terça-feira, 23 de abril de 2013

ACERVO PARTICULAR


 “Personal Saint”, by Natalie Shau

[Para ler ao som de "These Days" – Nico]

Parábola sobre a vida cotidiana mais comum que poderia ser a biografia de qualquer um.

Meu nome é Nico. Este não é meu nome original, mas detesto meu nome de batismo. Meu pai que me perdoe, mas é um nome realmente muito feio. Por isso rebatizei-me. Gosto de ser chamada assim, lentamente: Ni-co. Descobri dia desses, mexendo no fundo de uma gaveta do banheiro, que tenho uma coleção bizarra e involuntária. “Coleciono” escovas de dentes de pessoas que passaram fugaz e efemeramente pela minha vida, que surgiram do nada e desapareceram sem deixar rastros. A bem da verdade, algumas marcas ficaram. E eu esfrego, nego e escondo para que elas desapareçam ou sejam esquecidas. Só no último ano, “conquistei” quatro novos bustos para o hall of fame. “Tornei-me perita em extrair faísca das britas e leite das pedras”, lembrando Calcanhoto. “Acordo”.

Se eu fosse dada a crenças ocultistas, diria que meu banheiro tem uma maldição: A maldição do porta-escovas. Depois desse emblemático momento, no qual meu território é demarcado por um forasteiro e o espaço vago da escova de dentes é ocupado por um objeto novo e estranho, o prazo para que a escova (e eu) sejamos abandonadas por quem a cravou nesse lugar é de sete dias. Certo, sete dias pode parecer exagero. Mas já existiram situações em que o sumiço aconteceu em menos tempo. E tenho vontade de cantar para todos eles: “I had a lover, / I don't think I'll risk another / These days, these days. / And if I seem to be afraid / To live the life that I have made in song / It's just that I've been losing so long.”*

Já pensei em fazer uma instalação em uma parede da sala com esses objetos. Quase como um memorial em homenagem a mortos de guerra. O nome seria bonito: “Memorial do Amante Desaparecido”. Numa sala branca e completamente vazia, colocaria na parede cada uma em uma moldura, também branca, como uma caixa de madeira com vidro, e sob elas uma legenda contanto sua história. Seria hilário e triste. E como as pessoas adoram ver a desgraça alheia, eu cobraria ingressos. Histórias de separação e abandono sempre captam público. Seria sucesso garantido.

Vendo essas escovas eu percebo que, assim como a gaveta de meias, as escovas de dentes contam muito da personalidade de seus donos. Por que acho isso? Porque fiz uma longa pesquisa de campo, ao longo de vários anos. Se você tiver a chance, dê uma espiada na gaveta de meias (vale gaveta de cuecas ou calcinhas) de seu/sua pretendente e veja se a gaveta não é exatamente uma fotografia da forma de viver dessa pessoa. Veja se as meias estão dobradas em pares ou soltas, empilhadas ou todas misturadas, se são coloridas ou se são todas brancas, se estão separadas por cor e tipo, se são na maioria de algodão, esportivas ou sociais, se estão encardidas, furadas ou puídas. Perceba o que você sente ao ver essa gaveta. Repare em suas próprias reações. E ao menor indício de que algo está errado nessa gaveta, acenda a luz vermelha de alerta. E fuja enquanto é tempo. Provavelmente existe algo que será, no futuro, um foco de tensão entre você e seu/sua aspirante a par(tner). Por outro lado, se a gaveta lhe causar boa impressão e admiração - ou inveja porque a sua é muito mais caótica - veja nisso um estímulo e invista nessa relação. Mas alerto: Nunca, nunca mesmo, deixe que a outra pessoa perceba que você fez esse tipo de análise! Essas idiossincrasias nunca são bem vistas pela população “normal”. Essa investigação deve ser muito particular e sigilosa.

