez
nunca os créditos subam, enquanto rodopio em câmera lenta, feliz e completo. É
isso que tu quer dizer? Que eu não terei finais felizes? É, talvez eu nunca
tenha finais felizes. No fim das contas, meu hipster era um grunge tardio numa
Terça-Feira Gorda, era um junkie vivendo ao sabor do vento aonde não venta
mais, uma alma de menino perdida num corpo bem feito de homem maduro, um
neurótico cosmopolita com complexo incurável de Peter Pan, esperando Sininho
desembarcar no aeroporto porque ela também não sabe voar - conclui
reflexivo.
- Terça-Feira Gorda...que vintage falar como nossas avós! Não, honey,
hoje é o dia da profecia. Hoje a roda da fortuna vai girar. Vamos jogar para o
universo, vamos entregar para ele que sempre volta - disse ela, jogando as
mãos para cima como se fizesse uma saudação, com esperança nada convincente.
-
Decretar para o universo que ele devolve? Olha, Cherry, toda vez que joguei
algo para o universo, ele se mostrou um grande bumerangue do mal, me devolvendo
tudo que desejei direto na cara, sem piedade – disse
ele corrosivo.
E riram quase dolorosos
porque ninguém precisa procurar o que não perdeu. Ninguém precisa se preocupar
em manter o que não teve. Eles tinham posições cômodas. Ninguém dá o que não
tem e ninguém perde o que nunca possuiu. Empate técnico. E empate era a
encruzilhada em que eles viviam.
-
Eu preciso sentar aqui um pouco, ao ar livre, respirar e fumar um cigarro, pode
ser? To com um aperto aqui na boca do estômago
- disse ela meio melancólica.
- Por quê? Foi o filme? Sim,
foi. Te achei meio tristonha no fim da sessão. Tu anda com uma arzinho meio
Camille Claudel sem Rodin. A vida é triste, Coração - disse ele, tentando
em vão consolá-la. Eu gosto dessas
pequenas amarguras, sabe? Solidões, desencontros, desamores, separações,
reencontros mornos, tristezas infinitas... Sinto que sou menos miserável, que
tem alguém que sofre tanto quanto eu ou mais. É uma espécie de comunhão na dor,
no vazio, no nada. Estamos juntos formando um monte de nada. Bonita a comunhão,
né? Todo mundo numa grande massa amorfa, sendo um monte de absoluto silêncio
estéril e vazio escuro.
- O mundo é o que circunda teu umbigo, meu bem, mesmo com essas teorias
new age integracionistas que tu inventou ultimamente. – retrucou ela. Mas ele não ouviu e continuou:
- Ou posso me sentir ainda mais miserável, posso ter mais uma crise de
autocomiseração, chegar ao fundo do poço e voltar. Porque eu sempre posso
voltar, também completamente sozinho.
-
Autopiedade a uma hora dessas não, por favor, baby - cortou
ela novamente como navalha. E eu to
falando sério. O filme é mesmo muito triste, mexeu com meus hormônios e não é
porque ando uma louca paranóica como Camille Claudel, enganada e abandonada
pelo canalha do Rodin!
-
¡Pero, qué enredo te has puesto, muchachita! Super projeção histérica com
Rodin. A gente tem uma chamada telefônica em espera diretamente do divã? Tudo
mexe com teus hormônios, baby, não há novidade. Terminou o cigarro? Tá,
levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima. Segura o turbante e vamos - disse
ele, rindo copiosamente.
- Tá ouvindo? “It's been a hard day's night…I should be sleepin' like a log” – cantarolou ela empolgada. É aquela banda, sabe? Como é mesmo
o nome? Alguma coisa de baralho, né?
-
The Beatles. E não sou crupiê - respondeu ele, desdenhoso. Essa música é a tua cara, sabia?
-
Não subestima minhas parcas faculdades mentais, Darling. Sei de quem é a
música, quero saber quem tá cantando agora - ela retrucou. E
por que tu acha a minha cara? Acha que tenho dias e noites difíceis?
- Sei de que banda tu fala, é a mesma da semana passada. E será a mesma
da semana que vem - ele disse sem paciência, jogando com os dedos polegar e
mediano a ponta do cigarro aceso na rua e soltando o restante da fumaça dos
pulmões.
- Sem ar blasé, please, na tua idade não cai bem - cuspiu ela.
- Na NOSSA idade, cairia bem uma sopa quente, umas torradas e uma manta
sobre nossos ossos cansados. “It's been
a hard day's night…I should be sleepin' like a log” – cantarolou ele em falsete, sarcástico.
- Não - rebateu ela - na nossa
idade cairia bem um conhaque, um charuto e um amante quente (e burro) sobre
nossos ossos. “A noite nunca tem fim,
por que que a gente é assim?” - cantou
em tom irônico.
- Mas não seremos canibais de nós mesmos antes que a terra nos coma. “Cem gramas, sem dramas”... Entre, ma chérie - ele concluiu, reverenciando-a,
enquanto abria a porta de vidro do bar.
A noite mal havia
começado e quando percebessem julho teria passado, chegaria agosto e depois
setembro, os dias virariam semanas e meses. E a grande roda gigante continuaria
a girar, num processo eterno que inicia e finda e finda e inicia. E vice-versa.
Os longos e os curtos ciclos que constituíam suas vidas transcorreriam com mais
ou menos dor até que a profecia finalmente se cumprisse ou caísse no vale escuro
do esquecimento, en el ultimo trago, como quase tudo aquilo
que não tinha importância para eles.
Meu amigo, lendo tuas palavras, a gente se coloca na situação e percebe como tu capta a sensibilidade humana, como são sábios os teus dizeres! O ser humano pensa que sabe o que quer, mas quando se depara com situações como a por ti descrita, é que descobre o quanto tem a descobrir, o quanto tem que aprender a saber viver, o quanto é importante bem escolher... Beijo no coração, te admiro muito!
ResponderExcluirMeu amigo, lendo tuas palavras, a gente se coloca na situação e percebe como tu capta a sensibilidade humana, como são sábios os teus dizeres! O ser humano pensa que sabe o que quer, mas quando se depara com situações como a por ti descrita, é que descobre o quanto tem a descobrir, o quanto tem que aprender a saber viver, o quanto é importante bem escolher... Beijo no coração, te admiro muito!
ResponderExcluirLuciano! Teu texto me provoca. Me instiga.Quase me alucina.É o tempo passando, os julhos indo embora e a geada prateando meus cabelos...kkkk
ResponderExcluir"Eu amo desorganizado, desenvergonhado. Tenho um amor que não é fácil de compreender porque é confuso. Não controlo, não planejo, não guardo para o mês seguinte. A confusão é quase uma solidão adicional. Uma solidão emprestada". Isso é Carpinejar. Beijo
Filho, teu texto como sempre está perfeito.tuas palavras levam a reflexão quando as lemos, pois tu as escreves com a alma, colocando imaginação,sensibilidade e sentimento. um grande beijo no coração.MAMYS.
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