Goni Montes - ilustração
Não foi a esperança em meu coração, como na música, que bateu outra vez. Pela fresta eu vi que era ela quem batia novamente à minha porta. Depois de tanto tempo, só não esqueci seu rosto porque ainda guardava um retrato seu na carteira. Essa imagem eu capturei no primeiro e único encontro que tivemos, até esse momento em que ela invadiu novamente minha vida sem ser convidada. Queria levar comigo uma lembrança dela, como se fosse uma parte de sua alma que me acompanhasse para sempre. Por isso roubei-lhe aquele segundo e congelei-o em minhas retinas com auxílio da minha Carl Zeiss. Como na música, fotografei-a com minha rolleiflex e revelou-se sua enorme ingratidão. Não foi assim romântico como cantado por Tom Jobim. Estava com minha máquina fotográfica, que não é rolleiflex e quando ela não percebia, registrei-a num momento de distração. Ela nem deve ter percebido. Ou se percebeu, para ela tanto fez.
Revelei em casa mesmo essa fotografia. Era como se precisasse dar à luz aquele ser que criei. E pensei que poderia ser meio mórbido ou bizarro, meio como aquele “hábito” pessoas tinham de fotografar seus mortos, lá no início da fotografia, por volta do século XIX. Para aquelas pessoas era, entre outros motivos, uma forma de negar a morte e guardar recordação de seus entes queridos. Acho que queria guardá-la comigo porque no fundo sabia que ela iria embora logo depois. E ela realmente foi. Fiz várias cópias da imagem, com vários tratamentos diferentes. Nunca confessei esse meu “segredinho” a ninguém porque temia ser considerado um psicopata. E tinha mais medo de ter que concordar com as pessoas que dissessem isso. Uma das cópias era grande, coloridíssima. Pensei em colocá-la numa moldura bonita e entregar a ela de presente. As outras eram todas menores. A menor é a que carregava na carteira. Em tamanho 5 cm x 7 cm. Mas ainda assim era possível ver seus olhos tristes e aquele quase sorriso. Ela nunca sorriu abertamente. Esboçava quase-sorrisos, meio de lado, espremendo os cantos da boca. Talvez tivesse medo de ser descoberta na alegria, talvez não se sentisse digna da felicidade. Talvez nem achasse graça mesmo das minhas piadas infames sobre banalidades. Ela sempre foi séria, sisuda, preocupada, reflexiva, corroída por dúvidas existenciais neuróticas. Não era austera (adoro esse termo), era simplesmente sem senso de humor, quem sabe. Meio ríspida, beirando a agressividade, às vezes. Simples assim: Ela era seca no limiar da grosseria.
Mas essa foto que carrego na carteira era sua marca em minha memória. De tempos em tempos eu revisitava essa imagem e as lembranças irreais que criei dela, quando procurava trocados para pagar o estacionamento, ou um café, ou para comprar chicletes ou preservativos, de madrugada, em uma loja de conveniências 24h qualquer, num dos infindáveis e infrutíferos encontros fortuitos que tive para esquecer ausências e solidões. Ela inundava minha memória nessas horas como uma onda. E depois recuava novamente, fluída e evasiva, para o esquecimento. Quase sentia remorso por não tentar mais uma vez procurá-la, por não ligar ou não mandar uma mensagem qualquer, mesmo que lá no fundo eu soubesse que ela nunca atendeu aos meus chamados porque não estava interessada em mim como eu estava interessado em nós. Eu olhava a foto para não esquecer os detalhes do seu rosto: os olhos muito escuros, pequenos, meio juntos e levemente estrábicos, o nariz que te tão pequeno parecia impossível, a boca miúda, reta, de lábios finos, incompatível com o maxilar quadrado. Seus detalhes - tão pequenos - não eram propriamente um grande feito estético. Ela não era uma mulher de close up. Devia ser vista de longe e em conjunto. Na totalidade, inacessível e distante, ela era uma mulher interessante.
