“Personal Saint”, by Natalie
Shau
[Para ler ao som de "These Days" – Nico]
Parábola sobre a vida cotidiana mais
comum que poderia ser a biografia de qualquer um.
Meu
nome é Nico. Este não é meu nome original, mas detesto meu nome de batismo. Meu
pai que me perdoe, mas é um nome realmente muito feio. Por isso rebatizei-me. Gosto
de ser chamada assim, lentamente: Ni-co.
Descobri dia desses, mexendo no fundo de uma gaveta do banheiro, que tenho uma
coleção bizarra e involuntária. “Coleciono” escovas de dentes de pessoas que
passaram fugaz e efemeramente pela minha vida, que surgiram do nada e
desapareceram sem deixar rastros. A bem da verdade, algumas marcas ficaram. E
eu esfrego, nego e escondo para que elas desapareçam ou sejam esquecidas. Só no
último ano, “conquistei” quatro novos bustos para o hall of fame. “Tornei-me
perita em extrair faísca das britas e leite das pedras”, lembrando
Calcanhoto. “Acordo”.
Se
eu fosse dada a crenças ocultistas, diria que meu banheiro tem uma maldição: A
maldição do porta-escovas. Depois desse emblemático momento, no qual meu
território é demarcado por um forasteiro e o espaço vago da escova de dentes é
ocupado por um objeto novo e estranho, o prazo para que a escova (e eu) sejamos
abandonadas por quem a cravou nesse lugar é de sete dias. Certo, sete dias pode
parecer exagero. Mas já existiram situações em que o sumiço aconteceu em menos
tempo. E tenho vontade de cantar para todos eles: “I had a lover, / I don't think I'll risk another / These days, these
days. / And if I seem to be afraid / To live the life that I have made in song
/ It's just that I've been losing so long.”*
Já
pensei em fazer uma instalação em uma parede da sala com esses objetos. Quase
como um memorial em homenagem a mortos de guerra. O nome seria bonito: “Memorial do Amante Desaparecido”. Numa
sala branca e completamente vazia, colocaria na parede cada uma em uma moldura,
também branca, como uma caixa de madeira com vidro, e sob elas uma legenda
contanto sua história. Seria hilário e triste. E como as pessoas adoram ver a
desgraça alheia, eu cobraria ingressos. Histórias de separação e abandono
sempre captam público. Seria sucesso garantido.
Vendo
essas escovas eu percebo que, assim como a gaveta de meias, as escovas de
dentes contam muito da personalidade de seus donos. Por que acho isso? Porque
fiz uma longa pesquisa de campo, ao longo de vários anos. Se você tiver a
chance, dê uma espiada na gaveta de meias (vale gaveta de cuecas ou calcinhas)
de seu/sua pretendente e veja se a gaveta não é exatamente uma fotografia da
forma de viver dessa pessoa. Veja se as meias estão dobradas em pares ou soltas,
empilhadas ou todas misturadas, se são coloridas ou se são todas brancas, se
estão separadas por cor e tipo, se são na maioria de algodão, esportivas ou
sociais, se estão encardidas, furadas ou puídas. Perceba o que você sente ao
ver essa gaveta. Repare em suas próprias reações. E ao menor indício de que
algo está errado nessa gaveta, acenda a luz vermelha de alerta. E fuja enquanto
é tempo. Provavelmente existe algo que será, no futuro, um foco de tensão entre
você e seu/sua aspirante a par(tner).
Por outro lado, se a gaveta lhe causar boa impressão e admiração - ou inveja
porque a sua é muito mais caótica - veja nisso um estímulo e invista nessa
relação. Mas alerto: Nunca, nunca mesmo, deixe que a outra pessoa perceba que
você fez esse tipo de análise! Essas idiossincrasias nunca são bem vistas pela
população “normal”. Essa investigação deve ser muito particular e sigilosa.
Mas
voltemos às escovas que herdei e seus respectivos donos. Uma delas está
praticamente intacta, é uma daquelas cheias de tecnologias, anatomias e ergonomias,
do tipo que tem propaganda na TV em laboratórios iguais aos da NASA e os atores
- sempre com dentes alvíssimos - usam jalecos tão brancos quanto os dentes.
