Ela agora só pode amar
com a paixão contida
da borboleta espetada na placa de isopor
(De vez enquando a asa estala
e sai voando pela sala
e quer quebrar o abajour)
- Marcelo Sandmann: “As Coisas da Casa” -
Poderia ser uma aranha presa em uma teia. Uma aranha mutante, errática e incapaz, que teceu sua própria teia para depois prender-se nela. Num jogo de tentativa e erro, ela tinha feito as escolhas erradas. Entre dois caminhos seguiu o que tinha mais coração, porém isso não foi garantia de felicidade. Aprisionada na armadilha criada por ela própria, só restava-lhe sufocar o próprio grito e engolir a seco aquele gosto amargo da boca. Sabia de suas escolhas e sabia que estava condenada a viver espreitando a vida de longe, com a voz abafada, nas sombras da realidade. Às vezes desejava gritar debruçada sobre as janelas e ver seu grito ecoar mar adentro até ser ouvido do outro lado do oceano, rompendo a invisibilidade na qual havia se colocado por amor. Mas sua garganta estava tão seca que dela não sairia nenhum som.
Após mais uma noite de espera vã por um sinal que fosse daquele que era sua maior razão de estar ali e estar viva, parou em frente à janela, como fazia inúmeras vezes ao dia, skinneriana, buscando o vulto que a surpreenderia em frente ao prédio, com rosas vermelhas ou brancas nos braços, atravessando a rua, com o sóbrio chapéu panamá e a alinhada capa de gabardine preta habituais, pulando as poças d'água daqueles dias chuvosos de novembro com seus sapatos de pelica impecavelmente lustrados. Então, antes de entrar no prédio, ele olharia para cima e a veria na janela, usando o robe drapeado de seda turquesa cheirando a lavanda e trocariam o olhar de ternura e cumplicidade que somente os amantes possuem.
Parada em frente à janela ainda consevava o ar altivo e um leve resquício de dignidade. Olhando a rua absolutamente vazia foi invadida pelo vazio de tudo e viu sua imagem refletida no vidro embaçado. Passou a mão esquerda no vidro para limpá-lo, enquanto segurava com a direita a gola do roupão puído, desbotado e manchado de café.
Havia passado dos trinta, bolsas sob os olhos cansados, vincos fundos na face que não reconhecia mais como sua, a pele cada vez mais pálida, cada vez mais marcada, cada vez mais manchada. Aproximou o rosto do vidro, para ver sua imagem com mais nitidez e com ambas as mãos retirou da face os cabelos ralos e ressecados, desgrenhados da noite insone e solitária, entre cigarros e álcool, amarrando-os num coque. Com uma delicadeza de gueixa despindo as várias camadas de quimonos de pura seda, foi tirando o velho roupão, deixando desvelar seu corpo de uma alvura desconcertante de porcela. Não coseguiu reconhecer aquela mulher magra, amarga, embrutecida e cinzenta.