Somente depois percebi que a foto em minha carteira era uma memória distorcida da realidade. Descobri isso quando ela bateu novamente à minha porta. As pessoas mudam, eu sempre soube, mas achei que ela não mudaria. Na verdade, eu não queria que ela mudasse. Ou melhor, eu queria que ela realmente fosse aquilo que eu imaginava dela, aquilo que eu queria que ela fosse. Claro que jamais confessaria que eu queria que ela fosse o que eu imaginava dela. Apenas queria que ela fosse, espontaneamente, tudo o que eu imaginava. E ela era outra. Talvez eu também tenha me tornado outro, quando vi que ela não era nada daquilo que eu criei. E nessas horas não há nada a fazer. Ninguém é vítima, ninguém é culpado.
Meio atabalhoado, abri a porta. Naqueles olhos negros eu ainda via a mesma moça da fotografia. Ela chegou como uma mensagem cifrada, convidando-me para jantar, como se pouca coisa ou nada tivesse acontecido. E nada aconteceu mesmo. Somente meses de absoluto silêncio, telefonemas não atendidos e mensagens não respondidas. Eu não tinha nada a perder. E suspeitava que não tinha nada a ganhar também. Entretanto, nunca dei tratos à minha intuição. Sem hesitar, aceitei o convite. Ficou sob minha responsabilidade decidir a que lugar iríamos. Acho que ela fez isso por cordialidade. Talvez por preguiça. Talvez por desinteresse, o que era mais provável, depois percebi. Pensei em um lugar neutro, nem muito impessoal, nem intimista demais, com boa comida que agradasse a todos os paladares. Gosto de culinária sofisticada, exótica, mas gosto de comidas aconchegantes e familiares. Depois de muito ponderar decidi: uma cantina italiana, minha zona de conforto. Sou inseguro e pouco criativo. Dificilmente ela não gostaria desse tipo de cozinha e eu tinha a desconfortável sensação de não poder errar em nada, de forma alguma.
Marcado o dia, o local e o horário, esperei que o momento chegasse. Nas horas que antecederam o encontro, fiquei um pouco ansioso. Nada demais. Procurei pela casa algo para fazer, a fim de aliviar a tensão pré-encontro. Procurei nas palavras de Jack Kerouac sobre a vida de Buda algo que distraísse minha mente. Servi uma dose dupla de whisky sem gelo, mais para dispersar a atenção da expectativa - que eu criara psicoticamente - com a sensação do líquido descendo rascante pela garganta do que o efeito relaxante do álcool. Coloquei uma música, um Chico Buarque melancólico cantando Olhos nos Olhos me ardendo por dentro mais que o whisky. Sentei-me próximo à janela, esperando o tempo passar, como se ela estivesse prestes a chegar. Claro que ela não chegaria. O combinado não foi esse. Quando acertamos os detalhes de nosso encontro, dispus-me a ir buscá-la em casa, em tom cavalheiresco. Ela não aceitou. Preferiu que nos encontrássemos no restaurante no horário marcado. Disse ainda que iria em seu carro, em tom contestador como se queimasse sutiã em praça pública. Embora não seja ecológico irmos sozinhos em dois carros, não insisti. Talvez fizesse parte de sua mise-en-scène fazer a linha independente.
Cheguei dez minutos antes do horário marcado. Cabelo penteado, barba feita, encharcado de loção, camisa alinhada, sapatos perfeitamente lustrados. Robótico e detestando tudo em mim. Como no primeiro encontro eu esperei por ela dois chopps, achei que teria uma tolerância de alguns minutos. Talvez se eu chegasse antes pareceria que sou ansioso (e eu sou!). Então, resolvi estacionar e esperar no carro ela chegar, uma vez que ainda não tinha visto seu carro estacionado em frente ao restaurante. Liguei o rádio. Olhos nos Olhos novamente. Não muito apropriado, mas deixei a música mesmo assim, batucando no volante para dispensar a tensão, que a uma hora dessas me causava taquicardia e suores frios. Fiquei pensando sobre a situação que estava vivendo naquele exato momento. E no fundo eu queria ver como ela suportaria me ver tão feliz, como na música, mesmo que eu precisasse dissimular com uma felicidade de Prozac.