Cerdas super macias, cabo emborrachado, tons neutros. Deve ter sido usada no
máximo duas vezes e provavelmente foi comprada com o intuito específico de
ocupar meu banheiro. Ele era assim também: asséptico e parecia ter sido criado em laboratório. Outra
delas é nova também, suponho. Teve pouco uso, pelo menos. É dessas baratinhas,
simplíssimas, reta, em plástico de cor lilás de gosto duvidoso, tamanho grande
e cerdas médias. É do tipo que se compra em supermercados, normalmente são
quatro ou cinco unidades de cores berrantes num pacote promocional, provavelmente
o valor por cada uma não chega mais que alguns centavos. Seu dono, se fosse
colocado à venda no mercado público, também não valeria muito mais que isso. Outra,
ainda, é uma escova dessas de viagem, cujo cabo vira um estojo para proteger as
cerdas. Brinde de uma rede de Hotéis, é aquele tipo precário de escova de
dentes, que deve ser usada pelo tempo em que se está hospedado no hotel ou até
ser encontrada uma drogaria 24h para que se compre uma escova digna. Não foi o
caso, acho. Escova de viajante, ela é também bem viajada. Provavelmente ele
encontrou-a perdida em sua mala de resolveu desová-la aqui em casa. Prático. Suas
cerdas estão gastas e tortas e o estojo que deveria protegê-las de contaminação
mais parece uma daquelas placas de laboratório para cultura de fungos, tamanha
a quantidade de resíduos esbranquiçados e pretos de creme dental e bolor. Seu
dono deve estar perdido até hoje em alguma ponte aérea entre Amsterdã e Teerã e
a escova jamais fará falta, porque sempre há um novo hotel no caminho entre
nada e lugar nenhum. A última é idêntica à escova de dentes que uso. Achei uma
coincidência tão romântica duas escovas exatamente iguais em meu banheiro. Cheguei
a pensar que poderia ser algum sinal do universo para que eu não perdesse a
esperança na humanidade. São escovas simples e anatômicas, de tamanho pequeno e
cerdas macias, haste transparente com detalhes emborrachados na extremidade e
possuem protetores de cerdas na cor da haste. Para não confundir as duas, fiz
uma marca na minha. Não tive nem tempo de fazer confusão pela manhã. A escova
foi utilizada uma única vez. Esperei semanas que ela fosse utilizada novamente.
O símbolo do infinito, que tatuei na minha escova em sua homenagem, ficou. A
escova dele foi para seu devido lugar. Quando desisti de esperá-lo
infinitamente, joguei-a na gaveta para perdê-la de vista para sempre. A gaveta
do esquecimento é um bom lugar para elas - escovas e pessoas.
Mas
para dor de amor eu não faço sala**. Por
isso, hoje decidi: visitas à minha casa somente guiadas e sem pernoite. Ou
então posso fornecer um kit-permanência, de cortesia, com escova, creme dental,
fio dental, talvez algum mimo opcional, em uma nécessaire que deve,
obrigatoriamente, ser levada embora no dia seguinte e retornar na próxima
visita, caso exista. Talvez devesse colocar meu cartão de visitas, nunca se
sabe. Porque, né, assim todos estaremos livres das maldições ou de vagarmos,
erráticos, pelo samsara. Mas ainda
não coloquei isso em
prática. E provavelmente nunca colocarei. Esta é uma daquelas
metas das listas de início de ano que nunca cumpro. Deveria incluir na próxima
lista que devo carregar minha própria escova e cravá-la em banheiro alheio.
Seria minha libertação. E antes disso preciso anotar na porta da geladeira para
não esquecer e repetir como um mantra: - Nico,
imponha limites: Sua casa, suas regras.
Apoio-me
sobre a pia com a mão direita e com a esquerda seguro essa quase meia dúzia de
escovas. Inclino-me e vejo minha imagem refletida no espelho. Mesmo sentindo
ser prática, cotidiana e nítida, ao melhor estilo Passagem das Horas, esse
processo de construção e reconstrução de mim mesma é cansativo. É preciso
encerrar um ciclo para começar outro. É preciso liberar espaço na gaveta, mesmo
que seja para enchê-la com as mesmas coisas. Penso nisso pouco antes de jogar
todas essas lembranças na lixeira ao lado do vaso sanitário. E sinto uma
pontinha de mágoa no peito porque no fundo, bem lá no fundinho mesmo, queria
ter uma vida pacata, de casinha com cerca branca, jardim florido, cadeira de
balanço na varanda e em seu interior sonhos compartilhados. Porque a
Felicidade, desse jeito mesmo com letra maiúscula, como se fosse o nome de um
ente querido, é assim bem Nora Ney: “Felicidade
é uma casinha simplesinha / Com gerânios, em flor na janela / uma rede de malha
branquinha / E nós dois a sonhar dentro dela.”
Encerro
mais um ciclo nesta ciranda infinita. Enquanto ouço o barulho das escovas
batendo no fundo da lixeira, tiro o pé do pedal que sustenta a tampa erguida,
fazendo com que ela bata em um soco seco. E penso, bem Nico - a outra: “Esses dias eu pareço pensar sobre / Como
todas as mudanças vieram em minhas direções / E eu penso se eu vou ver outro caminho.”
***
Amanhã, quem sabe?
____________________________
*
“Eu tive um amante
Eu
não acho que arriscarei outro
Esses
dias, esses dias
E
se eu parecer estar com medo
De
viver a vida que eu criei na música
É
só que eu estive perdido há tanto tempo” (Nico – These Days)
**Ralador
– Mariana Baltar
*** “These days I seem to think about
How all the changes came about my ways
And I wonder if I'll see another highway.” (Nico – These Days)
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