Fotografia de Georgiy Alexandrov
“O que será que me dá
Que me bole por dentro, será que me dá
Que brota à flor da pele, será que me dá
E que me sobe às faces e me faz corar
E que me salta aos olhos a me atraiçoar
E que me aperta o peito e me faz confessar
O que não tem mais jeito de dissimular”
– “O Que Será (À Flor da Pele)” - Chico Buarque -
Sabe
o que é mágoa? Sim, isso mesmo que você ouviu, você sabe definir o que é mágoa?
Você já sentiu isso? Essa coisa tão funda, mas tão funda, que parece que você
pode segurá-la com os dedos indicador e polegar em forma de pinça? Não, não
estou perguntando só para que você me dê explicações científicas ou me
apresente suas construções intelectuais sobre o conceito ou sobre a etimologia
da palavra. Quero saber se você pode definir para mim um sentimento como sendo
isso, “Má-go-a”. Como se você fosse cego e explicasse como reconhece a cor
vermelha. Ou me descrevesse o gosto de uma fruta madura apanhada do pé. Ou
ainda, onde mora o amor. Lembra? Daquele filme que assistimos juntos uma vez.
Traduza o que é mágoa para você. Traduza-se. Traduza-me.
Por
que eu quero saber? Porque preciso urgentemente definir o que eu estou sentindo
agora. Isso não pode esperar até amanhã. Por quê? Porque quando amanhecer,
talvez seja tarde. Talvez a dor passe para sempre, talvez ela mude de lugar e
eu nunca mais consiga reencontrá-la, talvez eu aprenda a conviver com ela até
quase não perceber que ela come aos poucos minha alma, como a águia comia o
fígado de Prometeu acorrentado ao Cáucaso. E não quero isso. Sei que é tarde e
que você já estava dormindo, ainda lembro-me dos seus horários e sei que você
precisa de oito horas ininterruptas de sono e acordar antes do sol nascer para
fazer yoga e meditar. Eu dormia até mais tarde e acordava a tempo de passar
café bem forte para mim e esquentar seu pão integral de duzentos e oitenta
grãos, antes do seu último ásana do
Yoga Sutra.
Certo,
desculpe-me, serei mais objetivo. Só procurei você porque a melhor forma de
definir isso que sinto agora é sabendo o que você sente e o que pensa. Eu me defino
e delimito quem sou a partir dos limites do que é você. Não quero ser como
você. Deixe de ser soberbo. Quero me diferenciar de você. Não, não estou
menosprezando você. Não é despeito. Talvez seja mágoa. E é por isso que
procurei você. Apenas quero descobrir o que eu sou e o que sinto, quero descobrir
se sou algo que é o extrato, o sumo, que resultou do que eu era antes de você e
da fusão que fui com você ou se sou qualquer coisa como o bagaço que sobrou do
que éramos. Entende? Antes de conhecer você, eu sabia quem eu era. Agora só me
restaram dúvidas e ausências. Não tem importância. Apenas queria que você
respondesse a esta pergunta simples.
O
motivo de perguntar isso agora é que algo está crescendo no meu peito. Sim,
tentei fazer os exercícios respiratórios que você me ensinou para controlar a
ansiedade. E não bebi café depois das dez da noite. Bebi aquele chá de flores que
você me trouxe daquela viagem. Para onde você foi mesmo? Não adiantou. Não estou
ansioso ou tenso, apenas quero saber o que é isso que cresce aqui dentro. E
acho que foi provocado, de certa forma, por você. E suspeito que o que sinto é
mágoa. Então, por favor, ajude-me, e diga o que é esse sentimento negro e
amargo que tenho.