Desci do carro e acendi um cigarro. Há tempos parei de fumar, mas ainda insisto em usá-lo como bengala de determinadas situações. Na primeira tragada funda que dei senti uma leve tontura. Então vi o quão ridículo estava sendo. Apaguei-o com a ponta do sapato de couro reluzente. Acho que nunca havia lustrado tão bem um par de sapatos. Decidi entrar, para poder escolher uma mesa razoável, em local estratégico, e beber algo, como já era costumeiro, enquanto esperava ela chegar. O restaurante era pequeno, acolhedor e estava lotado. Da porta dei uma olhada geral para me certificar que ela não estaria. Então a vejo acenando para mim. Eu estava atrasado.
Cumprimentamo-nos formalmente. A formalidade típica de quem algum dia teve alguma intimidade. Éramos dois velhos conhecidos que não se viam há muito tempo, nada mais que isso. Desculpei-me pelo atraso, mas não disse que havia chegado há quase vinte minutos. Pedi uma bebida para acompanhá-la. O que aconteceu desse momento em diante foi uma sucessão de estranhamentos e equívocos que me causaram algo entre a estupefação e a decepção, tendendo mais à segunda. É como diz uma amiga minha, citando Mario Quintana: “A esperança é um urubu pintado de verde”.
Nossa conversa esteve longe de ser fluida. Se fosse transcrita, formaria no máximo quatro laudas de frases meio desconexas que davam a impressão de serem dois monólogos distantes e ecoados. Se esses diálogos transcritos fossem o roteiro um filme, resultariam em aproximadamente cinco minutos de filmagem. Um curta-metragem. Mas na prática era como se eu fosse protagonista de um longa-metragem experimental de dezesseis horas, rodado em uma única tomada, sem cortes. Ela contou-me sem entusiasmo de seus dias, de seu trabalho, das viagens que aparentemente tinha feito sozinha, dos desencontros e da falta de comunicação e contato mais próximo com as pessoas. Engraçado que ela reclamava das outras pessoas exatamente uma postura que ela estava tendo comigo até aquele momento. Enquanto ela falava, eu pensava em outras coisas. Queria saber o que existia por trás daquele discurso que ela fazia, onde ela estava naquilo tudo, onde, detrás daqueles olhos escuros e opacos, estava aquela mulher que criei. Onde ela queria chegar com aqueles pensamentos desencontrados e incompletos?
Localizado exatamente à minha frente havia um relógio enorme, decorado em ébano e cobre. Um pêndulo dourado imponente quase me hipnotizava durante os longos silêncios que pontuaram nossa conversa, quando eu não tinha coragem de olhar para ela porque temia que saltassem da minha boca que tudo estava sendo um grande erro e que eu iria embora. Perdia-me em pensamentos, enquanto olhava os detalhes entalhados do relógio. Eram flores, pássaros, folhas e umas formas que eu não identificara se eram cobras ou dragões porque para impressioná-la havia decidido deixar os óculos no console do carro (e pouco enxergo sem eles).
Contei-lhe também sobre meus dias, sem muito entusiasmo, por mera formalidade e para romper o silêncio constrangedor que insistia em se instaurar entre nós. Além de não haver nada muito interessante a ser contato, não tinha muito interesse em dividir minha intimidade com aquela que a cada minuto que passava se tornava mais desconhecida. Tentei dar um ar mais interessante às banalidades de minha vida mediana, sem parecer que estava querendo enaltecer meus feitos, nem tampouco desmerecê-los. Acho que não consegui. Minha máscara sempre cai antes do fim do primeiro ato e acho que não sustentei o personagem. Sentia o suor escorrendo pelas minhas costas sufocadas numa camisa xadrez azul justa demais. Tinha vontade de tirar os sapatos, de desabotoar a camisa e afrouxar o cinto. Não que me sentisse tão confortável perto dela, pelo contrário, era ainda mais constrangedor estar vestindo uma camisa de força em frente à moça de rosto lavado, cabelos amarrados, sapatilhas de pano e camiseta branca em minha frente. Na chegada, quando escorreguei no ladrilho úmido do salão, brinquei que estava desacostumando a caminhar com sapatos porque só usava tênis e ela ainda se achou no direito de criticar meu esforço em arrumar-me com cuidado para encontrá-la.
