(Para ler ao som de Chet Baker - “My Funny Valentine”)
A brasa do cigarro cintilava na escuridão, rasgando a penumbra num risco alaranjado. Debruçado sobre o balcão do segundo andar do casarão antigo de esquina contemplava a noite silenciosa e branda, acompanhado de vinho tinto, cigarros e um Baker triste na velha vitrola Webster Chicago 78 rpm no fundo da sala. Sentia uma paz tamanha que todas as guerras do mundo poderiam ser declaradas, bombas nucleares e terremotos poderiam assolar seu bairro, o planeta poderia ser invadido por povos alienígenas querendo escravizar os humanos, que nada lhe tiraria aquela sensação de plenitude. Era uma quase comunhão com o cosmos, com Deus, consigo. Sentia que finalmente havia feito as pazes com seu coração. Porque finalmente havia descoberto que todas aquelas histórias que lia nos livros poderiam ser, resguardadas as proporções, reais. Não, não queria conquistar uma donzela vitoriana envolta em rendas e véus, tampouco ser um cavaleiro em armadura reluzente enfrentando batalhões de bárbaros. Queria os dias límpidos e iluminados de outono, despertares com beijos de hortelã e sorrisos sonolentos, queria todas as manhãs do mundo e entardeceres com o sol se pondo atrás da coxilha, queria as coisas simples e plenas que somente o cotidiano compartilhado com quem se ama pode proporcionar.
Objetivamente pouca coisa havia mudado em sua vida. A não ser, talvez, uma esperança renovada na vida e nas pessoas. Continuava vivendo no mesmo sobrado herdado do pai - o único bem da família de poucas posses - de fachada caiada já descascada, portas e janelas de madeira de lei corroídas e ladrilhos hidráulicos desgastados no piso frio. Continuava acordando cedo para ver o sol entrar pelas amplas janelas, batendo tapetes puídos e almofadas velhas, espalhando travesseiros e cobertas pelo quintal para tomarem sol, alvejando lençóis de algodão, varrendo os cantos e as frestas do assoalho de imbuia, num ritual para espantar os espíritos da noite que espreitavam pelos cantos empoirados. Espantava o mau humor, característico de sua personalidade soturna e reservada, com pranayamas e assanas logo nos primeiros raios da manhã, sentado em postura de lótus no pequeno e florido jardim que cultivava com esmero nos longos e solitários finais de semana no velho casarão. Acendia velas para São Jorge, incensos para Shiva e fazia oferendas de mandala para Padmasambhava. Tinha o mala de mantras sempre em três voltas no pulso direito e a guia de Iemanjá no pescoço.
Executava todas as lides cotidianas do mesmo modo como fazia há anos, com a mesma obstinação, detalhamento e zelo. E mantinha as mesmas dificuldades cotidianas habituais, como falta de vontade de viver, falta de recursos financeiros para se manter com conforto e a amargura contida de não ter realizado seus desejos mais íntimos. Dificuldades combatidas com bravura, mesmo que vez ou outra os cansaços o fizessem repensar os desígnios de Deus.
Apesar de todas essas mazelas, via nessas pequenas epifanias cotidianas - em especial uma -, que sem mais surgiam em sua vida, que ainda existem motivos para seguir adiante. De toda sorte, agradeceu ao universo, reverenciou Shiva com um mudrá, prostrou-se três vezes diante de Buda e saudou Ogum com suas armas por sentir-se um dos escolhidos. Mesmo que não soubesse exatamente escolhido para que, tinha um leve pressentimento que algo de bom e belo havia por trás daqueles olhos marejados, negros e profundos que visitavam-no inicialmente vez ou outra, sempre no fim da tarde, e que iam embora logo que a noite chegava, mas que agora começavam a ser presentes, fisicamente ou não, com cada vez mais força e traziam à tona um homem esquecido, soterrado pelas cotidianidades. Sentia a possibilidade de um carinho que o fizesse querer sorrir quando acordasse, sentir um arrepio percorrer a espinha e ver um brilho duradouro no olhar.
Debruçado sobre o balcão, entre uma tragada e outra, enquanto espelia a fumaça densa dos pulmões, pensava nas armadilhas da vida e no quão imbricados podem ser caminhos que escolhera. Estupefato pelo devir, tentava dar o devido tempo ao tempo e a devida importância às experiências que vivia. Aprendera, embora tardiamente e a duras penas, a esperar o tempo certo de cada coisa. Mantinha aceso o desejo fremente pelo figo maduro e suculento, mas apreendera a esperar o fruto amadurecer no pé, vendo-o diariamente crescer e aprontar-se. Aprendera a esperar o exato tempo de preparar a terra, semear, ver os botões germinados e contemplar as flores desabrochadas. Finalmente estava com o coração sereno, embora em brasa. Finalmente estava preparado para ser a morada de um novo amor.
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