O rosto estava tão próximo da janela que conseguia sentir seu próprio hálito. Tentou buscar-se no fundo dos olhos embotados de tristeza e lágrimas. Pouco restou do verde cristalino do passado naqueles olhos amendoados. Deu início a uma viagem pelas memórias do seu corpo, um desbravamento doloroso feito de ilusões desfeitas, lembranças tristes de felicidades fugazes, maus orgasmos e desgostos perenes. Tocou levemente os vincos da testa, em linhas horizontais de têmpora a têmpora, e em linhas verticais fundas entre as sobrancelhas, acariciou com candura e delicadeza suas pálpebras escuras, as olheiras fundas, as maçãs do rosto marcadas pelo tempo implacável. Deteve-se longamente na boca sulcada, sem qualquer resquício de sorriso, uma boca fina, levemente caída nos cantos, de onde não sairia nada além de fel e um hálido azedo de cigarros, conhaque de alcatrão e cafés com fartas doses de whisky da noite anterior. Daquela boca sairia, no máximo, o som sussurrado de um bolero antigo qualquer, cantarolado enquanto tentava distrair o tempo caminhando pela casa vazia com seu cigarro longo entre os dedos finos, deixando um rastro de fumaça que dançava na densa penumbra, num raro momento em que se ouvia qualquer som no apartamento sombrio. A boca que tantas vezes suplicou carinhos e foi capaz de tantas juras de amor eterno era a mesma de onde sairam lanças que feriram fundo e selaram seu destino. Desceu as mãos pelo pescoço e pelo colo, como se buscasse alguma familiaridade ou alguma lembrança que a confortasse. Observou detidamente seu seus seios flácidos, pálidos e sem vida iluminados pela luz fraca do dia nublado que entrava pela enorme janela do quarto. Aquele colo sedento por carícias e roçar de bocas, que tantas vezes arrepiou-se e estremeceu de êxtase, era agora uma casa vazia, um envólucro seco e morto cobrindo seu coração, o único órgão que consegue reconhecer como vivo, porque pulsa dolorido entre tantas vísceras. Desceu até o ventre árido. Relembrou de todas as vezes que exterminou, por egoísmo, qualquer possibilidade de vida existente em seu ventre. Até o ponto de tornar-se incapaz de gerar qualquer vida, seja dentro ou fora.
O rosto estava tão próximo da janela que conseguia sentir seu próprio hálito. Tentou buscar-se no fundo dos olhos embotados de tristeza e lágrimas. Pouco restou do verde cristalino do passado naqueles olhos amendoados. Deu início a uma viagem pelas memórias do seu corpo, um desbravamento doloroso feito de ilusões desfeitas, lembranças tristes de felicidades fugazes, maus orgasmos e desgostos perenes. Tocou levemente os vincos da testa, em linhas horizontais de têmpora a têmpora, e em linhas verticais fundas entre as sobrancelhas, acariciou com candura e delicadeza suas pálpebras escuras, as olheiras fundas, as maçãs do rosto marcadas pelo tempo implacável. Deteve-se longamente na boca sulcada, sem qualquer resquício de sorriso, uma boca fina, levemente caída nos cantos, de onde não sairia nada além de fel e um hálido azedo de cigarros, conhaque de alcatrão e cafés com fartas doses de whisky da noite anterior. Daquela boca sairia, no máximo, o som sussurrado de um bolero antigo qualquer, cantarolado enquanto tentava distrair o tempo caminhando pela casa vazia com seu cigarro longo entre os dedos finos, deixando um rastro de fumaça que dançava na densa penumbra, num raro momento em que se ouvia qualquer som no apartamento sombrio. A boca que tantas vezes suplicou carinhos e foi capaz de tantas juras de amor eterno era a mesma de onde sairam lanças que feriram fundo e selaram seu destino. Desceu as mãos pelo pescoço e pelo colo, como se buscasse alguma familiaridade ou alguma lembrança que a confortasse. Observou detidamente seu seus seios flácidos, pálidos e sem vida iluminados pela luz fraca do dia nublado que entrava pela enorme janela do quarto. Aquele colo sedento por carícias e roçar de bocas, que tantas vezes arrepiou-se e estremeceu de êxtase, era agora uma casa vazia, um envólucro seco e morto cobrindo seu coração, o único órgão que consegue reconhecer como vivo, porque pulsa dolorido entre tantas vísceras. Desceu até o ventre árido. Relembrou de todas as vezes que exterminou, por egoísmo, qualquer possibilidade de vida existente em seu ventre. Até o ponto de tornar-se incapaz de gerar qualquer vida, seja dentro ou fora.
Sozinha, envelhecida, amargurada, sem conseguir imaginar qualquer futuro, nua de corpo e alma em frente à grande janela do segundo andar do sobrado antigo de frente para o cais do porto, localizado na zona mais decadente da cidade, difusa na penumbra levemente cortada pela luz vinda da rua, ela via o tempo ruir, o dia de domingo escorrer lento e viscoso entre suas incertezas crescentes, inerte e condenada em sua própria armadilha.
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