Lembro que em nosso primeiro encontro, o outro além desse, dividimos alegremente uma porção medíocre de iscas de carne com torradas num boteco qualquer, ao som de blues envolventes. Trocamos gentilezas acerca da última torrada, cristãmente partida ao meio. E rimos descontraidamente da jocosa porção servida, como rimos do chopp morno e do atendimento ruim. O que importava naquela hora era a companhia.
De semelhante com o primeiro encontro, o segundo tinha a nossa incapacidade de nos envolvermos. Na verdade eu me envolvi depois do primeiro encontro, mas não foi recíproco. Ainda consegui manter meu equilíbrio, mesmo cortejando a insanidade. Nossa segunda noite terminaria como a primeira, talvez. Iríamos para minha casa, beberíamos um vinho ou algo assim, eu colocaria uma música, diminuiria a luz, nos aproximaríamos, eu finalmente poderia tirar os sapatos, que a essa altura pareciam instrumentos medievais de tortura, e dormiríamos juntos. Provavelmente haveria uma distância abissal entre nós. Trocaríamos carícias mornas, ela seria fria e eu mocho. No dia seguinte, recobraríamos a consciência, sentiríamos um constrangimento disfarçável, pularíamos o romântico café na cama e eu chamaria um táxi para que ela fosse embora da minha casa o mais rápido possível. Então, trocaria os lençóis, abriria todas as janelas e apagaria os vestígios dela em minha vida, sentindo algo entre solidão e repulsa.
A cada cinco minutos eu olhava a hora que o relógio marcava. O tempo se arrastava torturantemente. Pensei em encurtar o encontro comendo mais rápido, pois assim poderia dizer que era hora de ir embora. Ainda estávamos no couvert e ela não parecia muito inclinada a pedir o prato principal. Acenei para que fizéssemos o pedido o mais breve possível, insinuando que estava famélico, quando na verdade estava até com uma leve indisposição. Até que pedíssemos a entrada, o prato principal, a sobremesa e o café já haveria passado a noite toda e enquanto isso eu imploraria para que a chave da minha cadeira elétrica fosse girada.
Finalmente o primeiro prato chegou. Tratei de servi-la, gentilmente, e depois servi uma porção para mim. No fim, ela reclamou que eu havia comido a última bruschetta de mussarela de búfala tomate e manjericão, deixando somente a de presunto de Parma, que ela detesta enfaticamente. E tive uma revelação através daquela última bruschetta: Se com a entrada ela fez isso, o que restaria quando fosse servido o prato principal? Nessa altura, eu já havia desistido de pedir sobremesa, mesmo sabendo que aquele lugar servia uma torta tiramissu deliciosa. Não havia clima e isso estenderia demasiadamente o jantar.
O problema naquela hora era a companhia. Foi então que vi que ela não existia. E que eu não existia para ela. E que a reclamação não era por causa da maldita bruschetta. Era eu o problema. Porém, aquele pãozinho torrado com queijo, azeite e ervas revelou minha absoluta miséria existencial. Depois que ela me tratou como um assassino de sonhos por haver maculado a última infame bruschetta, que ela achava-se no direito de reivindicar como sua, fiquei tão consternado e sem ação que tudo o que queria voltar para minha casa, vestir meu pijama e assistir a reprise de algum filme antigo na TV, protegido do mundo, protegido dela, protegido de mim mesmo. Nossas vidas, que se uniram através de uma torradinha com molho de maionese dividida em duas partes iguais, se afastaram derradeiramente por causa de uma fatia de pão italiano coberto com mussarela de búfala. A única lembrança que fica dela em mim é a certeza de, na próxima vez, lembrar de pedir porções individuais e escolher melhor minhas companhias.
Um Luciano sempre surpreendente. Um presente nesta tarde de Páscoa! Nada e todo "austero". Deu uma vontade de rever antigos amigos esquecidos no tempo e no espaço, mas com a certeza de poder dividir com eles pequenas porções de torradas com manteiga. Saudade de ti. Bj
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