Não,
não quero culpar você por nada. Nem quero encontrar outro culpado. Não há
culpados. Sentir isso tudo agora sempre foi um risco ao qual me propus. Eu
sempre assumi os riscos de estar ao seu lado. A responsabilidade é minha. Não,
você está entendendo errado. Não estou querendo dizer que nunca precisei de
você para nada e que sou capaz de suportar tudo sozinho, embora eu ache que
isso é verdade. O que sinto agora é o resultado previsível (talvez já previsto)
desse processo de permitir que você entrasse no meu mundo e não me deixasse
entrar no seu. Suspeito que seu mundo tenha coisas interessantes. Não conheci
essas coisas porque você fechou todas as portas para mim. Mas você também desconhece
essas coisas porque nem mesmo você entrou em algumas salas. E sinto uma
profunda compaixão por você. Queria conhecer você tanto quanto queria que você
se conhecesse. Além disso, o que importava para mim era o meu próprio exercício
de permitir que você chegasse de mãos vazias e saísse com as mãos cheias,
deixando-me com as mãos vazias. Vazias de você e vazias de mim.
Sei
que posso estar exagerando. Afinal, você mesmo sempre disse que eu sou tão
altivo e autossuficiente. Porque eu sempre fiz questão de parecer independente,
dando a impressão que você não precisaria fazer nada para que eu fosse feliz. E
sinto que minha felicidade nunca dependeu de você fazer algo, mas dependeu de
você estar ali para que eu fizesse algo por você, por mim e por nós, ou pelo
menos para participar do que pudéssemos fazer juntos. Você não estava lá. Um
dia percebi que você não tinha ido embora; você nunca chegou, nunca esteve
comigo. São minhas ilusões, você não tem culpa e não entenderia. Deixa para lá.
Como cantaria Maysa, “se meu mundo caiu,
eu que aprenda a levantar”.
O
que você está comendo? É uma maçã? Estive pensando, coincidentemente, em maçãs.
E em nós. Tivemos uma maçã e deveríamos nos alimentar dela. E deveríamos cuidar
dela. Acho que o que aconteceu com a gente foi como reconhecer que nossa maçã
não podia mais ser comida porque ela foi apodrecendo aos poucos. Percebíamos
que ela estava apodrecendo, mas como ainda acreditávamos nela, cortávamos os
pedaços podres, valorizando as partes ainda sadias, já que não restava outra
alternativa porque não podíamos fazer com que ela se regenerasse. Até que
percebemos que pouco ou quase nada restou de polpa sadia e isso não seria
suficiente para alimentar nós dois. E precisamos jogar o caroço na terra para
que as sementes germinassem e delas nascessem outras maçãs para outras pessoas.
E cada um de nós foi procurar outros pomares. Certo, talvez não encontremos
maçãs tão bonitas, nem tão grandes, sem aquela casca vermelho-vivo lustrosa
onde quase podemos ver nossa imagem refletida, sem aquele cheiro adocicado de
vida. Mas podemos encontrar mais verdade.
Então,
você sabe definir o que é mágoa? Não devolva minhas perguntas com outras
perguntas. Quero que você diga primeiro, por favor. Não vou dizer antes de
você. Esse seu jogo é antigo. Eu sei, você sempre disse isso, sempre disse que
eu tenho respostas para tudo. Eu já conheço seus passos. Eu digo, você concorda
e diz que “é isso mesmo”. Eu dou-me
por satisfeito e assunto encerrado. Em tempos idos, isso era o suficiente para
eu voltar a dormir abraçado em você. Agora quero ouvir o que você realmente
pensa. Vamos lá, diga!
Então,
doutora, nesse momento tomei consciência de onde estava. Consigo sentir até
agora seu hálito de maçã e gengibre, quando abriu a boca para talvez responder
o que eu havia perguntado. É como se eu estivesse em transe. Só que eu estava
com os olhos abertos, olhando profundamente meus olhos refletidos água turva da
pia entupida. E ali, completamente sozinho, pisando o chão frio com as pontas
dos pés, depois de vomitar a alma em jatos de rum e whisky, eu consegui finalmente
definir o que é mágoa.