Mas voltemos às escovas que herdei e seus respectivos donos. Uma delas está praticamente intacta, é uma daquelas cheias de tecnologias, anatomias e ergonomias, do tipo que tem propaganda na TV em laboratórios iguais aos da NASA e os atores - sempre com dentes alvíssimos - usam jalecos tão brancos quanto os dentes. Cerdas super macias, cabo emborrachado, tons neutros. Deve ter sido usada no máximo duas vezes e provavelmente foi comprada com o intuito específico de ocupar meu banheiro. Ele era assim também: asséptico e parecia ter sido criado em laboratório. Outra delas é nova também, suponho. Teve pouco uso, pelo menos. É dessas baratinhas, simplíssimas, reta, em plástico de cor lilás de gosto duvidoso, tamanho grande e cerdas médias. É do tipo que se compra em supermercados, normalmente são quatro ou cinco unidades de cores berrantes num pacote promocional, provavelmente o valor por cada uma não chega mais que alguns centavos. Seu dono, se fosse colocado à venda no mercado público, também não valeria muito mais que isso. Outra, ainda, é uma escova dessas de viagem, cujo cabo vira um estojo para proteger as cerdas. Brinde de uma rede de Hotéis, é aquele tipo precário de escova de dentes, que deve ser usada pelo tempo em que se está hospedado no hotel ou até ser encontrada uma drogaria 24h para que se compre uma escova digna. Não foi o caso, acho. Escova de viajante, ela é também bem viajada. Provavelmente ele encontrou-a perdida em sua mala de resolveu desová-la aqui em casa. Prático. Suas cerdas estão gastas e tortas e o estojo que deveria protegê-las de contaminação mais parece uma daquelas placas de laboratório para cultura de fungos, tamanha a quantidade de resíduos esbranquiçados e pretos de creme dental e bolor. Seu dono deve estar perdido até hoje em alguma ponte aérea entre Amsterdã e Teerã e a escova jamais fará falta, porque sempre há um novo hotel no caminho entre nada e lugar nenhum. A última é idêntica à escova de dentes que uso. Achei uma coincidência tão romântica duas escovas exatamente iguais em meu banheiro. Cheguei a pensar que poderia ser algum sinal do universo para que eu não perdesse a esperança na humanidade. São escovas simples e anatômicas, de tamanho pequeno e cerdas macias, haste transparente com detalhes emborrachados na extremidade e possuem protetores de cerdas na cor da haste. Para não confundir as duas, fiz uma marca na minha. Não tive nem tempo de fazer confusão pela manhã. A escova foi utilizada uma única vez. Esperei semanas que ela fosse utilizada novamente. O símbolo do infinito, que tatuei na minha escova em sua homenagem, ficou. A escova dele foi para seu devido lugar. Quando desisti de esperá-lo infinitamente, joguei-a na gaveta para perdê-la de vista para sempre. A gaveta do esquecimento é um bom lugar para elas - escovas e pessoas.

Mas para dor de amor eu não faço sala**. Por isso, hoje decidi: visitas à minha casa somente guiadas e sem pernoite. Ou então posso fornecer um kit-permanência, de cortesia, com escova, creme dental, fio dental, talvez algum mimo opcional, em uma nécessaire que deve, obrigatoriamente, ser levada embora no dia seguinte e retornar na próxima visita, caso exista. Talvez devesse colocar meu cartão de visitas, nunca se sabe. Porque, né, assim todos estaremos livres das maldições ou de vagarmos, erráticos, pelo samsara. Mas ainda não coloquei isso em prática. E provavelmente nunca colocarei. Esta é uma daquelas metas das listas de início de ano que nunca cumpro. Deveria incluir na próxima lista que devo carregar minha própria escova e cravá-la em banheiro alheio. Seria minha libertação. E antes disso preciso anotar na porta da geladeira para não esquecer e repetir como um mantra: - Nico, imponha limites: Sua casa, suas regras.

Apoio-me sobre a pia com a mão direita e com a esquerda seguro essa quase meia dúzia de escovas. Inclino-me e vejo minha imagem refletida no espelho. Mesmo sentindo ser prática, cotidiana e nítida, ao melhor estilo Passagem das Horas, esse processo de construção e reconstrução de mim mesma é cansativo. É preciso encerrar um ciclo para começar outro. É preciso liberar espaço na gaveta, mesmo que seja para enchê-la com as mesmas coisas. Penso nisso pouco antes de jogar todas essas lembranças na lixeira ao lado do vaso sanitário. E sinto uma pontinha de mágoa no peito porque no fundo, bem lá no fundinho mesmo, queria ter uma vida pacata, de casinha com cerca branca, jardim florido, cadeira de balanço na varanda e em seu interior sonhos compartilhados. Porque a Felicidade, desse jeito mesmo com letra maiúscula, como se fosse o nome de um ente querido, é assim bem Nora Ney: “Felicidade é uma casinha simplesinha / Com gerânios, em flor na janela / uma rede de malha branquinha / E nós dois a sonhar dentro dela.”

Encerro mais um ciclo nesta ciranda infinita. Enquanto ouço o barulho das escovas batendo no fundo da lixeira, tiro o pé do pedal que sustenta a tampa erguida, fazendo com que ela bata em um soco seco. E penso, bem Nico - a outra: “Esses dias eu pareço pensar sobre / Como todas as mudanças vieram em minhas direções / E eu penso se eu vou ver outro caminho.” ***

Amanhã, quem sabe?


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* “Eu tive um amante
Eu não acho que arriscarei outro
Esses dias, esses dias
E se eu parecer estar com medo
De viver a vida que eu criei na música
É só que eu estive perdido há tanto tempo” (Nico – These Days)

**Ralador – Mariana Baltar

*** “These days I seem to think about
How all the changes came about my ways
And I wonder if I'll see another highway.” (Nico – These Days)




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