Solidão, compaixão e dignidade: os ingredientes do amor de Haneke
Michael Haneke mexe com o que
tenho de mais profundo. E não é uma sensação boa. Acho que é comparável a um
exame invasivo, como uma endoscopia. Ou pior. É algo comparado a uma sessão
pesada de análise. Daquelas que fazem a gente sair sem saber para que lado
correr. Ele me deixa atabalhoado como um bom analista deixaria. Saio do cinema
destroçado e grato, tal qual aquele bom analista que me manda embora da sessão
sem saber se conseguirei caminhar até o elevador. Bons cineastas, assim como bons
terapeutas, são aqueles que nos tiram de nossa zona de conforto. Obviamente que
isso não é bom o tempo todo. A bem da verdade, quase nunca é. Principalmente
porque me refugio do divã na poltrona do cinema. Às vezes prefiro ver filmes
bonitinhos e levinhos, que me fazem ver o mundo mais colorido, da mesma forma
que troco uma sessão de análise por uma boa conversa num boteco com meus
queridos. Quem gosta de mexer em feridas profundas o tempo todo? Quem gosta de
sentir constantemente um soco no estômago? Quem gosta de ver que o mundo (Nota:
o nosso mundo interior) é meio feio, meio cinza?
Ele me chegou numa tarde cinzenta
e fria de sábado, embora sendo março. (Nota: dia apropriado para um café
fumegante e uma fatia generosa de torta com abundante calda de chocolate.
Chocolate conforta em dias cinzentos). Desde o lançamento do filme eu esperava
o momento certo de assisti-lo. Sabia da badalação que o cercava e vivia um
misto de receio e indisposição em relação à obra. Confesso que não sei se esse
dia foi o mais acertado. Achei o início do filme lento, arrastado, em vários
momentos meu pensamento voou longe, tentei me acomodar melhor para vencer o
sono e a dispersão. Queria parar na metade e ir tomar um cappuccino. Foi aí que vi que esse era o objetivo do diretor, como
sempre. Assim como fujo de sessões pesadas de terapia, fujo de filmes que
reviram minhas vísceras existenciais. Mesmo querendo sempre ser arrebatado e
surpreendido por tudo e por todos, acho que comecei a assistir ao filme esperando
ver algo mais “amoroso”, em sentido vulgar e corriqueiro mesmo. Fui
surpreendido por uma visão da vida que me deixou, no fim da sessão, um tempo
não contado olhando para o teto, tentando recobrar o fôlego e emergir. Estava
esvaziado. Sentia-me como se minha vida toda e minha visão romântica do amor
tivessem sido tomadas de assalto e eu tivesse recebido um choque elétrico nas
pálpebras. Ver outras vidas (im?)possíveis - mesmo sendo pela janela que Haneke
abriu - e ter contato com um outro olhar sobre o mundo (interior e exterior) é
assim, tira a gente do eixo. E é aí que ele me pegou de jeito: gosto da obra do
cineasta austríaco justamente por seu jeito amargo de mostrar um mundo duro. Ou
da crueza como mostra um mundo amargo. Sem rodeios, sem ufanismos, sem
eufemismos.
Por isso alerto: Haneke não é
para Sessão da Tarde. A exemplo de outros filmes inquietantes, como Caché (2005) e A Professora de Piano (La
Pianiste , 2001), Amor (Amour, 2012) não é uma obra que trata de questões como velhice,
compaixão, solidão e companheirismo de forma complacente. Amour é um filme que fala sobre o que é o verdadeiro amor (quando
há amor). Sobre os limites da vida a dois. Sobre o fim da vida. E embora seja um
filme sombrio e arrastado, principalmente para os padrões hollywoodianos, foi o
vencedor do Oscar de melhor filme em língua estrangeira, tendo sido indicado
também para melhor filme, cenário, direção e atriz (Emmanuelle Riva). Amour venceu, ainda, a Palma de Ouro no
Festival de Cannes e os Cesares de melhor filme, ator, atriz e diretor.
A obra, escrita e dirigida por
Haneke, é um tratado sobre a vida, sobre o lado amargo dela. E embora envolva
sempre a sombra da morte, não é um filme que trata diretamente sobre o tema.
Não é por acaso, penso, que a cena inicial mostra um cadáver em decomposição
sendo encontrado pela polícia e toda a trama se desenrola em feedback.
A trama gira em torno da vida cotidiana de um casal de idosos,
Anne (Emmanuelle Riva) e Georges (Jean-Louis Trintignant), que vivem sozinhos
em um amplo apartamento parisiense. A partir de um acidente vascular cerebral
que paralisa um lado do corpo de Anne, vê-se a decrepitude dos protagonistas, o
limite da devoção de Georges e a luta de ambos para manterem sua dignidade. O
elenco ainda conta com a participação de Isabelle Huppert, como Eva, a filha do
casal, que aparece em alguns momentos para lamentar e choramingar a situação da
mãe.
Amour trata de maneira seca e dolorosa, pungente e compassiva, das
formas que encontramos de sobreviver a nós mesmos e aos nossos desastres. É um
filme que esmiúça dos sentimentos mais profundos e mais humanos como se
trilhasse o curso das águas de um rio através de um leito repleto de pedras. É
um filme que fala sobre como sobreviver quando chegamos ao limite inevitável. É
impossível acompanhar Haneke nessa viagem e permanecer o mesmo. É impossível
sair do cinema do jeito que entramos. Se você está pronto para embarcar nessa
incursão, respire fundo, abra os olhos e experimente-se.
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